Crónica: “Parabéns, Nico. Mereceste-o”.

Por a 2 Dezembro 2016 11:02

Sempre gostei de Lewis Hamilton. Desde o momento em que o britânico se estreou na Fórmula 1, em 2007, que vi nele o que se calhar outros vêm hoje em Max Verstappen, ou em seu tempo viram em Sebastian Vettel ou Ayrton Senna: uma enorme sede por triunfos; um talento imensurável; uma rapidez apenas ao alcance dos pré-destinados.

Tudo o resto, a personalidade, não é acessório, mas não é para aqui chamado. É o que nos permite gostar mais deste ou daquele piloto (por exemplo, penso que não estarei a pôr-me fora de pé se disser que Daniel Ricciardo é uma figura carismática e que quase todos os que acompanham a Fórmula 1 sentem, de alguma forma, empatia pelo australiano). Mas não nos deve turvar o pensamento ao ponto de ignorar por completo os factos. E é por isso que, aos meus olhos, Nico Rosberg é um justo campeão de 2016 – apesar de Hamilton ter tido um carro menos fiável.

DA WILLIAMS À MERCEDES

Recuando um pouco na história, tal como o seu rival e amigo de infância Lewis Hamilton, o filho de Keke Rosberg chegou à Fórmula 1 com um palmarés considerável e o estatuto de grande promessa. Foi o primeiro vencedor da GP2, em 2005 (e o primeiro de uma série de pilotos que, após vencerem a competição ou terminarem nos três primeiros lugares, entraram na Fórmula 1, como Hamilton, Kovalainen, Piquet Jr. ou Hulkenberg). Mas teve o ‘azar’ de começar numa já decadente Williams, com motores Cosworth, ao contrário de Hamilton, que entrou na segunda melhor fase da McLaren na década de 2000. Antes disso, Rosberg tinha também vencido a Fórmula BMW, em 2002.

Apesar de não ter ao seu dispor um carro competitivo, o então jovem piloto de 21 anos terminou nos pontos na corrida de estreia, no Bahrein, depois de perder o nariz do carro na primeira volta e por isso obrigado a parar nas boxes para trocar a peça. Além de se ter classificado em sétimo, atrás do colega de equipa Mark Webber, Rosberg marcou a volta mais rápida da corrida, tornando-se, naquele momento, no piloto mais jovem de sempre a consegui-lo. Na corrida seguinte, na Malásia, qualificou-se em terceiro, até que o motor cedeu, mas o facto de ter amealhado  apenas 4 pontos em 2006, e Webber outros 7, diz tudo sobre o que foi a época da Williams: miserável.

Nos anos seguintes, a ‘coisa’ não melhoraria muito: a Williams passou a incorporar motores Toyota, numa primeira fase promissores (o quarto lugar nos construtores em 2007 era animador, mas em 2008 a equipa caiu para 8º, sendo das primeiras a concentrar-se no monolugar do ano seguinte). O anunciado ‘salto’ teimava em não surgir, e por isso foi com naturalidade que Rosberg quis mudar de ares em 2010, para a nova Mercedes, num momento em que já tinha sido associado à McLaren (logo em 2006, após o primeiro ano com a Williams, e depois no final de 2007, quando Fernando Alonso se incompatibilizou com Ron Dennis e a equipa de Woking).

Mas ainda agora a diretora-adjunta Claire Williams enalteceu o antigo piloto: “Penso que era bastante óbvio que ele podia ser campeão. Sabes que existem certos pilotos que têm o que é preciso e ele tinha. Ouvi que ele tinha precisado de 23 vitórias para se sagrar campeão do mundo, mas tens pilotos que foram campeões com menos triunfos. Ele fez um trabalho fantástico. Fez tudo o que precisava de fazer. Provavelmente ele sente que precisou de muito tempo para chegar aqui, mas ele é realmente um justo campeão deste desporto e estou muito contente por ele. Ele tem sido um grande embaixador da Fórmula 1.”

