De Évora ao topo do automobilismo: A história de João Correia, Diretor Técnico da Lola

Por a 17 Fevereiro 2025 09:50

O que têm Évora, a Fórmula 1 e a Fórmula E em comum? Uma pergunta que, aparentemente, fará pouco sentido, mas que pretende mostrar algo muito simples: por vezes, os sonhos tornam-se realidade. A resposta à pergunta é João Correia, engenheiro português que tem feito carreira no motorsport. Com um currículo invejável, está agora na  liderança técnica no Projeto da Lola, na Fórmula E. 

João Correia falou ao AutoSport sobre o seu percurso, sobre os desafios que enfrentou e deixou conselhos a quem pretende seguir o motorsport. Uma conversa de mais de hora e meia, em que percorremos uma carreira repleta de momentos únicos. 

João Correia, natural de Évora, sempre teve paixão pelo automobilismo. Para se aproximar desse mundo, formou-se em engenharia aeronáutica na Universidade da Beira Interior e concluiu um doutoramento em aerodinâmica na Universidade de Cranfield, Inglaterra.

A sua carreira inclui passagens por A1 GP, World Series by Renault, e Le Mans Series. Chegou à F1, onde foi aerodinamicista, um dos três responsáveis pela conceção aerodinâmica da parte dianteira do automóvel Manor de 2016, o MRT05. Antes disso já tinha passado pela Fórmula E, onde regressou em 2022 para assumir o papel de líder técnico da Lola. João Correia foi também o engenheiro português que sonhou como uma equipa de F1 100% portuguesa e que, além de sonhar, colocou um plano em marcha para que tal acontecesse

Uma paixão que começa de forma algo sombria

Esta história começa a 1 de maio de 1994, pelas 14:17. Foi a essa hora que o pequeno João, sentado à frente da sua TV, a ver transmissão do GP de São Marino, ficou chocado com a violência do acidente de Ayrton Senna na famosa curva Tamburello. O desfecho é conhecido e resultou na morte de um dos pilotos mais talentoso e venerado de todos os tempos. Mas esse incidente teve o condão de incendiar a paixão do pequeno João:

“Comecei a gostar de F1 por um motivo um pouco macabro. O dia 1 de maio de 94. O meu interesse, mais do que o lado humano e desportivo, era mais do ponto de vista técnico. Fiquei interessado no porquê do acidente do Senna e também o acidente do dia anterior, do Roland Ratzenberger. Queria entender as causas e fiquei bastante interessado. O meu pai é professor universitário de física, a minha mãe era professora de física também e de certa maneira, talvez tenha sido por isso mais fácil para eles explicarem alguns conceitos”.

O sonho de ser piloto parecia demasiado longínquo e, munido de uma curiosidade do tamanho do mundo e de uma vontade inabalável, o pequeno João decidiu o seu destino no final do nono ano:

“Lembro-me que fui de férias com os meus pais para o Algarve e, quando me questionaram o que queria fazer, disse a ambos que queria trabalhar na F1. Foi sempre o meu objetivo. E o meu pai ofereceu-se para me dar todo o material que necessitasse. E foi assim que começou. 

Curiosamente, o primeiro livro técnico que eu comprei era sobre um carro da Lola, equipa que agora represento. Comecei a ler a revista Racecar Engineering. Em 96, surgiu uma entrevista com  Adrian Newey. Foi aí que fiquei a saber que as equipas empregavam maioritariamente engenheiros aeronáuticos. E foi um bocado por isso que enveredei para a aeronáutica, sempre visando chegar à F1.”

De Évora à F1, passando pela Covilhã

Com a rota traçada, João Correia mudou-se para a Covilhã, para estudar Engenharia Aeronáutica, na Universidade da Beira Interior. Trabalhou sempre focado no seu caminho e todos os professores mostraram-se recetivos à determinação do jovem João, cujos trabalhos práticos estavam invariavelmente ligados à F1. O derradeiro projeto fim de curso foi desenhar um carro completo de F1, mas, devido aos recursos computacionais, foi simplificado e acabou por ser sobre o conceito de asa traseira CDG para a F1. 

