Ayrton Senna, 25 anos: Memórias de Eric Silbermann

Por a 1 Maio 2019 11:48

Eric Silbermann é hoje em dia consultor de Comunicação da Honda F1, mas em 1994 era jornalista de Fórmula 1, um dos melhores, e na altura escreveu uma crónica para o AutoSport, em que deu a sua visão de tudo o que aconteceu há 25 anos. Para lhe aguçar a leitura, aqui fica um excerto. A crónica pode lê-la logo de seguida: “Ayrton foi o melhor piloto de sempre? Quem quer saber e a quem é que isso interessa? Recordar-me-ei sempre dele como um ser humano complexo mas com um coração de ouro e isso é bem mais importante do que tudo o que conseguiu na sua carreira ao volante de um automóvel de competição”.

Nos próximos meses todos vamos ler um “mundo” de palavras ocas sobre Ayrton Senna, muitos sentimentos falsos e outras tantas afirmações da mais profunda amargura. Há poucas semanas perguntei a Rubens Barrichello como iria lidar com tudo isto e o piloto brasileiro respondeu: “Ayrton morreu há 10 anos e chegou a altura de colocar um ponto final na tristeza. Agora chegou a altura de nos sentirmos felizes com o que Ayrton representou para todos nós e devíamos estar a celebrar a sua vida e não a sofrer com a sua morte.” Um sentimento adequado que vou reproduzir nesta crónica.

Encontrei Ayrton pela primeira vez em 1988, quando ele começou a correr pela McLaren e eu foi contratado como “press officer” da Honda para a Fórmula 1. Nas pistas pouco tive a ver, profissionalmente, com ele, já que era a McLaren que organizava a maior parte do trabalho com os media, mas tinha de o questionar diariamente, logo que saía do carro e no final de cada sessão de treinos para escrever o meu “press release”. Senna odiava este momento! Tudo o que queria era falar com os engenheiros e olhava para o meu trabalho como uma inutilidade que interrompia a sua concentração. De facto, quando a Honda abandonou a F1 no final de 1992, enviou-me um cartão de Boas Festas com a seguinte mensagem: “Finalmente estou livre do teu maldito gravador!”. Mas Ayrton estava enganado porque optei por uma carreira de jornalista e continuei atrás dele e das suas declarações. E já que as prestações da McLaren em 93 caíram a pique, um dos anos em que Ayrton melhor guiou como, por exemplo, no chuvoso GP da Europa em Donington, ainda tentei convencer o “grande homem” que os sucessos prévios da McLaren de 88 a 92 deviam-se mais a mim do que a ele, mas não sei porquê Ayrton nunca concordou com este ponto de vista.

As pessoas na Honda tratavam-no como um Deus, mas ele era, tão só e apenas, um homem. Claro que era um piloto extraordinário, mas tal como dizemos em Inglaterra, ele “vestia as pernas das calças uma de cada vez”, tal como qualquer outra pessoa. Por vezes parecia que tinha pena de mim, logo que se apercebeu que os meus patrões na Honda pouco entendiam sobre o trabalho de relações públicas: “Deves ser louco para teres este emprego,” disse-me uma vez.

Mas, por vezes, era bastante difícil trabalhar com ele. Como, por exemplo, quando desistiu no GP de Phoenix e se escondeu dentro da “motorhome”, recusando-se a sair para prestar declarações para o meu comunicado de imprensa. Fiquei sentado cá fora a ver a televisão que transmitia imagens do exército chinês a atacar os manifestantes na Praça Tianamen em Pequim. Então percebi que a F1 não era a coisa mais importante do mundo e fui-me embora sem as declarações. Ayrton questionou-me sobre esta situação na corrida seguinte e, depois do sucedido nunca mais tivemos qualquer problema. Contudo, era bem capaz de passar 15 minutos a explicar-me porque é que estava muito ocupado para conceder uma entrevista de 5 minutos! Era extraordinariamente meticuloso em tudo o que fazia. Confrontado com centenas de posters para autografar, Prost ou Berger tentariam fazê-lo o mais depressa possível, mas Ayrton teria o maior cuidado com cada um deles, assegurando-se que a tinta tinha secado antes de autografar o próximo. Uma situação típica da sua atitude perfeccionista.

