Entrevista a Reinhard Klein: “EM 1986, TIVE RECEIO E DECIDI NÃO IR A SINTRA…”

Por a 26 Maio 2020 11:52

Para quem gosta de ralis e aprecia fotografia, o nome Reinhard Klein dispensa apresentações. Atrás da objetiva, o alemão começou há 40 anos a lançar um olhar muito próprio sobre a modalidade, percebendo, desde muito cedo, que a beleza dos ralis e, consequentemente, o segredo para uma boa foto passam pela simbiose perfeita entre opostos: de um lado, um objeto tecnologicamente avançado, concebido e guiado pelo Homem; do outro, um cenário inóspito, a natureza em estado puro. Durante o último Rali de Portugal, fomos encontrá-lo na Exponor, de máquina ao peito. Tal como da primeira vez que viera a Portugal, fazia-se acompanhar por Ursula, a sua mulher e companheira de inúmeras viagens pelo mundo, em busca de locais perdidos, perpetuados no tempo em cada “disparo” do obturador. Klein recordou histórias de uma época excitante e revelou que é nas curvas do WRC que continua a sentir-se feliz, registando, com a sua câmara, as emoções de uma competição única, que ele entende e sente como poucos…

Tendemos a considerar que os fotógrafos profissionais obedecem ao estereótipo do ser solitário que prefere comunicar através de imagens, em detrimento das palavras. Foi, por isso, com alguma surpresa que, ao desafiar Reinhard Klein a partilhar com os leitores do Autosport algumas recordações de outros tempos do Rali de Portugal, recebemos a seguinte resposta: “Claro! Mas convém sentarmo-nos primeiro…”

Quando lhe perguntámos em que ano se deslocara, pela primeira vez, ao nosso país, para fotografar a prova portuguesa, olhou para Ursula, confirmado que havia sido na longínqua edição de 1977. Estava, assim, aberto o baú das memórias de um dos maiores ícones da fotografia de desporto motorizado…

Que lembranças guarda desse Portugal que conheceu em 1977?

Na altura era estudante universitário e, embora a fotografia ainda não fosse levada muito a sério, decidi vir a Portugal com a Ursula, para fotografar o rali. As viagens de avião ‘low-cost’ estavam longe de ser uma realidade e era mais barato vir de automóvel, pelo que optámos por trazer o nosso próprio carro desde a Alemanha, numa viagem que durou 2 ou 3 dias. Recordo que, na altura, Portugal não tinha mais de 20 quilómetros de auto-estrada e a ligação entre Lisboa e o Norte era feita por estradas nacionais e secundárias, muitas vezes em mau estado e, à medida que nos aproximávamos dos meios rurais, a presença de animais no meio da estrada era um obstáculo a ter em conta. Chegar às Classificativas, durante a noite, por montes e vales, curvas e mais curvas era uma aventura. Aquelas eram as estradas mais perigosas que conhecera até então. Nesse aspeto, o país não tem, hoje, comparação. Com fantásticas auto-estradas, chegamos atualmente a qualquer lugar de forma rápida e agradável mas, naquele tempo, era um enorme desafio. Apenas com a ajuda do mapa e sem auxiliares de navegação, chegar aos troços representava uma corrida dentro da própria competição…

Ficou impressionado com a forma apaixonada como os portugueses viviam o seu rali?

Absolutamente. Havia espectadores por todo o lado. Ficava abismado pela forma pouco ordeira como conduziam para chegar aos troços, estacionando onde queriam e como queriam. Sentia-se que o rali era algo especial para as pessoas. O seu fascínio pelos carros e pelos pilotos era bem visível. Na altura, os carros do dia-a-dia eram menos potentes do que são hoje, pelo que, quando surgia a oportunidade de ver carros de competição com 250 cavalos a varrer estradas com mau piso, era uma festa que durava vários dias. À medida que os anos avançavam, no final da década de 70 e no início dos anos 80, esse entusiasmo ia crescendo e via-se cada vez mais gente na berma das classificativas, mais trânsito no acesso aos troços e mais loucuras cometidas ao volante por quem queria ir de um troço para o outro. Era no meio deste cenário que decorria uma competição que, de repente, viu os seus carros ficarem com o dobro da potência e o dobro da tracção. A tensão era crescente e, para ser franco, desde 1982 que eu antevia a possibilidade de ocorrer um acidente fatal, não apenas em Portugal mas noutros lugares, como Sanremo. E nesses anos dos Grupo B, confesso que, quando chegava a Portugal ou a Sanremo, pensava comigo mesmo “oxalá tenha sorte e nada me aconteça…”

A sua premonição viria, infelizmente, a confirmar-se em 1986…

Confesso que sempre tive medo de Sintra porque, para fotografar aí, só havia uma maneira: estar á frente de toda a gente, o que significava ser o primeiro a levar com um carro em caso de acidente. Por isso mesmo, em 1986, decidi não ir fotografar para a Serra de Sintra. Estava demasiado receoso e decidi fotografar apenas os carros e os pilotos nas assistências, recusando-me a fazer parte daquele casino onde se arriscava a vida. Ainda hoje, quando vejo as imagens daquele ano, penso quão inaceitável era toda aquela situação a que se chegou mas, no entanto, o mais impressionante é que todos os intervenientes – jornalistas, fotógrafos, pilotos, navegadores, dirigentes, organizadores – suportaram aquela época e todos aceitaram que se chegasse àquele ponto. A própria FIA ignorou o problema esperando sempre que as provas corressem sem problemas mas era evidente que, algum dia, as coisas não iriam correr bem. Mesmo nos anos que se seguiram, não houve uma grande evolução no controlo dos espectadores. Estes deixaram de se deslocar em massa para os troços como acontecia no passado porque o fascínio que os Grupo B exerciam, havia desaparecido. Só mais tarde, no início dos anos 90 é que o assunto da segurança começou a ser levado a sério pela FIA.