Começou a trabalhar com uma equipa de competição, ao mesmo tempo que organizava iniciativas que o pudessem colocar mais próximo do seu sonho. Foi numa dessas iniciativas que a porta da F1 se abriu:

“Na Covilhã comecei a trabalhar numa equipa de competição automóvel que fazia o campeonato português de Endurance. No ano seguinte fizemos Fórmula Renault. E, como eu só tinha de escrever a minha tese de mestrado, tinha tempo livre. Por brincadeira, organizei um workshop competição automóvel na Universidade do Beira interior. Convidei todos os diretores técnicos das equipas de Fórmula 1, mas só Mark Preston, da Super Aguri, aceitou. Duas semanas depois desse workshop, tive um convite para ir para Super Aguri”.

As portas da F1 pareciam ter-se escancarado para o jovem português, mas um golpe do destino afastou-o do seu destino inicial:

“A equipa fechou duas semanas antes do meu primeiro dia de trabalho. No entanto, o Mark colocou-me no A1GP com colegas da Super Aguri. Com o apoio insuperável da minha mulher, fui para Inglaterra para perseguir o meu sonho”. 

A caminhada revelou-se mais difícil do que o inicialmente previsto. Depois de uma mudança radical de cenário, a base de sustentação do projeto de vida de João Correia voltou a ser abalada. Nada que o desmotivasse:

“Algum tempo depois, o A1GP faliu e eu fiquei desempregado durante 9 meses. Sou da opinião que uma pessoa parada não aprende coisas novas. Acabei por ingressar no mestrado de Competição automóvel, mas não terminei, pois surgiu a possibilidade de fazer um doutoramento. 

Apesar de continuar a trabalhar nas corridas como engenheiro de pista, não era bem o que queria. O doutoramento permitiu mudar o rumo. Eu queria desenhar carros e o doutoramento-me essas portas.”

Do sonho à posição de liderança na Lola

“Quando acabava o doutoramento, o Mark Preston voltou a convidar-me para o ajudar a criar a Super Aguri na Fórmula E. No fim da primeira temporada percebi que não era o bem o que gostava. Eu não queria viajar, queria desenhar carros”. 

Depois de muitos percalços e muita insistência, a porta da F1 finalmente abriu-se. E foi no projeto que de facto interessava o jovem engenheiro:

“A Manor estava a recrutar e fui para lá como aerodinamicista durante dois anos. Foi talvez o ponto alto da minha carreira. A frente do carro de 2016 da Manor foi desenhada por mim pelo Gregoire, e Davide o nosso líder do grupo. A equipa era muito pequena, por isso aprendi muito. Adorei, e ainda hoje mantenho a amizade com esse meu colega francês e com o management da equipa.”

O final da Manor é uma história já conhecida e o sonho da F1 terminou cedo. Depois de algum tempo afastado das pistas, a paixão pelo desporto voltou a falar mais alto. A Fórmula E revelou-se novamente a melhor opção e o português ingressou na Dragon através do gabinete de consultoria de Mike Gascoigne, onde se tornou o chefe de projeto, sob a direção do diretor técnico do Dragon. No entanto, a exigência das viagens constantes e o nascimento da filha levou João Correia a colocar um ponto final na sua carreira de engenheiro de competição, dedicando-se a veículos autónomos. No entanto… o regresso às corridas iria acontecer pouco depois:

“Na última corrida da Techeetah em 2022, fui convidado a ir para Londres a ajudar a reestruturar a equipa caso, ela continuasse e tínhamos um Construtor nipónico, que agora está associado à Lola, que estava presente. Começamos a conversar na altura e seis meses depois comecei a trabalhar no projeto Lola como técnico do projeto ”.

Portugal forma engenheiros de excelência

E como se consegue um CV tão vasto e tão rico?  Antes de mais, uma excelente formação, quer teórica, quer prática, conseguida em Portugal. Na universidade, aprendeu da melhor forma como usar os números e o conhecimento. Nas equipas de competição portuguesas aprendeu… um pouco de tudo. 

As conversas que o AutoSport vai tendo com engenheiros de alta competição que se destacam lá fora dizem-nos que, na globalidade, o que se aprende nas equipas nacionais revela-se fundamental para terem sucesso lá fora.  À boa maneira portuguesa, é sempre preciso fazer um pouco de tudo e, por vezes, desenrascar situações mais complicadas. É essa capacidade que depois é tremendamente valorizada nas equipas de topo. 

