Entrevista a Carlos Sainz: El Matador

Por a 18 Abril 2022 10:43

No final dos anos 80, assistimos à chegada daquela que viria a ser uma das personalidades mais marcantes do campeonato do mundo de ralis. Com uma combatividade ímpar e dotado de invulgares dotes de afinador, Carlos Sainz entrou em cena com o desejo de reescrever a história da modalidade, desafiando os paradigmas estabelecidos ao mostrar que era possível vencer em todos os tipos de piso. A sua determinação viria a vergar os especialistas em terra, asfalto ou neve e a conquistar o respeito dos seus pares. Vendo em Sainz o homem certo para conduzir finalmente a Toyota ao sucesso, Ove Andersson não hesitou em torná-lo na figura maior da equipa japonesa. O espanhol respondeu à altura e conquistou dois títulos de campeão do mundo mas, mais do que os troféus, seriam o carisma e a forma como ainda hoje encara a competição a garantir-lhe definitivamente o estatuto de lenda do desporto automóvel.

Por Nuno Branco

Fotos: Arquivo Autosport, Audi, Martin Holmes, Red Bull e X-Raid

Jyväskylä aproveitava o último domingo de agosto. As tardes amenas de verão dariam em breve lugar à longa estação invernal e os ciprestes não tardariam a vestir-se de branco. Entre a multidão, Carlos Sainz e Luis Moya subiam a rampa da consagração a bordo do Celica com o número 4 nas portas. No pódio, a dupla espanhola apressa-se a subir para cima do bólide japonês. Sobre o capot com as cores da Marlboro, o calçado de Sainz chama a atenção dos presentes: à tradicional bota de competição no pé direito, junta-se uma convencional sapatilha no lado esquerdo, protegendo o pé ainda inchado na sequência de um acidente sofrido durante os reconhecimentos contra o carro de um espectador. A lesão quase o impossibilitara de alinhar na prova, mas o médico e o fisioterapeuta da equipa conseguiram o milagre da recuperação e Sainz, resistindo à dor, espalhou garra e talento nas florestais finlandesas tornando-se no primeiro piloto não nórdico a vencer o então denominado Rali dos 1000 Lagos. Sob os céus de uma das “catedrais” mundiais dos ralis, iniciava-se um novo capítulo da história do WRC. “El Matador”, como viria a ficar conhecido, punha fim a uma era dominada por especialistas e iniciava uma outra, a dos pilotos multifacetados. Acabado de entrar no clube dos sexagenários, Sainz continua hoje a surpreender-nos com a sua determinação. Desafiado a percorrer as memórias de uma vida dedicada aos ralis, aceita-o sem hesitar,emprestando a esta viagem no tempo a mesma paixão que tem deixado gravada nas estradas e nos caminhos percorridos em quatro décadas dedicadas à competição.

Foste campeão de squash, praticaste boxe e eras um entusiasta do motocross, apesar de a tua família não gostar da ideia de participares em corridas de motos. Como conseguias correr sem que o teu pai desconfiasse?

Para ter a licença de motos, tinhas de ter a autorização do teu pai e eu sabia que ele não gostava muito da ideia de eu fazer motocross. Pedi então a um amigo para falsificar a assinatura do meu pai e assim obtive a licença para poder participar em corridas perto de casa, nos arredores de Madrid. Quando tens 14, 15 anos, fazes coisas que não estão corretas, coisas que desejas que os teus filhos não repitam (risos) mas eu queria muito correr e aquela era a única hipótese de o fazer.

O que te influenciou a querer participar em ralis?

Sempre gostei de carros e de ralis. O meu cunhado Juan Carlos Oñoro, na altura o namorado da minha irmã mais velha, era já um piloto profissional de ralis e, quando ele chegou à nossa família, despertou ainda mais o meu interesse. O seu navegador, Juanjo Lacalle, viria a ser meu navegador no início da minha carreira e foi também o meu manager. Comecei a acompanhá-los nos ralis que eles disputavam e aquilo que era um interesse pela modalidade tornou-se numa paixão.

Quando tiraste a carta de condução, começaste de imediato a participar em provas com um Seat Panda. Seguiu-se a participação no Troféu Renault 5, que combinava ralis e circuitos.Acabaste por decidir ser piloto de ralis. O que pesou na tua decisão?