A riqueza do Rali de Portugal assentou desde sempre na multiplicidade de cenários e ambientes que os concorrentes encontravam. Na perspetiva de um fotógrafo, quais eram os aspetos mais marcantes da prova portuguesa?

Fotografar o rali de Portugal era, e é, uma experiência fantástica, pela diversidade das classificativas e pela imprevisibilidade das condições meteorológicas. Para nós, fotógrafos, a prova portuguesa era uma clássico porque nunca sabíamos o que nos esperava. Era um pouco como o Monte Carlo. A beleza das paisagens, as aldeias por onde passava, as estradas, as pontes, faziam do rali um evento bastante interessante para fotografar. Por falar em pontes, lembro-me do famoso toque do Mercedes de Björn Waldegård, na ponte do final da Cabreira, em 1980. A minha mulher Ursula estava nessa ponte e, por sorte, decidiu mudar de local instantes antes de passar o Waldegård! Éramos todos tão inconscientes nesse tempo. Conduzir nos percursos de ligação para chegar às classificativas a tempo de fotografar os primeiros era uma autêntica corrida com milhares de espectadores que faziam o mesmo, guiando como loucos. Na altura, até podíamos achar fascinante mas, olhando à distância, concluímos que era uma verdadeira loucura e, ainda hoje, quando penso nesses tempos, questiono-me como foi possível sobreviver nessa época.

Concorda que evoluímos do 8 para 80 e que, hoje em dia, falta aos ralis um pouco da loucura, da aventura e do desafio que marcaram esses anos?

Hoje em dia, os ralis estão demasiadamente concentrados à volta dos parques de assistência. Para mim, um rali deve incluir um percurso com condições extremas, traçado para desafiar os limites dos melhores carros e dos melhores pilotos do mundo. Hoje, isso não acontece. As escolhas do itinerário são demasiado condicionadas, excluindo-se muitas opções porque são demasiado longas, perigosamente rápidas ou excessivamente deterioradas, simplesmente porque os carros não foram concebidos para as poderem enfrentar. Passámos a assistir a verdadeiras corridas de sprint em troços de terra. Os pisos são verdadeiras auto-estradas, o que para os pilotos deve ser aliciante do ponto de vista da condução, mas não são verdadeiramente desafiantes para os carros. Perdeu-se o conceito de longas provas que percorriam o país de norte a sul, indo às aldeias perdidas e ao encontro das pessoas. Ao contrários das outras modalidades em que os espectadores têm que se deslocar a um estádio ou a um circuito para assistir ao espectáculo, os ralis iam ao encontro das populações e isso hoje já não acontece. Os organizadores e as características dos carros deviam ter flexibilidade suficiente para permitir isso mas, se calhar, esta é uma forma de pensar típica de gente mais antiga, como eu (risos)…

Apesar da evolução que a modalidade vem sofrendo, é possível, ao fim de 40 anos, sentir a mesma paixão por este desporto e pela fotografia em particular?

Certamente que sim. A paixão permanece, mesmo havendo atualmente aspetos menos entusiasmantes. A tecnologia digital veio trazer novos desafios e a vida de um fotógrafo é hoje bastante diferente da que era noutros tempos. No entanto, a realização de fazer uma boa fotografia no cenário perfeito continua a entusiasmar-me e a vontade de ir para o meio da serra, para fotografar e estar em contacto com as pessoas, não se alterou. Mantenho a mentalidade de rapaz que tinha quando comecei (risos)…

A agência McKlein, da qual é um dos fundadores, tem feito as delícias de milhares de fãs através da publicação de livros sobre a história dos ralis, revelando parte do valioso arquivo fotográfico que tem vindo a ser construído ao longo de décadas. Estão previstos alguns lançamentos proximamente?

A publicação de livros é, nos dias que correm, um tema complexo. Atualmente, os livros em papel tendem a ser considerados “coisa do passado”. As formas modernas de comunicar são de consumo instantâneo, na medida em que devem ter interesse e uma apetecível aparência no dia em que são publicadas mas, no dia seguinte, já caíram no esquecimento. Da mesma forma, o trabalho de quem fotografa é bastante apreciado durante os dias em que decorre um rali mas, na terça-feira seguinte, já está completamente esquecido e ninguém o procura. Deste modo, tende a ser cada vez mais difícil vender o número de cópias necessárias para rentabilizar a produção de um livro. Nós adoramos fazê-lo e está neste momento em preparação um novo livro sobre a história dos antigos Ford Escort, que deverá ser publicado no final do ano. Adoro fotos do antigamente e continuo a comprar arquivos de fotógrafos que, entretanto, deixaram a atividade. Temos estado a digitalizar todo esse acervo que nunca foi visto pelas pessoas, mas temos que pensar na melhor forma de o tornar acessível. Veremos o que o futuro nos reserva…

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