João Correia considera-se um aerodinamicista e a sua verdadeira paixão é desenhar carros. Mas o português já fez um pouco de tudo no mundo das corridas. Desde limpar o chão das oficinas, a mecânico, passando por engenheiro de pista, aerodinamicista e agora líder técnico do projeto Lola:

“Embora, só tenha trabalhado 2 anos nessa posição, eu considero-me um aerodinamicista. Tenho mais anos de carreira nas pistas do que do propriamente a desenhar, mas sou um generalista, não considero que seja especializado numa determinada área. Entendo um bocadinho de tudo sobre os carros.

Não tenho a menor dúvida de que o facto de ter trabalhado na área da aerodinâmica e da performance em pista permite-me ter uma visão mais global. Aliás, eu quando comecei na Fórmula Renault em Portugal, cheguei a ser mecânico. Trocava pastilhas e discos de travão, ajudava os mecânicos a passar as cablagens elétricas. Na oficina era mecânico, na pista era o engenheiro.

Aprendi muito e essa experiência permite-me agora ter uma abordagem mais holística, que já foi alvo de elogios porpela maioria dos meus diretores ao longo da minha carreira. É preciso ser um bocadinho proativo e ao sujar as mãos ganha-se muita experiência e aprende-se com os erros. Só o conhecimento académico pode ser curto para ter uma abordagem bem sucedida”. 

Manor MRT 05: Um monolugar com a marca de João Correia

Alguns dos leitores lembrar-se-ão do Manor MRT05, pilotado na altura por Pascal Wehrlein e Rio Haryanto, que cedeu o seu lugar a Esteban Ocon a meio da temporada. Um carro que conseguiu marcar um ponto, pela mão de Wehrlein e que serviu de rampa de lançamento para estes dois pilotos. Um  monolugar teve uma contribuição significativa do engenheiro português: 

“Costumo dizer que gostava de ter trabalhado nos anos 80 e anos 90 quando o Jordan de 91, talvez os carros mais icónicos da F1, foi desenhado apenas por três pessoas. Sempre tive o gosto por equipas pequenas. A Simtek a Minaridi do Pedro Lamy, a Forti-Corse, a Pacific… Por isso é que eu gosto da minha posição na Lola. O carro é o meu bebé, estou ciente disso e é o meu pescoço que está em jogo. Gosto dessa responsabilidade.

Quando surgiu a oportunidade de entrar na F1, queria uma equipa pequena, porque a possibilidade de aprender é muito maior. Quando comecei na Manor éramos  95 pessoas e chegamos a 235 durante a Temporada 2016”. 

Foi o crescimento da equipa que retirou um pouco da magia da F1. João Correia deixou de ser responsável por uma área abrangente para se dedicar apenas a um componente do carro, o que se tornou frustrante:

“Recrutamos mais gente e o grupo responsável pela frente do carro era constituído por nove ou dez pessoas em vez de ser só eu a desenhar. Passei a ser o responsável pelo arrefecimento dos travões e pela aerodinâmica dos triângulos da suspensão. Foi desolador.

Na F1 tornamo-nos especialistas numa coisa e eu seria eternamente o especialista de arrefecimento travões e não a pessoa que faz a asa dianteira, por exemplo. A F1 entristeceu-me um bocadinho e abriu-me os olhos. Não vou dizer que não gostei. Adorei e as duas pessoas com quem trabalhei mais proximamente são dos melhores amigos. Sinto saudades das pessoas com quem trabalhei, mas não da F1 em si”. 

O sonho da equipa portuguesa

Portugal é um país que gosta de desporto motorizado, mas que investe pouco nesta modalidade. Quando surgiu a hipótese de criar uma equipa portuguesa de F1, muitos torceram o nariz. Mas João Correia, a mente que montou o projeto todo, afirma com toda a certeza que era possível ter sucesso. A ideia não avançou, mas permitiu ao engenheiro entender o que era preciso para o projeto avançar:

“O projeto surgiu como uma aposta. A minha filha nasceu e o Rui Pinto foi visitar-nos ao hospital. Fomos tomar um café e ele desafiou-me a fazer uma equipa de F1 para deixar como legado às nossas filhas. Acabei por aceitar, mas com uma condição: eu definia as regras do jogo, porque eu é que tenha a experiência da indústria. O plano era falar com três empresas para começarmos a busca de apoios. Bastava uma delas não aceitar e o projeto parava. No dia 17 de outubro de 2019, depois de vários meses a fazer contactos, embarcamos num voo para Lisboa.