Na altura, os ralis eram bastante mais populares do que as corridas de pista. Em Espanha, havia apenas um circuito permanente e os ralis iam a todos os cantos do país. Os carros eram mais espetaculares, andavam de lado, em terra, no asfalto, na neve, com lama e nevoeiro e isso atraía-me muito mais. Do ponto de vista da condução, é bastante desafiador ter esta diversidade de condições que as corridas em pista não conseguem proporcionar e essa diversidade cria uma série de variáveis que faz dos ralis uma competição ímpar.

Em 1985, sagras-te vice-campeão de Espanha de ralis repetindo o feito no ano seguinte. Conduzias então o Renault 5 Maxi Turbo. Que memórias guardas da condução de um carro tão exigente como este?

Com o Renault 5 Maxi, tive a minha experiência no Grupo B. Na altura, ainda fiz alguns ralis com um Ford RS200 mas, nesses anos, era piloto oficial da Renault em Espanha e o carro que me acompanhou mais tempo foi o Renault 5, quer a versão Tour de Corse quer o Maxi Turbo. No início, o Maxi Turbo deu-nos alguns problemas mas a sensação de o conduzir era boa. Era um carro muito leve e potente, com cerca de 380 cavalos e 950 quilos de peso. Tinha uma aceleração fantástica. A caixa podia não ser a melhor, a suspensão também não era maravilhosa mas a aceleração era fantástica. Era um carro difícil de conduzir e desafiador mas isso tornava-o especial.

Em 1987, mudas-te para a Ford e, com o Sierra RS Cosworth, além do título de campeão espanhol, fazes a tua estreia no WRC. Aconteceu no Rali de Portugal, onde bastaram alguns quilómetros para que o teu nome se tornasse conhecido no mundial dos ralis. Que memórias tens dessa prova que marcou a tua estreia no campeonato do mundo?

A primeira participação numa prova do WRC é sempre especial. A escolha de Portugal era mais ou menos óbvia. Espanha não tinha uma prova no calendário, o Rali de Portugal era uma das mais icónicas do mundial e certamente teríamos muita gente a apoiar-nos. Na altura, não tínhamos um objetivo e arrancámos com o espírito de “aqui vamos nós, ver no que dá!”. Conseguimos vencer o primeiro troço, no Autódromo do Estoril. De repente, estávamos à frente no rali em que nos estreávamos no WRC. Foi inesquecível. Ainda conseguimos vencer outro troço [Préstimo] mas a nossa participação acabou por ser curta já que os problemas de fiabilidade do Sierra não nos deixaram ir além do nono troço. Foi frustrante mas, apesar da desistência, o rali foi importante para sentirmos o pulso e acabou por colocar o meu nome no panorama mundial dos ralis.

No final de 87, o teu habitual navegador, António Boto, que nos deixou recentemente, deixa de correr e inicias uma longa e mítica ligação com Luis Moya. Como começou a vossa história?

O Antonio Boto aceitou o desafio de liderar a equipa de ralis da Opel em Espanha e tive de procurar outro navegador. Já me havia cruzado com o Luís em algumas provas e liguei-lhe. Ele aceitou de imediato e iniciámos então o nosso percurso. O Luis é um ótimo profissional e uma parte importante do que conquistei deve-se também a ele. Passámos muitas coisa juntos e isso ajudou a construir uma amizade muito forte entre nós.

O Luis Moya conta que, no vosso primeiro rali do mundial, tu lhe terás perguntado se ele sabia por que motivo estavam ali. Ele respondeu-te “para correr” e tu corrigiste: “Para sermos campeões do mundo!”. Tinhas essa ambição e esse objetivo bem claro deste o momento em que deste os primeiros passos no WRC?

(risos) Bem, já nessa altura eu tinha essa ambição bem presente na minha mente. Não sabia como o iria conseguir, mas o desejo estava lá. Sabia que era difícil mas os desafios sempre me atraíram. Não é por acaso que sempre sonhei ganhar na Finlândia ou no RAC; porque sabia que era difícil.

A verdade é que, apesar de o Sierra não ser propriamente o carro mais competitivo, começas rapidamente a dar nas vistas, o teu nome aparece nos títulos da imprensa e entras no radar dos diretores das principais equipas. A adaptação ao WRC foi mais rápida do que imaginaste?

