Três pedais, um pé: O próximo desafio de Nelson Silva são os automóveis
Há pessoas que, teimosamente, insistem em superar obstáculos, por mais difíceis que possam parecer. Que, graças a uma força imparável, querem reproduzir na realidade o que viram nos sonhos. Que não se resignam ao pequeno, ao insignificante, ao medíocre. Que nos mostram que podem ser maiores do que a vida inicialmente planeou. Encontramos muitas pessoas dessas no desporto, especialmente na alta competição em geral, e no desporto motorizado em particular. Mas há exemplos ainda mais flagrantes nas nossas pistas.
Nelson Silva é um desses casos. Acompanhado há três anos pelo AutoSport, o piloto continua a desafiar as probabilidades, a percorrer o seu caminho com a mesma determinação feroz com que passou a encarar o seu dia a dia.
Uma história de resiliência
Em 2007, com cerca de 20 anos, Nelson sofreu um grave acidente de mota que lhe mudou tudo. A perna direita foi amputada. O corpo ficou marcado, o futuro suspenso. Seguiram-se meses e anos duros, feitos de dor, frustração e reaprendizagem. Voltar a andar. A viver. A acreditar. Teve de aprender a conviver com limitações físicas profundas, mas foi nesse processo que algo inesperado aconteceu: as barreiras mentais desapareceram. Por ironia do destino, ao perder uma perna, Nelson ganhou uma liberdade rara — a de não ter medo dos desafios. O impossível saiu-lhe do vocabulário. Passou a encarar a vida de frente, sem reservas, sem desculpas.

Uma paixão de família
A paixão pelos motores nunca o abandonou. Era um legado do pai, Eugénio Silva, fundador da Albakarting, uma pequena equipa de karting que marcou presença nas competições nacionais. A morte do pai foi mais um golpe duro, talvez dos mais difíceis de suportar. Mas, mais uma vez, Nelson não se deixou cair. Transformou a dor em combustível. A resiliência tornou-se companheira constante e o regresso aos karts — onde já tinha corrido pontualmente — acabou por ser inevitável.
Do kart amputado ao pódio nacional
Entre 2018 e 2019, competiu num troféu em Baltar, na categoria 125 cc de caixa, onde alcançou um pódio. Um resultado que, mais do que um troféu, foi uma semente: a confirmação de que era possível ir mais longe. Em 2022, deu o passo decisivo: estreou-se no Campeonato de Portugal Rotax, na categoria DD2 Master. Influenciado pela criação da Comissão de Deficiência e Acessibilidade da FIA, tornou-se o primeiro piloto amputado a disputar uma competição nacional de karting em Portugal. Não foi apenas para marcar presença. Completou toda a época e provou, em pista, que a deficiência não é incompatível com a alta competição.

Em 2023, o foco mudou. Nelson decidiu investir no crescimento da Albakarting (que passou a ser o seu grande foco) como estrutura de formação. Tornou-se, em simultâneo, chefe de equipa, mecânico, coach e mentor. Durante a época de 2025, teve sob a sua responsabilidade vários pilotos, cujos resultados e evolução confirmam a qualidade do trabalho desenvolvido. Alguns já começam a ser cobiçados por estruturas internacionais. A equipa deixou de ser apenas um projeto pessoal para se afirmar como uma equipa sólida, credível e respeitada.
A história vista por dentro
A posição de jornalista exige imparcialidade e distância emocional. Mas confesso: é difícil manter essa equidistância quando se fala de um amigo. Quando falei pela primeira vez com o Nelson, estava longe de imaginar que, alguns meses depois, ele faria parte do meu círculo de amigos. A verdade é que, independentemente da primeira entrevista, estava destinado a cruzar-me com ele por motivos pessoais. E desde então tenho acompanhado de perto o percurso do Nelson, primeiro como piloto e agora como chefe de equipa.
Uma coisa posso garantir… se teimosia desse dinheiro, o Nelson conseguiria comprar a Ferrari a pronto e ficar ainda com alguns trocos. É uma das pessoas mais obstinadas que conheço. Poucos “nãos” resistem à sua vontade de os transformar em “sins”. A Albakarting é o reflexo disso: construída passo a passo, peça a peça, com esforço, sacrifício e uma fé inabalável. Hoje, é uma equipa que faz crescer jovens pilotos e que se tornou um verdadeiro braço direito dos pais que confiam a formação dos filhos a esta estrutura. Tudo isto nasceu do trabalho incansável de um homem que se recusou a desistir.

