Velocidade: A força dos nossos “emigrantes”

Por a 11 Maio 2020 11:30

Portugal sempre foi

um grande exportador de talento e no desporto motorizado o cenário

não é diferente. São muitas as histórias de pilotos nacionais que

tiveram de procurar outros palcos para chegarem ao seu objetivo. Uma

decisão por vezes difícil, dada a tenra idade dos pilotos.

Há pouco tempo entrevistava João Barbosa, fazendo uma breve restrospetiva das sua carreira, e ouvia as aventuras que viveu, os sacrifícios que teve de fazer para chegar ao seu grande objetivo. Em tom de brincadeira dizia-me que, ao contrário do que as pessoas pensam, a vida de piloto está muito longe de ter o glamour que as fotos e os vídeos mostram. São muitos os casos de pilotos que se mudaram para outros países, longe dos seus, em busca da carreira com que sonham.

Para João Barbosa a primeira aventura “fora de portas” foi em Itália, quando foi correr para a Fórmula Europa Alfa Boxer, em 1995. “Morava em casa do dono da equipa e almoçava e jantava com a família dele. Ia no camião da equipa para as pistas e também ajudava na oficina. Pegava numa Ford Transit e levava os motores para serem revistos no preparador. Essa época acabou por ser fundamental na minha carreira porque ganhei o campeonato e o prémio foram dois motores Alfa Romeo com que fiz a Fórmula 3 italiana no ano seguinte, mais um ‘prize-money’. Se calhar sem essa vitória não estava onde estou hoje”, afirmou o vencedor das 24 Horas de Daytona.

Pilotos nacionais consagrados como Álvaro Parente, Filipe Albuquerque e António Félix da Costa saíram do país quando ainda estavam no karting. Como foram pilotos oficiais de construtores italianos, Parente, Albuquerque e da Costa viveram alguns meses naquele país, considerado o epicentro da modalidade. Albuquerque tinha 17 anos quando foi morar para um apartamento por cima da fábrica da CRG, onde já tinham estado Vitantonio Liuzzi e Ryan Briscoe. “Foi o ano mais duro da minha vida”, recorda o piloto de Coimbra. “À semana ainda estava com a equipa, mas ao fim-de-semana os mecânicos iam ter com as suas famílias e eu não tinha ninguém. Tinha que ir às compras e cozinhar para mim, desde então nunca mais fiz reparos à comida da minha mãe!”.

Albuquerque pertence à era em que as crianças são ‘tornadas’ pilotos, numa realidade que pode ter efeitos perversos no desenvolvimento de cada um. “Eu costumo dizer que somos obrigados a crescer à pressa. Temos que decidir aos 14, 15 anos o que queremos fazer para o resto da vida. Quando estava em Itália eu fazia as minhas asneiras, mas um dia o Danilo Rossi virou-se para mim e disse ‘Vê lá se atinas porque és piloto da marca e estás a dar ‘de comer’ a 80 pessoas’. Essas coisas fazem-nos ganhar maturidade.” Antigo campeão europeu de Fórmula Renault, Albuquerque ainda se lembra da sua rotina quando estava na Motopark Academy, a mesma equipa com que António Félix da Costa venceu o NEC. “A Motopark fica numa pista no meio do nada na Alemanha. Só há uma hipótese: deitar às dez da noite e levantar às sete da manhã. Isso pode ser duro para quem não estiver disposto a fazer sacrifícios”.

Estes

são alguns dos exemplos nacionais que mostram a dificuldade a que os

jovens estavam sujeitos para chegar ao topo do automobilismo. Eram

meninos que tinham de ser rápidos em tudo… na pista e fora dela.

Rápidos na abordagem às curvas, assim como na adaptação a uma

nova realidade, um novo país, longe da sua família. Também tinham

de ser rápidos a aprender as manhas do seu ofício. Manuel Gião

recorda-se dos tempos em que foi viver para Colónia, numa altura em

que competia na Fórmula Opel:

“Fiquei na casa do Domingos Piedade porque era amigo dos filhos dele, o Marc e o Guido. Nós íamos muitas vezes andar de kart para a pista dos Schumacher, em Kerpen. O Michael era o mecânico dos karts, o pai era o senhor que vendia os bilhetes e a mãe vendia uns ‘hotdogs’ alemães. Na altura só sabia umas palavras de alemão mas já fazia muitos quilómetros sozinho de carro para ir para as provas. No segundo ano corri com a equipa Draco e fui viver para Itália. Morava sozinho e tive que aprender a cozinhar, a tratar da minha roupa, a limpar a casa, a controlar os meus gastos, coisas que mantive até hoje”.

Gião também recorda como tinha de estar sempre alerta em relação aos seus companheiros de equipa. “Os brasileiros vinham para a Europa e estavam sempre a ‘cheirar’ a equipa. Eu tinha que fazer o mesmo para ter o melhor material. Eles eram desconfiados, se eu perguntava ‘Olha, fazes aquela curva em 2ª ou 3ª?’, eles diziam 2º mas eu sabia que era em 3ª…”

Todas estas histórias têm em comum a vontade de ter sucesso, num mundo onde poucos o conseguem e nem sempre os mais talentosos conseguem chegar onde merecem. São exemplos de jovens que abdicaram de muito, à procura de um sonho muito difícil de concretizar. Jovens que tiveram de se fazer homens à força, sempre com grande dose de coragem, perseverança e força mental.

Tiago Monteiro disse-nos há pouco que a força mental é a principal arma de um piloto e o que pode fazer a diferença entre um grande piloto e um piloto apenas com talento. Desde cedo que muitos foram obrigados a ganhar essa força para vencer os muitos desafios dentro de pista, mas principalmente fora dela. É por isso que os pilotos são uma “raça” especial. É difícil dizer se o facto de terem saído cedo fez deles mais fortes, ou se já tinham essa força e por isso aguentaram. A única certeza é que têm uma capacidade de enfrentar problemas e encontrar soluções como poucos. Só assim se mantêm no topo.

A

vida das novas gerações é relativamente mais fácil, pois a

facilidade com que se arranjam voos para qualquer parte do mundo faz

com que não seja necessário “emigrar”. Isso não retira o

mérito de quem compete lá fora, mas certamente facilita mais o

processo. Infelizmente o acesso das novas gerações às categorias

internacionais de iniciação não tem sido o que desejaríamos. Mas

certamente terão pela frente outro tipo de desafios cuja a exigência

em nada ficará a dever aos desafios que a geração anterior viveu.

Resta-nos esperar que a próxima “fornada” chegue depressa e que

continue a levar a nossa bandeira o mais alto possível.

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