Bem, o Sierra não conseguia igualar os carros de tração total, como os Lancia ou os Mazda. Na altura, com um carro como o Sierra, o máximo a que conseguíamos aspirar era chegar aos ralis de asfalto e tentar dar nas vistas. Em 1987, alinhei com a Ford Espanha, no seguinte fiz cinco ralis com a equipa oficial, o último dos quais o Rali Sanremo, que acabou por ser decisivo para o meu futuro.

O Rali Sanremo de 1988 foi especial para ti por vários motivos. Um deles terá sido a mensagem clara que passaste a Cesare Fiorio que, não vendo em ti potencial, preteriu-te em favor de Didier Auriol. Queres contar-nos essa história?

Eu sabia que a Lancia tinha considerado contratar-me mas acabaram por escolher o Didier Auriol. Isso acabou por me dar uma motivação extra para mostrar o meu valor. O rali disputou-se sob condições muito adversas e, nos dois primeiros dias, com chuva e nevoeiro, eu liderei o rali à frente de 6 ou 7 carros de tração integral e o Auriol, enquanto esteve em prova, estava bastante atrasado na classificação, acabando por ter um acidente e desistir. Quando chegaram as etapas em terra, os carros de tração integral fizeram valer a sua vantagem e acabei por terminar o rali em quinto, o que me deixou bastante satisfeito porque mostrei o meu valor e, ainda em Sanremo, acabei por ser contatado por Ove Andersson, assinando pela Toyota, onde estive nos quatro anos seguintes.

Mais do que à Lancia, foi uma resposta que quiseste dar a Cesare Fiorio já que ele havia dito que não te contratava porque já tinha pilotos de asfalto suficientes…

Sim, é um facto. Na altura, a Lancia dominava os ralis, Espanha não tinha qualquer peso na modalidade e eu era 4 anos mais novo do que o Auriol. Fiorio escolheu o Auriol e eu tive de respeitar a sua decisão. No entanto, tenho também de lhe agradecer porque as suas palavras acabaram por ter um impacto enorme na minha motivação para lhe provar que ele estava errado. Essa vontade de mostrar que conseguia ser rápido em todos os pisos acabou por moldar a forma como abordei a competição e o nível de exigência que coloquei a mim mesmo, pelo que tenho de agradecer a Fiorio pela opção que tomou na altura.

A abordagem da Toyota resultou numa história engraçada, envolvendo a mulher de Ove Andersson, ainda no hotel em Sanremo…

Marion, a mulher de Ove Andersson tinha deixado um recado para mim na receção do hotel mas eu não passara na receção e não tinha lido o bilhete. Quando nos cruzávamos, ela olhava para mim e sorria mas eu estava longe de imaginar o que se passava. Até que ela veio ter comigo perguntando se não tinha lido o recado onde dizia que o Ove queria falar comigo. Fui de imediato ter com o Ove, acertámos os pormenores e assinei pela Toyota.

Ove Andersson era uma pessoa consensual no universo dos ralis, reconhecido pela forma como ajudou muitos pilotos a evoluir as suas carreiras. Recorda-nos como era o homem e o líder sueco…

Ove Andersson era uma pessoa muito especial, uma espécie de segundo pai para mim. Acreditava nas minhas qualidades, deu-me a oportunidade de começar a conduzir um carro de tração total e sempre reconheceu o meu valor. Apesar da sua frieza nórdica e do meu temperamento latino, tínhamos uma relação incrível o que intrigava as outras pessoas e eu penso que era essa diferença que nos aproximava. Eu admirava a sua tranquilidade e a calma com que encarava os desafios e ele admirava a forma apaixonada como eu vivia a competição. Essa combinação resultava na perfeição. No início não foi fácil, eu tinha pressa em mostrar o meu valor e a minha rapidez e isso resultou em alguns acidentes. O Ove dizia-me “eu sei que és rápido, não precisas de me provar isso. Conduz com mais cabeça e leva o carro até ao fim porque, assim, não dá!”. A pouco e pouco, graças aos seus conselhos, comecei a amadurecer e a nossa relação tornou-se cada vez mais forte. Foi com grande tristeza que recebi a notícia do trágico acidente que lhe roubou a vida quando participava num rali na África do Sul. Serve-me de consolo saber que morreu a fazer o que mais gostava mas foi uma perda dolorosa para mim.

Chegamos a 1990. No Rali da Acrópole, ganhas finalmente o teu primeiro rali do mundial. Recordas-te das emoções que viveste após o triunfo na prova grega?