Fomos à reunião com a primeira empresa e disseram-nos que queriam estar no projeto. Fomos à segunda empresa e foi um sim automático. A terceira já tínhamos o sim provisório antes de nos reunirmos com eles. Por isso terminei essa ronda de reuniões com um problema nas mãos. Na altura, estava envolvido em potencialmente três equipas de F1.  Uma era a minha, outra era uma equipa com quem fiz 16 semanas de trabalho técnico e outra onde me prometeram ser o braço direito do diretor técnico se avançassem. O resto da história já é conhecido, o projeto acabou por não avançar.

Mas foi muito interessante, aprendi coisas que nunca pensei ter de saber. Sei quanto é que custa enviar um contentor num cargueiro, de Lisboa para Melbourne, com material para a boxe. Não fiquei triste porque aprendi muito. Eu sabia que ia ser difícil, mas descobri que afinal há interesse. Houve muita gente a contactei que me disse é Fórmula 1 é demasiado de cara. Não é. Basta fazer com que o retorno valha a pena. Tínhamos planos para as empresas com perspetivas do potencial retorno. Hoje em dia temos o Drive to Survive, mas eu já tinha uma tabela com os temas para 14 episódios de uma série para mostrar os bastidores da equipa”.

O projeto pretendia ser uma bandeira nacional. Uma equipa portuguesa, com staff português, a demonstrar o que de melhor se faz por cá:

Vi muitas críticas, inclusive no AutoSport, mas aprendi e sei o que é preciso.  Era um projeto de orgulho nacional. O plano de recrutamento passava por ter 25% de pessoal estrangeiro, com instalações no Algarve. Queríamos trazer pessoal experiente em fim de carreira para formar jovens engenheiros portugueses. Há empresas ótimas em Portugal nos moldes de compósitos. Tudo o que fossem componentes metálicos e de compostos dava para fazer em Portugal. A logística não seria muito diferente. Levar camiões do Algarve para as provas não era uma diferença exorbitante. Iríamos ter também escritório satélite perto do túnel de vento. A meu ver, o facto de estar afastado do centro da Europa não seria uma limitação”.

O início da Aventura Fórmula E

A Fórmula E deu passos gigantes na sua caminhada. De uma competição que muitos consideravam destinada ao fracasso, à transformação numa das principais séries da FIA, João Correia viveu tudo por dentro. Sendo ele o “empregado zero” da Super Aguri, uma das equipas presentes na primeira época, o engenheiro português, usou a sua espantosa polivalência para preparar tudo. Até material de ‘marketing’ e fotos foram da sua responsabilidade nos primeiros tempos. Uma aventura que recorda com carinho:

“ A Fórmula E foi, no início, uma aventura para todos. Todos tinham medo de ser eletrocutados, não aparecíamos na televisão, arranjar a patrocínios era extremamente complicado. O orçamento para a primeira temporada era cerca de 4 milhões. Presentemente, falamos acima dos 20 milhões.

Na altura, fui empregado zero, antes da Aguri ser anunciada. Fiz todo o material de ‘marketing’, as imagens usadas na apresentação, o recrutamento. Fui team manager, fui engenheiro chefe. 

Tenho boas recordações e foi um período muito interessante. Fui engenheiro do Takuma Sato, da Katherine Legge. Aprendi muitas coisas sobre a gestão e criação de equipa: o que é preciso comprar, quanto tempo é que leva”. 

O incrível mundo do software

Envolvido a 100% no projeto Lola, considera a Fórmula E mais interessante, do ponto de vista técnico, que a F1. Apesar de todo o trabalho realizado ao nível da aerodinâmica, o “grande circo” tem menos ‘nuances’ técnicas que a Fórmula E, onde as melhorias nos sistemas dos carros fazem grandes diferenças:

“A Fórmula E é mais interessante. Na F1, compra-se o motor, a suspensão é secundaria, a principal caraterística diferenciadora é a aerodinâmica e a performance dos pneus, regra geral, vem em detrimento da aerodinâmica do carro. Na Fórmula E, diria não haver muito benefício em perder muito tempo com a suspensão, mas se não for a indicada, é meio caminho para o insucesso. 30% da performance vem do ‘design’ e 70% vem do ‘software’. 

Cada equipa define os seus objetivos. Maximizar a eficiência, diminuir o peso… Queremos que os pneus durem mais durante a corrida ou performance máxima durante a qualificação? E a nível ‘software’, é um mundo interminável. Há muita gente diz que é mais complicado que a F1”. 

