Rali de Monte Carlo: O começo do fim de uma nova era

Por a 16 Março 2020 15:13

O Rali de Monte Carlo de 1986 representou o nascimento de uma nova era. Uma nova era de poder e força, de pilotagem pura e heróica, ao volante de bólides violentos, com potências na ordem dos 500 cv.

A prosa assinada por Fernando Petronilho, logo no início da entrada do texto principal dado à estampa no AutoSport de 29 de janeiro de 1986, diz tudo sobre a emoção que foi o Rali de Monte Carlo, a primeira prova do Campeonato do Mundo de Ralis desse ano: “Quando um dos mecânicos da Lancia postado perto do final do troço de La Cuillole, impossível de conter em si todo o entusiasmo que lhe atravessava a alma, gritava pelo rádio da assistência: “Eles vêm juntos, eles vêm juntos”, foi quase como se Platini tivesse marcado um golo decisivo a favor da Juventus para a final de uma taça europeia”

Esta gloriosa associação entre dois desportos tão populares funciona agora como catarse daquilo que se viveu nas estradas do Monte Carlo nesse ano. “O Campeonato parece lançado”, diziam as parangonas do título. Para, mais abaixo, se ler, que “Monte Carlo 1986 foi, sem dúvida, uma excelente prova a todos os níveis, confirmando aquilo que se previa, ou seja, que o campeonato deste ano promete luta sem quartel para o título”. Sábias e premonitórias palavras, não surgisse mais tarde o ‘caso’ da prova portuguesa e da, a partir de então, anunciada morte dos Grupo B. Mas, regressando a outra crónica, a da prova monegasca, assinale-se que os gritos do entusiasmado mecânico da Lancia foram bem o reflexo daquilo que se passou ao longo das mais de três dezenas de especiais: “Os abraços sucederam-se, Henri Toivonen e Sergio Cresto foram recebidos triunfalmente na assistência e se é verdade que ainda faltavam três troços para o rali terminar, a marca italiana estava agora certa de conseguir triunfar pela oitava vez naquela que é a mais prestigiada prova de estrada de todo o Mundo”.

Em traços gerais, o AutoSport retirou outras conclusões do resultado do Rali de Monte Carlo – o início de um Mundial que tinha todas as condições para sagrar Henri Toivonen, então o piloto de que se falava, pela sua coragem, mas também pela sua fabulosa pilotagem daqueles ‘monstros’ que davam pelo nome de Grupo B. E, em especial, Lancia

Delta S4: esta tinha sido “uma vitória que a Lancia e sobretudo Henri Toivonen e Sergio Cresto tinham merecido inteiramente: o seu domínio tinha-se feito sentir ao longo de quase toda a prova e nem mesmo um estúpido acidente de viação conseguiu roubar ao jovem finlandês o seu terceiro triunfo no Mundial e o segundo consecutivo”. Por outro lado, “para a Peugeot, (…) tinha sido o sinal de que a Lancia não ganhara o RAC por acaso, que a marca italiana se encontra otimamente apetrechada, quer em termos mecânicos quer em termos humanos e que neste ano a luta pelo título vai ser bem diferente da registada em 1985, pelo que o construtor francês vai ter que reder o máximo, se quiser manter o cetro que agora detém”.

“Uma questão de pilotos”

Mantivemos ativo este subtítulo, o mesmo que surge na reportagem do AutoSport de há 34 anos. “Monte Carlo é uma prova bastante contingente a diversos níveis, mas o principal problema costuma ser o da escolha de pneus”. E isso verificou-se mais uma vez, “mas não se pode apontar apenas os pneus como motivo da superioridade da Lancia:

o lado humano contou igualmente bastante e também aqui se pode dizer que a marca italiana levou a melhor acabando por ser Timo Salonen o grande derrotado de Monte Carlo, mais mesmo que a própria Peugeot”.

Ou seja, o Rali de Monte Carlo de 1986 foi “uma questão de pilotos” e ganhou aquele que foi mais piloto, com mais coragem à flor da pele e que melhor soube gerir, quando isso era preciso e melhor soube arriscar quando isso também foi preciso: “De todos os pilotos da frente, os que passaram por menos problemas foram Timo Salonen e Hannu

Mikkola, mas qualquer deles não pareceu com fôlego para conseguir lutar de igual para igual com Toivonen”. Um facto confirmado pelos próprios, com Toivonen a confessar ao repórter do AutoSport, numa altura em que faltava “apenas metade do último percurso para se disputar” e quando o piloto da Lancia tinha “pouco mais de 30 segundos” de avanço sobre Salonen que “se não tiver problemas mecânicos, vencerei o rali. O Timo é um piloto que gosta de jogar pelo seguro nunca correndo grandes riscos. Não creio que ele vá atacar a minha posição”. E não o fez. No final da prova, Salonen admitiu tudo aquilo que Toivonen já ‘sabia’: “Monte Carlo faz parte do estilo de provas que pessoalmente não me agrada: quando tenho que conduzir no asfalto molhado, é uma verdadeira catástrofe. (…) Nesse aspeto o Henri tem uma vantagem grande pois, antes de vir para os ralis, disputou provas em circuito, pelo que sabe as trajetórias que há de tomar. Pela minha parte e como só sei andar de lado, quando tenho que conduzir nesse

tipo de piso, nunca consigo estar à vontade”. Enfim, quem confessa as suas… debilidades não merece castigo – nem outra coisa além de um segundo lugar, posição que também Salonen decidiu que “era melhor que nada”. Portanto, o Monte Carlo de 1986 foi a prova de Henri Toivonen: exibiu-se “de uma forma superior, muito seguro de si, sem cometer qualquer erro.” Mais: vítima de um acidente de trânsito de que não teve culpa, Toivonen ficou magoado “mas conseguiu superar as dores provocadas pela lesão na sua perna, que foi alvo de vigilância permanente por parte do médico da Lancia (…) Enfim, na vitória de Toivonen quase se pode dizer que houve sangue, suor e lágrimas!”