Sem limites, apesar das limitações
O maior elogio que lhe posso fazer é simples: muitas vezes esqueço-me de que ele tem apenas uma perna. Já o vi carregar karts, subir escadotes, fazer obras, transportar material pesado. Já me aconteceu não lhe oferecer ajuda porque, na minha cabeça, aquele tipo não precisa dela. É aquele amigo que é chato como os impostos, mas que está sempre disponível para ajudar quem precisa. Mais depressa ajuda do que se disponibiliza a ser ajudado.
O Nelson tem dois talentos: os negócios e o volante. É aquele amigo que todos têm, que consegue sempre ver um pouco mais além e que está sempre atento a uma boa oportunidade. E, ao volante, sabe o que faz. E, apesar de não ter formação, faz trabalho de mecânico, senta-se ao volante de um carro e consegue fazer diagnósticos com uma percentagem elevada de acerto.
O sonho C1: três pedais, um pé
Há alguns meses, o Nelson disse-me o seguinte: “Comprei o C1 da TRS”! Claro que já sabia o que aquilo significava. A “culpa” foi do Carlos Barbosa, da G’s Competizione, que permitiu que fizesse uma sessão com o C1 da equipa… sem qualquer tipo de adaptação. Eu estive nessa sessão e andei com o Nelson, no Circuito do Estoril. Ele, só com um pé, a fundo naquela “caixa de fósforos”. Não escondo que fiquei impressionado.
Claro que ficou a semente para o que é o seu próximo projeto: fazer corridas com o C1. A Motorsponsor aliou-se à ANAPC para permitir que os C1 corressem com os 1300, na categoria City, com corridas sprint de 25 minutos. E é aí que o Nelson quer correr. Está com ideias de fazer também as 24h de C1, mas, para já, quer superar mais esse desafio.
“Para quê?”, perguntei-lhe uma vez. A resposta foi a esperada: “Quero mesmo fazer isto! Já mostrei que consigo andar de kart, já montei a minha estrutura quando poucos acreditavam que era possível e, agora, quero fazer uma corrida de automóveis, com a minha equipa.” Vindo de alguém que, até nos simuladores, faz questão de escolher carros com caixa manual e insistir no truque dos três pedais e um pé, não surpreende.
Pilotar com um pé sem adaptação? Sim é possível
Como faz? Nem ele sabe explicar. Tornou-se intuitivo. Para os C1, pondera agora uma adaptação manual da embraiagem, não por incapacidade, mas por eficiência. No fim, isto nunca apenas foi sobre provar que consegue. Sempre foi sobre ir mais rápido.
Assim, Nelson Silva tenta fazer, pelo menos, uma corrida de C1, em 2026, se encontrar os apoios para isso. Quer provar, mais uma vez, a si e ao mundo que as limitações são sobretudo internas e autoimpostas. Adora a velocidade, a adrenalina das corridas e o cheiro a gasolina. Em teimosia, há poucos que o conseguem superar e, quando mete algo na cabeça… é difícil não ir até ao fim.
Porque a paixão pelas corridas do Sr. Eugénio vive-se agora por intermédio do filho. Talvez seja ele que o ajuda a fazer as passagens de caixa sem ajuda. E talvez o seu talento para o volante tenha passado para a neta de um ano e meio, que fica maravilhada cada vez que se senta num kart e tem agora como um dos brinquedos preferidos um volante. Quem sabe se há mais uma história bonita para ser contada aqui.
Uma história que merece ficar na história
Em cada carro, em cada box, em cada garagem, há histórias que merecem ser contadas. Esta, do Nelson, parece-me ser das que merece mais destaque, por toda a envolvência, por todo o percurso, por toda a tenacidade que tem revelado ao longo dos anos. E espero poder estar na pista quando ele terminar a corrida para lhe dizer “não andaste grande merd**”. Vamos rir, com a certeza de que ele voltou a fazer história.
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