Apesar de, por vezes, se irritar com eles, Ayrton gostava de trabalhar com a Honda já que o construtor o prezava tanto. Uma vez esteve na Disneyworld de Tóquio e, no final, acompanhei-o ao aeroporto de Narita, onde apanharia um avião para o GP da Austrália. À medida que nos encaminhávamos para o balcão e que o ajudava a fazer o “check in” disse-me: “Sinto-me como um rapazinho sem a companhia dos pais. Afinal o que é que eu sei?” Ayrton pretendia dizer-me que, cada vez que estava no Japão ou comparecia em acções da Honda, tudo, mas mesmo tudo, era feito para ele e em função dele e tinha esquecido o simples acto de pensar por si próprio.

O pior tempo que passei com Ayrton foi quando ele e Prost deixaram de se falar. Lembro-me de estar sentado nas instalações da equipa em Suzuka, onde os aposentos eram bem pequenos e os dois homens não conseguiam, sequer, olhar um para o outro. Uma atmosfera verdadeiramente irrespirável. Quando conseguiu ter um ascendente sobre a equipa descontraiu-se bastante e tornou-se ainda mais confiante e satisfeito da vida quando Gerhard Berger se juntou à equipa. Na realidade, um dos meus trabalhos “extra-oficiais” era ir aos aposentos da equipa durante a hora de almoço de domingo e quando estavam a preparar-se para a corrida, contar-lhes algumas das piadas e dos mexericos que circulavam no “paddock”.

Tal como para a generalidade dos brasileiros a vida familiar era muito importante e Ayrton perguntava-me sempre como estavam os meus filhos. Lembro-me de me ter encontrado com ele num aeroporto perto de Oxford, antes do GP da Grã-Bretanha. Tinha como missão apresentá-lo a um jornalista de automóveis que tinha chegado num Honda NSX para Ayrton fazer um teste de estrada. Tinha o meu filho de sete anos comigo e o jornalista e o fotógrafo tiveram de esperar enquanto ele conversava com o meu filho, que estava demasiado envergonhado para falar. Ayrton perguntou se ele se portava bem e ofereceu-lhe um “pin” com o seu capacete e uma foto autografada. No dia 1 de Maio de 1994 o meu filho foi-se deitar segurando essa foto contra o peito.

Ayrton foi o melhor piloto de sempre? Quem quer saber e a quem é que isso interessa? Recordar-me-ei sempre dele como um ser humano complexo mas com um coração de ouro e isso é bem mais importante do que tudo o que conseguiu na sua carreira ao volante de um automóvel de competição.

Eric Silbermann

Caro leitor, esta é uma mensagem importante.
Já não é mais possível o Autosport continuar a disponibilizar todos os seus artigos gratuitamente.
Para que os leitores possam contribuir para a existência e evolução da qualidade do seu site preferido, criámos o Clube Autosport com inúmeras vantagens e descontos que permitirá a cada membro aceder a todos os artigos do site Autosport e ainda recuperar (varias vezes) o custo de ser membro.
Os membros do Clube Autosport receberão um cartão de membro com validade de 1 ano, que apresentarão junto das empresas parceiras como identificação.
Lista de Vantagens:
-Acesso a todos os conteúdos no site Autosport sem ter que ver a publicidade
-Oferta de um carro telecomandado da Shell Motorsport Collection (promoção de lançamento)
-Desconto nos combustíveis Shell
-Acesso a seguros especialmente desenvolvidos pela Vitorinos seguros a preços imbatíveis
-Descontos em oficinas, lojas e serviços auto
-Acesso exclusivo a eventos especialmente organizados para membros
Saiba mais AQUI
Subscribe
Notify of
1 Comentário
Inline Feedbacks
View all comments
últimas F1
últimas Autosport
f1
últimas Automais
f1
Ativar notificações? Sim Não, obrigado