Admirável Mundo Novo

O Rali de Monte Carlo de 1986 representou o nascimento de uma nova era. Uma nova era de poder e força, de pilotagem pura e heroica, ao volante de bólides violentos, capazes de atingirem os 200 km/h em menos de dez segundos nas estradas abertas e de debitarem potências na ordem dos 500 cv. Uma nova era que, pouco depois, e infelizmente, soube-se que iria ser tão feérica quanto louca – e efémera. Afinal, tudo se precipitou no Rali de Portugal Vinho do Porto, dois meses mais tarde.

As edições de 1985 e de 1986 do Monte Carlo, em termos de estrutura, imagem e até condições atmosféricas, não diferiram muito entre si. No fundo, foram ‘Montes’ vulgares,

com as habituais dificuldades, as habituais armadilhas do gelo e da neve e o habitual Col de Turini, com a sua neve bordejada de gente. E ainda Le Bourzet, Moulinon, St. Bonnet Le Froid, Le Col de la Madone… todos parte longa da riquíssima mitologia dos ralis.

Mas, no entanto, foram tão diferentes entre si! Em 1985, o duelo foi longo e excitante, mas foi apenas entre os Peugeot 205 Turbo 16 e os Audi Quattro S1 – entre Ai Vatanen e Walter Röhrl. A Lancia estava ainda com o velhinho 037 Rally e a Citroën opunha-se com os pequenos e ligeiros Visa Mille Pistes, de escassos 140 cv. Um ano mais tarde o mundo era outro. Havia mais que apenas duas marcas oficiais com carros de tração total e, além disso, os carros estavam feitos de acordo com as regras de full Grupo B.

A Lancia estava com o S4, que tinha estreado nos finais de 1985 e com o qual Henri Toivonen tinha ganho a última prova do WRC, o RAC, na Grã-Bretanha. Eram 500 cv brutais, que o fenómeno finlandês parecia saber dominar como mais ninguém. A Audi mantinha o S1 e a Peugeot, o 205 Turbo 16, mas ambos na sua segunda geração (E2). Mas havia mais: 20 anos depois dos Mini Cooper, a Austin surgiu com os Metro 6R4 e até a Citroën arriscou entrar neste novo mundo, através do exótico BX 4TC – que, tal como os outros, eram de quatro rodas motrizes.

Então, junte-se a todos estes ingredientes, digamos, mecânicos, um ambiente feérico, como só o Monte Carlo sabe (ainda hoje) apresentar, uma multidão de milhares em delírio, classificativas lendárias e temos o primeiro episódio de sonho de um Admirável Mundo Novo. Que, tal como o de Aldous Huxley, tinha tudo para ser bem sucedido, embora igualmente utópico – mas não o foi, por incúria (e luxúria), dos Homens.

Em nome do pai

O triunfo de Henri Toivonen no Monte Carlo de 1986 funcionou como uma espécie de vingança, 20 anos após o seu pai, Pauli, ganhar o Monte Carlo de 1966, depois de ter chegado ao final em 4º lugar. Nessa altura, os dois Mini e o Ford que estavam à sua frente foram desclassificados ”devido aos faróis não estarem conformes ao código da estrada francês” e assim o triunfo caiu-lhe no colo verdadeiramente aos trambolhões. Na altura, muito se disse quanto ao seu triunfo e a justiça que o rodeava. Mas, agora, [em 1986], “nada há a dizer quanto à justiça do triunfo de Henri Toivonen”.

Por isso, “mal chegou ao hotel” a primeira coisa que Toivonen fez foi “ligar para a Finlândia para falar com aquele que tem sido o grande impulsionador da sua carreira, o seu pai, Pauli: “A primeira coisa que o meu pai me disse é que finalmente o nome Toivonen foi vingado em Monte Carlo. Agora já não há mais qualquer dúvida quanto ao potencial da nossa família nesta prova. Pelo menos, agora espero que ninguém me vá acusar de qualquer coisa para tentar diminuir o meu êxito”.

Ninguém ousou dar esse passo …

As armadilhas do trânsito

Henri Toivonen foi vítima inocente de um acidente de trânsito, cinco quilómetros após o final da 12ª classificativa portanto já em plena ligação, quando foi surpreendido “à entrada de uma curva”, pelo carro de um espectador que vinha ‘nas horas’ em sentido contrário, aparecendo ao piloto todo atravessado na estrada. O embate foi inevitável e muito violento e “na altura pensava-se que o comandante do rali ficava fora de prova, mas os mecânicos da Lancia conseguiram um verdadeiro milagre.

Toivonen ficou com 53 quilómetros para fazer em 25 minutos e acabou por apenas penalizar um minuto, ao entrar com 14 segundos de atraso sobre a sua hora ideal”.

Depois disso, “totalmente ilibado de mais um acidente de que foi vítima”, Toivonen fez das tripas coração e aceitou plenamente a luta com Timo Salonen lhe estava a dar. Chegou a perder fugazmente a liderança, durante cinco troços, mas na fase final da prova, se mostrar verdadeiramente imperial: “Na subida de Col de la Couillole, Toivonen ganha 39 segundos a Salonen, para depois, na descida, ganhar qualquer coisa como cinco segundos por quilómetro terminando colado ao seu adversário, que partira dois minutos antes”. No fundo, “este problema [o acidente de estrada] talvez tenha servido para galvanizar o piloto que, a partir daí, cerrou os dentes, conseguindo superar um carro que, apesar dos esforços da assistência, não ficou no mesmo primor de afinação”

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