E de onde vem esta complexidade? Do ‘software’ de gestão de energia. É preciso gerir a energia disponível, recuperar energia através da travagem, conseguir não gastar em certos momentos, por isso, todos os cenários são tidos em conta para uma performance ótima:

“Os pilotos têm sistemas que dizem quando travar, quando levantar o pé, quando é que acabou a energia que podem usar entre a curva um e a curva dois. Por isso, quanto mais eficiente é o carro, maior é a probabilidade de chegar à frente. Sabemos que a corrida tem 46 voltas, sabemos que temos de usar esta quantidade de energia. Qual é a forma mais eficiente de gastar essa energia, de regenerar, de evitar gastos. Por isso, o ‘software’ é um mundo. Só na repartição de travagem há muito trabalho envolvido. É um sistema tridimensional que está sempre em movimento”.

O que as equipas podem mudar nos carros

É sabido que na Fórmula E os chassis são iguais para todas as equipas, sendo fornecidos pela Spark. Há muitos componentes comuns fornecidos a todas as equipas. Mas o que as equipas podem mudar faz toda a diferença:

“Há pouca coisa que podemos mudar no carro. Só temos que mudar a nível da afinação na parte comum, o que eles chamam o perímetro comum. Depois o Construtor pode desenhar o seu próprio motor, caixa de velocidades, inversor, a caixa onde está tudo instalado, ou seja, caixa de velocidades, o motor, o inversor. Temos a suspensão montada nessa caixa, somos os responsáveis pela eletrónica, pelo arrefecimento do nosso motor, da caixa de velocidades e somos responsáveis por todo o software”.

Lola a tentar recuperar oito anos de atraso

A Lola entrou na Fórmula E este ano e, por isso, é uma equipa muito jovem, com um longo caminho a percorrer. Este primeiro monolugar, o “bebé” de João Correia, é fruto de um trabalho de dois anos. Todas as decisões tomadas resultaram neste monolugar, que agora está nas mãos dos engenheiros de pista:

“A fase inicial, começou há dois anos, em janeiro de 2002. Começamos com a quatro conceitos diferentes do motor. Acho que tínhamos cerca de 10.000 versões da caixa de velocidades. Refinamos de modo que tivéssemos apenas uma caixa de velocidades por cada unidade motriz. 

Analisamos os ciclos de condução (aceleração, travagem). Houve uma análise muito profunda desses ciclos para os 8 circuitos para os quais tínhamos dados, sendo escolhido o melhor compromisso a nível de eficiência e de tempo por volta. 

Entretanto, durante o ‘design’ detalhado do motor e da caixa da velocidade ainda conseguimos algumas melhorias na eficiência. 

Há uma análise muito detalhada do ciclo de condução e se há um benefício energético ou não. Podemos ter mais 2% de eficiência, mas se consumirmos o dobro não nos adianta”.

O desafio aliciante que motiva o engenheiro português

O pequeno João de Évora sonhou em desenhar carros, o jovem João estudou para atingir o objetivo e o Engenheiro João chegou a realizar o sonho de desenhar um F1. Será que esta posição de líder técnico na Lola é aliciante para o português? A resposta não podia ser mais clara:

“Quando a minha mulher me questionou se era ESTE o cargo que de facto queria, respondi-lhe: ‘Não é Fórmula 1, não sou o diretor técnico de uma equipa de Fórmula 1, mas é a segunda melhor opção que podia ter. Porque efetivamente tenho a responsabilidade máxima pelo projeto e havemos descobrir se essas decisões que tomei também foram as certas ou erradas.”

João Correia já está focado no carro no Gen 4. Uma vez entregue a máquina de 2025, o foco segue para o monolugar seguinte. Os engenheiros de pista têm a missão de extrair o máximo do material à disposição, tarefa na qual João Correia muito raramente interfere:

“O meu foco foi garantir que este carro estava pronto para a primeira corrida. Eu não sou responsável por afinações. Posso dar a minha opinião, mas são apenas recomendações. Por isso, atualmente, sou mais um consultor da equipa de pista. Não vou a todas as corridas e assim posso focar-me no desenvolvimento do próximo carro, feito com base no ‘feedback’ que vamos recebendo da equipa de pista e concentrar-se nos planos a longo prazo para o programa Lola FE.”