 

Nico Rosberg Williams

UM DOS MELHORES DE SEMPRE

A Mercedes procurava reerguer-se após a compra da Brawn e chegar rapidamente aos triunfos, algo que há muito não acontecia com a McLaren. Contrataram uma nova dupla em Rosberg e Schumacher, e nos três anos que conviveram juntos, o mais novo dos pilotos alemães superou sempre o seu colega de equipa. Sim, Schumacher era de uma geração distinta e tinha 41 anos quando decidiu regressar à Fórmula 1 com a Mercedes. Mas teria sido fácil para si sedimentar a sua influência na equipa, com Ross Brawn ao leme da estrutura, figura que conhecia bem. Rosberg, no entanto, não se deixou intimidar. Foi 7º, 7º e 8º, ao passo que ‘Schumi’ foi 9º, 8º e 13º entre 2010-2013.

Chegamos a 2013 e o jogo muda por completo. Lewis Hamilton entra para o lugar do heptacampeão Schumacher, uma decisão completamente estapafúrdia, diziam os críticos. Termina o ano em 4º, Rosberg em 6º. Mas o alemão levou para casa mais um triunfo (2-1). Ambos contribuíram para o segundo lugar nos construtores e a partir daí, bom, é o que sabe: domínio absoluto na Fórmula 1 desde que a era dos V6 híbridos foi introduzida.

Em 2014, o britânico foi campeão com 11 triunfos, contra cinco de Rosberg, e em 2015 com 10 vitórias, contra as seis de Rosberg. Com nove triunfos, vimos em 2016 o Nico mais forte de sempre. Em modo gestão? Sim. Assustado? Muito. Como ele próprio disse, “depois de vencer todas aquelas corridas [as três do final de 2015 e as quatro do início de 2016], tornou-se muito claro que seria totalmente errado começar a pensar no campeonato porque tenho o Lewis Hamilton como colega de equipa. Ele vai sempre lutar e procurar a reviravolta, e será sempre extremamente difícil superá-lo”.

Os elogios não se ficaram por aqui. Logo após a cerimónia do pódio, disse:  “Ele é um dos melhores pilotos de sempre da Fórmula 1, portanto é incrivelmente intenso correr contra ele. Ao longo das nossas carreiras ele conseguiu sempre superar-me, ter aquele extra, por isso conseguir finalmente derrotá-lo é fantástico. Tenho um enorme respeito por ele porque ele faz um trabalho fantástico. Ele tem sido incrível ao longo dos anos e lutou até ao último metro da corrida, o que tornou tudo extremamente difícil, mas ainda mais bonito nos momentos que se seguiram”.

E após muita controvérsia, também Lewis Hamilton soube ser magnânimo na derrota, longe dos holofotes dos media, criando ele próprio o seu conteúdo: “Dissemos que seríamos campeões, agora somos os dois! Parabéns Nico, fizeste tudo o que um campeão precisa de fazer. Bem merecido”, ao que Rosberg respondeu: “Obrigado pelas tuas palavras, é inacreditável que o que estávamos a falar nessa noite de férias na Grécia, tornou-se mesmo realidade.”

Nico Rosberg e Michael Schumacher

RIVAIS, COLEGAS E AMIGOS

Ao longo dos últimos dias tenho lido muitas vezes que Hamilton foi humilde demais. Que devia desafiar a Mercedes. Que a Mercedes não era nada sem o piloto britânico. Esquecendo-se que a Fórmula 1, como em muitos outros desportos, é um trabalho de equipa. Para Hamilton brilhar, os engenheiros têm que desenvolver um bom monolugar, os mecânicos têm que prepará-lo da melhor forma, os técnicos têm que acertar na estratégia, o diretor de equipa tem de gerir conflitos e tensões no seio da equipa.

Tensões entre dois pilotos – um alemão e um inglês – que além de rivais foram e são colegas de equipa, e já foram amigos de infância. Está a ver o que isso significa? Está a ver todas aquelas memórias a virem ao de cima? Os almoços, os jantares, as brincadeiras, as férias, as corridas, as conversas sobre karting e a Fórmula 1, os sonhos que foram partilhados e que agora vivem enquanto adultos? E depois tudo isso a ficar compartimentado numa ‘gaveta’, porque o desejo, a obstinação de querer vencer não permite que se mantenham essas amizades? Porque a vitória de um significa a derrota de outro e o adiamento desse sonho?

Rosberg tem mérito. Muito. Mesmo que Lewis Hamilton tenha sido melhor em três das quatro temporadas que até agora conviveram juntos. Porque teve que lidar com o facto de saber que o seu rival é mais rápido. E porque teve de se levantar do chão. De se reiventar. De trabalhar mais. De estar ainda mais focado. De aproveitar todas as falhas que Hamilton pudesse sofrer, sejam elas mecânicas ou simplesmente distrações da sua vida pessoal, para chegar ao sonho, tocar nele e aproveitar a oportunidade. Porque não se sabe se haverá outra. Porque é isto o que caracteriza a Fórmula 1.