A primeira vitória não se esquece. É um daqueles momentos que nos marcam. Em 1989 havíamos estado perto da vitória em alguns ralis mas aconteceu sempre qualquer coisa que nos impediu de ganhar. Se me perguntassem qual era o rali onde teríamos menos hipótese de vencer, responderia o Rali da Acrópole porque a Toyota usava pneus Pirelli que, ao contrário dos Michelin, não tinham mousse. Mas a verdade é que trabalhámos muito e a Pirelli também fez um fantástico trabalho. Tivemos um único furo, perto do final de um troço, pelo que o facto de ganharmos um rali demolidor com pneus sem mousse valorizou ainda mais a nossa vitória. No entanto, não foi um triunfo fácil e não nos livrámos de um valente susto quando ficámos sem direção assistida. A equipa mandou de imediato o helicóptero com uma direção nova e, de repente, ali estava eu, na ligação, à espera do helicóptero, que não chegava.Cada minuto parecia horas até que, finalmente, o vejo aproximar-se. Os mecânicos conseguiram substituir a direção, terminando quando faltava um minuto para controlar. Foram momentos de enorme tensão mas conseguimos a nossa primeira vitória no WRC, à frente dos pilotos da Lancia e o momento foi verdadeiramente especial.

Se o triunfo na Grécia foi especial, como qualificas a histórica vitória que conseguiste, algumas semanas depois, no Rali dos 1000 Lagos?

Até àquele momento, nunca um piloto não-nórdico havia conseguido ganhar o rali. A prova finlandesa era uma espécie de feudo dos pilotos locais e isso motivou-me. Queria ser o primeiro a consegui-lo. Queria mostrar que era possível bater os nórdicos. Sempre gostei do rali e dos troços e o feeling era bom. No entanto, sabia que, para ganhar, teria de correr riscos e estava disposto a corrê-los. Deve ter sido um dos ralis onde conduzi mais perto do limite ou para lá deste. A confiança estava lá e o Celica ia às bermas, passava a poucos centímetros das árvores e, a pouco e pouco, as pessoas começaram a convencer-se de que havia um espanhol a conduzir como um louco e que iria vencer o Rali dos 1000 Lagos. Foi um feito inesquecível, que me encheu de orgulho.

A verdade é que, um ano antes, precisamente na Finlândia, havias igualado o tempo do teu companheiro, Juha Kankkunen,precisamente no troço que passava à porta de sua casa. Terá sido aí que mostraste aos nórdicos ao que vinhas?

Desde a minha estreia nos Rali dos 1000 Lagos, sempre o considerei um enorme desafio. Sabia que era um feudo dos nórdicos e logo aí, nessa primeira participação com um carro de tração integral, quis mostrar que era possível bater os finlandeses. O Kankkunen não escondeu a surpresa com o tempo que conseguimos e talvez tenha sido aí que ele e o seu navegador Juha Piironen começaram a chamar-me “El Matador” (risos)…

Viajamos até à última noite do Rali Sanremo 1990. Estás a poucas horas de te sagrar campeão do mundo de ralis. Qual o estado de espírito com que enfrentas as derradeiras especiais?

Bastava-nos ficar em terceiro no Sanremo para vencer o Mundial. A prova estava a correr-nos bastante bem até que, antes da última noite, capotámos e quase deitámos tudo a perder. Felizmente, a equipa conseguiu recuperar o carro. A última etapa disputava-se de madrugada e havia que dormir. Por norma, durmo bem mas, como é óbvio, sabia que podia tornar-me campeão do mundo e é impossível alhearmo-nos disso. Seria a primeira vez para um piloto espanhol, a primeira vez para um piloto da Toyota e todos esses ingredientes têm um peso inegável. Com o carro visivelmente marcado pelo capotamento da véspera, conseguimos terminar em terceiro e assegurar o título.

Quando é que alguém que se torna campeão do mundo consegue efetivamente ter consciência do feito que acaba de conquistar?

Na altura não conseguimos ter essa consciência. Há muitas coisas a acontecer e é tudo muito rápido. Quando chego ao aeroporto,há uma multidão à minha espera e, a partir daí, começo a viver um conjunto de emoções que me impedem de ter real consciência do que havia conquistado. Só mais tarde, muito mais tarde, talvez anos depois, é que consegues realmente perceber que fizeste algo de especial para ti, para o teu desporto e para o teu país. Desde novo, quando comecei a dar os primeiros passos, era natural sonhar com o dia em que ganhamos o primeiro rali e com o sucesso que podemos vir a alcançar. E quando isso se concretiza, quando consegues ganhar o Rali dos 1000 Lagos ou o RAC, até então um feudo dos nórdicos, é impossível não te sentires especial.