Estou a tentar ter o menor a menor influência possível na forma como o carro é preparado e afinado. Já estive muitos anos no sentado no muro das boxes e sei como é frustrante ter alguém aos nossos ouvidos a perguntar ‘já experimentaste isto?’  Só se notar que há qualquer coisa a correr muito mal é que intervenho”. 

Foto: Sam Bagnall/LAT Images

Os objetivos para a primeira corrida eram muito modestos

A época já está em andamento e quando falamos com João Correia, os objetivos para a primeira corrida eram aparentemente modestos. No entanto, tendo em conta que se tratava efetivamente da primeira corrida desta estrutura, contra equipas já com muita experiência, a fasquia não poderia estar muito elevada:

“Para a primeira corrida, os objetivos eram estar legais, não ficar sem energia na última volta e ser minimamente competitivo. A nível pessoal, o objetivo era classificar-se em 14º lugar ou melhor – um resultado forte para uma equipa que começa do zero. Felizmente, cumprimos esse objetivo, marcando uma estreia promissora…”

No E-Prix de São Paulo, Lucas di Grassi foi 14º na qualificação e na corrida, apenas desistiu devido a um toque. Já Zane Maloney terminou em 12, após largar de 19º. Na segunda corrida (México), Maloney foi nono na qualificação, ficando muito perto de passar à fase a eliminar e na corrida foi 15.º enquanto Di Grassi foi 20.º. Tendo em conta os objetivos traçados, um arranque ótimo.  

O segredo para ter sucesso no motorosport? Resiliência!

O mundo das corridas não é fácil. A pressão, a competitividade, a exigência… Para ter sucesso neste mundo é preciso, acima de tudo, uma paixão muito grande. João Correia deixou algumas dicas para quem quer seguir esta via:

“É preciso ter muito gosto pelas corridas. Vais estar desempregado frequentemente, mudar de equipa, de local, vais ter muitos fins de semana fora de casa. Quem está aqui é porque gosta muito. Palavra-chave é resiliência. Estive nove meses sem emprego em 2009, viemos para UK para seguir o meu sonho e estivemos perto de regressar a Portugal. Mas as propostas surgiram. E enquanto for possível é dar o máximo para chegar a melhor posição possível e aproveitar”. 

O melhor piloto com quem trabalhou foi português

João Correia já trabalhou com alguns dos grandes nomes do desporto motorizado mundial, escolher um pela sua capacidade não é tarefa fácil e todos os pilotos o marcaram de alguma forma.

“Todos os pilotos foram marcantes. Primeiro piloto com quem trabalhei foi o Gonçalo Gomes. Uma joia de pessoa. Era muito verde para aprender, mas ele tinha muita paciência. Joffrey Didier foi o primeiro com quem fui engenheiro de pista e aprendemos muito.

No A1GP trabalhei com um piloto monegasco [NDR: Clivio Piccione] e aprendi muito da parte da ambição. Ele queria fazer uma equipa dele e dedicou-se mais a essa questão do que à sua preparação como piloto.

Na Fórmula E, Takuma Sato foi notável, tal como Kattherine Legge. É incrível o que ela teve de passar para chegar a algum lado no automobilismo. Em termos de desempenho, Brendon Hartley destaca-se, tal como Lucas di Grassi, que tem muita qualidade e uma experiência valiosa que apoia o desenvolvimento do carro. O Nico Muller também é muito bom e uma das pessoas mais simpáticas do paddock. Mas tenho de destacar o Félix da Costa. Trabalhei com o António e ele era muito maduro devido ao seu passado na Red Bull, mas quando trabalhei com ele, ele tinha abandonado o programa e estava com algumas dificuldades. Mas o António teve muito azar na sua carreira. Estou convencido de que se ele tivesse conseguido um lugar na F1, ter-se-ia saído muito bem. Tenho a certeza que teria conseguido pelo menos um pódio só por mérito”.

Quanto aos carros que marcaram a carreira do engenheiro, há três destaques e um deles corre atualmente:

“Há três carros que me marcaram. O A1GP que estou a reconstruir em casa. Tenho o Chassis 1 e o da minha equipa era o 21. O carro de F1 o de 2016 da Manor. Foi um orgulho extremo olhar para o carro e ver o trabalho feito por mim. E agora o meu bebé, o carro da Fórmula E da Lola que é inteiramente da minha responsabilidade”. 