Sim, Hamilton deu muito à Mercedes. 32 triunfos. Dois títulos de campeão e contribuiu para outros três de construtores. Ajudou a inúmeros recordes e a definir uma era. Mas a Mercedes também lhe deu muito. Para começar, a possibilidade de se expressar como bem entende ou de levar os troféus que conquistou em pista para casa. Algo que não acontecia na rígida McLaren de Ron Dennis. E um carro dominador. Que lhe permitiu superar Alain Prost e Ayrton Senna. Tornar-se no piloto britânico de maior sucesso na Fórmula 1. Superar Sebastian Vettel (para já, em triunfos e ‘poles’), o que parecia altamente improvável em 2013, quando o alemão conquistou o quarto título mundial da carreira.

Na Ferrari de Enzo, alguma vez Hamilton poderia desafiar a equipa, como o fez em Abu Dhabi, ou como antes o tinha feito após o GP da Malásia, sem ser excomungado por isso? Prost, também ele um tricampeão quando se mudou para Maranello, foi despedido por muito menos.

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JOGO PSICOLÓGICO

O calor do título passou. E honestamente o que vi no pódio de Abu Dhabi pareceu-me genuíno. Hamilton sabia que tinha dado tudo para revalidar o troféu em Abu Dhabi. Mas também sabia que era tricampeão e que o triunfo de Rosberg não tinha hipotecado esse seu legado. Sabia, até, que, aos olhos da opinião pública, continuava a ser o número 1. “The best of the rest”. Havia desapontamento, mas não como em 2007, como explicou no pódio. Que tinha feito tudo o que estava ao seu alcance. Mas talvez o tenha feito tarde demais, como diz Jacques Villeneuve.

As sete corridas que Rosberg venceu de forma consecutiva não podem ser explicadas pelos azares de Lewis Hamilton. Nem as nove vitórias de 2016. Nem o facto de se ter levantado novamente quando, antes do GP de Spa, em agosto, Lewis recuperou dos 43 pontos de desvantagem que chegou a ter para o colega de equipa e transformou-os num avanço de 19 pontos.

Ambos travaram um jogo psicológico, do qual o alemão saiu vencedor por ter aproveitado as suas oportunidades. Hamilton pode queixar-se da fiabilidade do seu carro, mas também houve outros pilotos que passaram pelo mesmo na história da Fórmula 1, como Kimi Raikkonen, em 2003 ou 2005. O inglês continua a ser mais rápido do que o seu colega de equipa? Poucos o duvidam. Mas o título não é atribuído ao piloto mais rápido e sim ao mais consistente.

Mesmo sem os azares mecânicos, a verdade é que, desta vez, Rosberg foi melhor nesse capítulo e por isso um justo campeão do mundo, apesar de ter vencido menos vezes (9-10), feito menos pole-positions (8-12) e subido menos vezes ao pódio (15-7). Para mim, a diferença esteve aqui: enquanto o alemão venceu seis das oito vezes em que partiu da pole (um aproveitamento de 75%), Hamilton apenas triunfou em sete das 12 vezes que partiu do primeiro lugar da grelha (um aproveitamento de 58,33%, que ‘melhora’ para 66% se lhe atribuirmos ficticiamente o triunfo na Malásia – a tal prova que muitos defendem que definiu o título, incuindo o patrão da equipa, Toto Wollf, esquecendo-se que, em Espanha, Rosberg também poderia ter vencido essa corrida e ’embalar’ para cinco triunfos consecutivos).

Quer mais um exemplo de consistência? Que tal a percentagem de voltas (75%) que Rosberg cumpriu dentro dos três primeiros classificados em 2016 (957 voltas em 1268).

Como diz Filipe Albuquerque, não existem campeões injustos. Para se vencer teve que se conquistar o maior número de pontos e aproveitar as oportunidades.  Foi o que Nico Rosberg fez aos 31 anos, por apenas cinco pontos (385 vs 380), contra o pior adversário que poderia ter. Parabéns, Nico. Mereceste-o.

André Bettencourt Rodrigues

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