Quando chegaste ao WRC, a competição era dominada pelos“especialistas” que venciam apenas em determinados tipos de piso como asfalto, terra ou neve. Sentes que mudaste esse paradigma?

Quando cheguei à Toyota, prometi a mim mesmo que iria mudar as regras do jogo. Na altura, os pilotos latinos dominavam no asfalto e os nórdicos na terra. Eu sabia que, se quisesse deixar uma marca na competição, tinha de mudar isso e mostrar que um piloto latino podia vencer o Rali dos 1000 Lagos, por exemplo. Se um piloto é bom, tem de prová-lo e tem de estar apto para vencer, independemente das condições. Lembro-me que, na altura, o Walter Röhrl não ia aos 1000 Lagos, por exemplo, e não gostava de fazer o RAC porque o percurso era secreto. Eu escolhi o meu caminho. Queria provar que um piloto podia vencer em qualquer rali e todo o meu trabalho foi orientado para esse fim.

A temporada de 91 começou de forma auspiciosa mas uma segunda metade de temporada marcada por desistências impediram-te de repetir o título. Ainda assim, consegues a primeira vitória em Monte Carlo e ganhas também em Portugal depois de uma luta acesa com Auriol decidida na última noite, em Arganil. Que memórias guardas da prova portuguesa?

Sempre gostei do Rali de Portugal, desde a minha estreia, em 87. É um dos meus eventos favoritos. Fui sempre rápido em Portugal e fiquei muito feliz quando venci a prova pela primeira vez, em 1991. Ainda hoje tenho, na minha garagem, o Celica com que venci esse rali. Correr em Portugal tinha um significado muito particular. Sentia-me como se estivesse em casa. Adoro o país, gosto da gente, fiz bons amigos em Portugal e tenho pelo país um sentimento muito especial.

Em 1992, estreias no novo Celica, o ST165. Como comparas as duas versões do Celica?

O primeiro Celica era um grande carro, talvez o que mais me marcou. Com o ST165 conseguimos um campeonato em 1990 e só não repetimos o feito no ano seguinte porque tivemos uma série de azares na segunda metade da temporada. O carro de 92 deu-nos algumas dores de cabeça. Quando nasceu, não era suficientemente competitivo e só a meio da época começou a corresponder às nossas expectativas embora estivesse longe da perfeição.

O facto de não teres um carro perfeito não te impediu de celebrar uma marcante vitória no Rali Safari desse ano. Esta era daquelas provas que qualquer piloto queria ter no seu palmarés ou era apenas mais uma onda do WRC?

O Safari era, sem dúvida, uma prova especial e uma das que eu desejava muito ganhar. Se queria mostrar que era um piloto completo e que conseguia ganhar em qualquer tipo de condições, tinha de ganhar o Safari. Nessa altura, o Safari ainda era um rali bastante longo e duro, durava seis dias e vencê-lo foi um marco importante na minha vida.

Apesar dos problemas de juventude do Celica , conseguiste, no Rali RAC, derrotar Kankkunen e Auriol e conquistar o segundo título mundial. Se, a meio do ano, te dissessem que irias ser campeão, não acreditarias…

O campeonato de 92 não teve a magia do primeiro título mas teve um sabor especial por causa das dificuldades que sentimos com o carro e que, até meio da temporada, nos levaram a pensar que as hipóteses de sermos campeões estariam hipotecadas. No final, apesar de todos os problemas, conseguimos vencer o segundo campeonato e isso teve um significado muito importante para mim porque sabia que estava de saída da Toyota. A Castrol iria chegar à equipa e eu decidi manter-me fiel ao meu patrocinador de sempre, a Repsol. Como tal, tive de partir e encontrar uma nova equipa.

Se tivesses a oportunidade de recuar no tempo, terias voltado a aceitar a oferta da Jolly Club para correr com o Lancia Delta em 1993?

Conheci muita gente boa na Jolly Club, a começar pelo seu líder, o Cláudio Bortoletto. Os mecânicos também eram fantásticos mas a verdade é que não tínhamos ferramentas para lutar contra os carros de fábrica. Percebi pouco depois de chegar à equipa que a Abarth não havia tido o mesmo envolvimento que em anos anteriores e, se voltasse atrás, não o faria outra vez mas, na altura em que assinei, pareceu-me uma boa decisão.