O miúdo de Évora que teve coragem de voar mais alto

É a questão que se faz quando iniciamos um caminho novo, ou fazemos o balanço das conquistas. Será que valeu a pena? Será que o esforço, o sacrifício, as dificuldades e os desafios que foram enfrentados valeram a pena? João Correia não tem dúvidas. O engenheiro português viveu e vive o sonho, diariamente. A caminhada nem sempre foi fácil, mas as revistas oferecidas pelos pais, as várias horas passadas no Grand Prix  2 a mudar afinações, a sua carreira académica e profissional… toda esta viagem, com altos e baixos, faz João Correia sorrir: 

“Voltaria a fazer tudo igual. Coloquei um ponto final na minha carreira nas corridas, mas passado dois anos, voltei. Nas corridas, referimo-nos muitas vezes ao mundo lá fora. E o mundo lá fora é muito diferente do mundo das corridas. Aqui, as pessoas são responsáveis pelo que fazem e tenho plena confiança nos meus engenheiros. A tarefa atribuída é cumprida. 

Lá fora os prazos não são cumpridos. Os engenheiros de corrida são especiais porque o planeamento é levado ao extremo. É preciso ter um feitio muito especial e mesmo a família tem de ter uma paciência desgraçada. São muitas horas de trabalho, muita dedicação”. 

Se desistir foi opção? Claro que sim. Muitos duvidaram da sua capacidade para chegar onde chegou, mas João Correia conseguiu surpreender até os mais próximos:

“Houve um ponto que pensei em desistir. Nesta altura estaria a trabalhar na aviação portuguesa. Havia elementos da minha família que diziam que nunca iria conseguir. O meu avô, que desenhava autocarros e camiões durante a época da ditadura, sempre disse ‘não vais para a F1, porque só os melhores é que chegam lá’. Já o meu pai disse-me sempre para fazer o que gostava, desde que fizesse o melhor possível. 

À  medida que fui avançando e alcançando objetivos, o meu avô acabou por dizer, ‘tens muita coragem, eu não era capaz’. Tive muita sorte, conheci as pessoas certas, no momento certo. Consegui os meus sonhos. Consegui alcançar exatamente o que queria”.

Qualidade portuguesa, com certeza

A vida de jornalista permite-nos conhecer pessoas impressionantes. No mundo do motorsport, já tivemos o privilégio de falar com algumas e João Correia, pelo seu trajeto e pela sua postura, merece destaque. A deliciosa conversa de mais de hora e meia foi aberta e simples. De um homem apaixonado pela sua arte e por um desporto tantas vezes ingrato. Mas quantos poderão dizer que sonharam e tornaram o sonho realidade?

João Correia é um produto da indústria do motorsport, que leva o seu trabalho muito a sério, com uma precisão incrível, uma atenção ao detalhe impressionante e com um planeamento a toda a prova. Um engenheiro que foi capaz de montar o projeto para criar uma equipa de F1 100% portuguesa, com todos os pormenores, mesmo estando a trabalhar para outras entidades. 

João Correia é apenas um exemplo do muito de bom que se faz em Portugal e por portugueses. A comunidade de engenheiros lusos que se junta para comer pratos tipicamente portugueses no Reino Unido, é a imagem de um país que gosta de corridas e que sabe trabalhar ao nível dos melhores. Infelizmente, faz-se ainda tão pouco faz para valorizar esse produto. Todos os anos são formados homens e mulheres com um talento imenso, que dão cartas por esse mundo fora. 

Talvez seja tempo de aproveitar esse talento e formar ainda mais pessoas.  São estes engenheiros que vão encontrar as soluções para os problemas de amanhã, enquanto nos servem o melhor da tecnologia, nas pistas de todo o mundo. O selo de qualidade português deve ser enaltecido, tal como João Correia que quer fazer mais pelo motorsport português, ao mesmo tempo que lidera um projeto de Fórmula E. 

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sergiomiguel7972gmail-com
sergiomiguel7972gmail-com
1 mês atrás

Excelente artigo, parabéns AutoSport e claro parabéns ao João Correia pelo trajecto/ carreira e por tudo.
Uma inspiração que devia ser dada a conhecer a muitos jovens portugueses, para que acreditem e sonhem e trabalhem para os alcançar. Sim é possivel, vir de Évora, estudar na Covilhã, ou vir de outro sítio qualquer e estudar noutro sítio qualquer e chegar lá.
Muito interessante a vontade de criar uma equipa de F1 portuguesa, lembro-me de ler sobre isso na altura.
Parabéns e obrigado.

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