Chegas à Subaru em 1994. Tal como a Toyota que bem conhecias, tratava-se de uma equipa japonesa mas, operacionalmente, estava entregue aos britânicos da Prodrive. Como decorreu a adaptação à equipa?

Era uma equipa com uma cultura muito britânica, que trabalhou arduamente para conseguirmos fazer do Impreza um carro competitivo. Tinha bons mecânicos e bons engenheiros. Quando cheguei, o carro não tinha ainda a rapidez necessária para lutar pelas vitórias em todo o tipo de provas e orgulho-me do contributo que tive no desenvolvimento do carro para o tornar competitivo, quer em terra, quer em asfalto. Não foram dois anos fáceis. O Colin Mcrae era o meu companheiro de equipa e tivemos os nossos problemas, a equipa apoiava-o muito mas, apesar disso, consegui fazer o meu trabalho. Em 1994, a equipa preferiu ter um britânico a vencer o RAC, coisa que não acontecia há mais de 20 anos, do que ter um piloto a vencer o mundial e isso obrigou-nos a correr riscos e a sair de estrada quando tinhamos o título perfeitamente ao nosso alcance. No ano seguinte, penso que, uma vez mais, poderia ter vencido o título mas tive o azar de sofrer uma queda de bicicleta e lesionar o joelho, o que me obrigou a falhar o rali da Nova Zelândia. Ainda hoje penso que esse azar me custou o campeonato…

Conforme referiste, houve momentos de tensão com o Colin McRae nessa altura. O episódio do Rali da Catalunha, em 95,intensificou essa tensão entre os dois?

A situação da Catalunha foi criada pelo Colin. Para mim, não havia história. O David Richards falou connosco e disse-nos: “Quem estiver à frente no final do dia de sábado, será o vencedor. No domingo serão apenas 5 troços e não vale a pena corrermos riscos”. Eu ataquei a fundo no sábado e cheguei ao final do dia na frente pelo que, para mim, o assunto estava resolvido. Mas, no domingo, o Colin começou o dia a atacar e eu telefonei ao David Richards para perguntar o que se passava. Ele disse-me para não me preocupar, que o combinado iria ser cumprido. A situação acabou por ter um enorme impacto fora da equipa, especulou-se que teria havido discussão entre nós mas, no que me diz respeito, foi tudo tranquilo. A questão foi mesmo entre o Colin e o Richards.

Pela segunda vez, na Subaru, perdes o título mundial no RAC, desta vez para McRae. E sais da Subaru. No teu entender, não tinhas condições para continuar na equipa?

Não tinha condições. Quando cheguei à Subaru, tinha uma missão: desenvolver o carro e torná-lo competitivo em todos os tipos de piso. Penso que o conseguimos. Tudo o que se passou nesses dois anos não me deixara confortável e satisfeito na equipa pelo que decidi mudar a minha vida e procurar outros desafios.

Ao longo da tua carreira, voltaste a ter o Colin como companheiro de equipa em mais duas ocasiões. A vida encarregou-se de os aproximar?

O Colin foi o companheiro de equipa que mais tempo esteve ao meu lado. Depois da Subaru, voltaríamos a estar juntos na Ford e na Citroën e o Colin acabou por tornar-se o meu melhor amigo entre os pilotos que competiam no WRC. Era uma grande homem e um grande adversário e fiquei com uma enorme sensação de perda após o seu trágico desaparecimento.

Com a Toyota excluída do Mundial, não te resta outra alternativa e assinas pela Ford em 1996, onde ficaste 2 anos. O Escort era, nesta altura, um carro obsoleto?

Quando a Toyota foi banida do Mundial, eu tinha contrato com a equipa para a temporada de 96. De repente, fico sem equipa e não me restou alternativa a não ser a Ford. Apesar de ser uma equipa teoricamente menos competitiva, há sempre um lado interessante. Conheci novas pessoas, criei laços com Malcolm Wilson e há que encontrar os desafios que nos devem mover em cada projeto. No meu caso, a forma que encontrei para me motivar foi decidir provar que era possível levar um modelo obsoleto como o Escort aos triunfos e consegui, apesar de já ninguém acreditar no potencial do carro.

Voltas à Toyota em 1998 e, no final da Temporada, no RAC, protagonizas um dos momentos mais trágicos da história do WRC. A angustia de Luis Moya gritando “Trata de arrancarlo, Carlos!” correu mundo mas a verdade é que o Corolla quedou-se a 300 metros da meta. Como se gere emocionalmente o que aconteceu no troço de Margam, naquela soalheira tarde de novembro?

É uma situação triste e frustrante para qualquer desportista. Bastava-me terminar em quarto e eu controlava o rali de forma mais ou menos tranquila quando a avaria nos obrigou a parar perto do fim. Há um momento em que a tristeza toma conta de ti mas, depois, tens de procurar defesas e formas de a ultrapassar. Eu já havia conquistado o campeonato por duas vezes, e, apesar de um título ser sempre importante, já havia provado o sabor da vitóra e isso ajudou a relativizar o que aconteceu. Depois de libertares a tristeza, tens de aceitar as coisas, aprender com isso e virar a página. É o máximo que podes fazer.

Chegaste a saber a natureza do problema no motor do Corolla?

Era um defeito de fabrico numa biela que afetou outras peças do mesmo lote. O carro do Marcus Grönholm teve o mesmo problema no rali e desistiu e, no dia seguinte ao final da prova, quando o Didier Auriol fazia co-drives com os jornalistas, o seu Corolla teve uma avaria semelhante…

Seguem-se três anos na Ford. Com o Focus, e tendo novamente McRae como companheiro de equipa, somas dois terceiros lugares no mundial voltando a ficar ao lado do escocês quando, em 2003, assinas pela Citroën. Dizias há pouco que, em cada projeto, há que encontrar as metas pelas quais devemos lutar. Que objetivos traçaste quando, aos 40 anos, assinaste pela equipa francesa?

Eu sentia que ainda tinha rapidez para correr no campeonato do mundo, a Citroën tinha um carro que precisava de ser desenvolvido,pois era competitivo em asfalto mas não o era em terra e, uma vez mais, achei que o desafio de ajudar a desenvolver um carro e a torná-lo competitivo era atrativo. A equipa quis que eu fizesse parte do projeto e eu aceitei. Conseguimos evoluir o carro e construiu-se uma grande equipa. Voltei a ter o Colin como companheiro e o terceiro piloto era a jovem esperança Sébastien Loeb. Depois de alguns ralis, o Xsara era já um carro competitivo em terra e, na Turquia, obtive a primeira vitória do carro naquele tipo de piso. Tecnicamente, os membros da equipa eram bons e ganhámos o mundial de marcas em 2003 e 2004, nos dois anos em que estive na equipa. Em 2003, fui terceiro no mundial de pilotos e, no ano seguinte, conquistei com o Xsara a minha última vitória no WRC, na Argentina. E foi assim que, aos 42 anos, preparei a minha saída de cena do mundial. Quer a equipa, quer o Loeb estavam preparados para lutar pelo títulos…

No final de 2004 colocas um ponto final na tua carreira no mundial de ralis. Foi uma decisão fácil?

Foi fácil. Estava a ficar cansado, o campeonato tinha na altura 16 provas, número com o qual não concordava e, no último ano, a minha motivação foi ficando cada vez mais reduzida. Quando decidi terminar, isso estava completamente claro na minha cabeça.

De que sentiste mais falta no dia seguinte?

A adrenalina é uma coisa que nos acompanha durante a competição. No meu caso concreto, foram tantos anos a viver com ela que, quando páras de repente, sentes a falta dessa adrenalina. Senti também a falta do ambiente que vivia em alguns ralis. Há uns anos, estive em Portugal a acompanhar o rali e, nessa altura, confesso que senti saudades dos dias em que andava lá dentro, lutando pelas vitórias. Mas isso faz parte da vida e, nalgum dia, o fim tinha de chegar. Surgiu depois o Dakar que, de alguma forma, preenche essa necessidade de estar envolvido na competição. Curiosamente, foi o Colin [McRae] quem me incentivou a participar no Dakar. Ele estreou-se na prova em 2004 e, um dia, quando nos encontrámos em Palma de Maiorca, disse-me: “Carlos tens que experimentar o Dakar. Tenho a certeza de que vais gostar. Eu diverti-me imenso!”

Pelos vistos, o Colin tinha razão. Contas no teu currículo com três vitórias na prova. O que te atrai no Dakar?

Essencialmente, o desafio. Penso que ninguém fica indiferente ao Dakar. Ou amas ou odeias a experiência. O desafio é enorme e envolve um intenso trabalho ao longo do ano, quer na preparação física e mental quer no desenvolvimento do carro. E depois sabes que é um acontecimento único, que só se corre uma vez no ano e que, durante aqueles dias, tudo tem de estar perfeito. Tal como nos ralis convencionais, o facto de nenhum espanhol ter vencido o Dakar em automóveis foi uma forte motivação para eu me entregar a esse desafio.

Como te descreves enquanto piloto? Que atributos te levaram a ser apelidado de King Carlos?

É sempre difícil falar das nossas características. Talvez os outros o façam melhor do que eu mas penso que sou um piloto com um bom “feeling” para conduzir, consigo ser competitivo nas diferentes condições em que as provas se disputam e adapto-me rapidamente às mudanças durante um rali. Outra característica que destacaria é a capacidade de perceber como evoluir e afinar um carro para o tornar mais rápido. Isso tem-me permitido, ao longo dos anos, criar uma estreita relação com os engenheiros e esse entendimento tem-me ajudado a melhorar os carros que tenho nas mãos.

Acabas de completar 60 anos. Qual é o segredo para manter a competitividade durante um período tão longo?

Não há segredo. Há paixão, motivação e muito trabalho.

Como vês a evolução que os ralis sofreram nas últimas décadas?

Acho que, apesar da evolução, a essência dos ralis conseguiu manter-se. As provas mudaram, é certo, são mais compactas, mais curtas mas se não forem mais além na adaptação do figurino das provas, o ADN dos ralis continua lá. Relativamente aos carros, nos últimos anos evoluiu-se na direção certa aos tornar os carros mais potentes e mais espetaculares. Há muito que venho defendendo que os carros devem ser mais leves e mais potentes e espero que essa evolução, mesmo com a adoção de motorizações híbridas, não tenha um retrocesso.

Quão difícil é conciliar o lado racional com o emocional quando se acompanha e gere a carreira de um filho no difícil mundo da F1?

A única forma de o conseguir é sendo o mais objetivo possível. Tens de definir objetivos claros e ter a capacidade de distinguir entre aquilo que vês e aquilo que gostarias de ver. Acho que tenho conseguido fazer essa separação e tenho apoiado o Carlos naquilo que posso mas, no fim das contas, depende essencialmente dele, que está sentado atrás do volante, o sucesso do seu próprio percurso. Hoje tem 27 anos, ganhou experiência e penso que já não precisa dos meus conselhos para fazer um bom trabalho (risos).

Conheceste o ambiente que se vivia nos ralis e conheces agora o paddock da Formula 1. Como comparas os dois universos?

A minha vida tem sido passada nos ralis e, como a generalidade dos amantes do desporto motorizado, gosto igualmente de sentir o ambiente que se vive na F1, assim como o do MotoGP. No paddock da F1 vive-se um ambiente diferente de todos os outros, com particularidades, com mais interesses envolvidos. Se me perguntares qual o que mais gosto, respondo-te que prefiro o dos ralis. Continuo a ser um homem dos ralis.

2020 foi um ano marcante na tua carreira. Vences o Dakar pela terceira vez, recebes o prémio Princesa de Asturias, um importante reconhecimento em Espanha e és eleito pelos fãs o melhor piloto de ralis de todos os tempos. Que significado tem para ti esta escolha?

Significa que continuo a ser reconhecido pelos fãs. Penso que outros pilotos merecem todo o meu respeito e mereciam igualmente a distinção. Recebi a notícia com grande orgulho e sinceramente não sei o que terá levado a que escolha recaísse em mim. Penso que poderá refletir não só a longa carreira que dediquei ao WRC como também o reconhecimento de que mudei algumas coisas no mundo dos ralis, nomeadamente ao ter a ousadia de querer vencer qualquer rali e mostrar que se pode ser competitivo em todos eles. Seja qual for a razão, agradeço obviamente a todos os que votaram em mim. Foi algo que me deixou muito feliz.

O que podemos ainda esperar nos próximos anos de El Matador?

Não consigo adivinhar (risos). A única coisa que sei é que continuarei a conduzir e a ser piloto de ralis. Penso que, mesmo quando for bastante velho, continuarei a gostar de ralis e a participar em provas. A minha paixão pelos ralis continuará a existir e nem a idade me irá separar dela. Disso tenho a certeza!

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