Citroën BX 4 TC: O Patinho feio de uma marca recordista

Por a 21 Setembro 2023 15:20

A meio da década de 80, seis marcas subiram ao palco do Mundial de Ralis para mostrar os seus expoentes de tecnologia e escreverem aquela que foi, até hoje, a página mais espetaular e inesquecível da história dos ralis. Bom… na verdade foram cinco construtores porque quando a Citroën tentou seguir os passos da Peugeot, Lancia, Audi, Ford e Austin Rover, com o estranho BX 4 TC, os resultados revelaram-se dececionantes e o projeto regressou à gaveta de onde nunca devia ter saído. Uma história que vale a pena repescar, sendo que não nos podemos esquecer que a Citroën se ‘vingou’ bastante bem, já que detém quase todos os recordes do WRC que ‘importam: Maior número de vitórias, 102, mais 11 que a Ford (91 ), e mais 29 que a Lancia (73). Maior número de título de pilotos, nove face aos cinco da Toyota e quatro da Lancia, com a marca italiana a ser a que tem mais títulos de Construtores, 10 contra ‘apenas’ 8 da Citroën.

Como se percebe, a história da Citroën no Campeonato do Mundo de Ralis é simplesmente fabulosa. O sucesso começou a escrever-se com duas vitórias do Xsara Kit Car que rapidamente evoluiu para um versão T4 que havia de dar origem ao Xsara WRC, autor de inscrição de 32 triunfos no WRC. Sempre com o mago Sébastien Loeb ligado aos projetos, a marca do double chevron seguiu depois a sua trajetória de sucesso com o C4 WRC alcançando mais 36 vitórias, um número que o atual DS3 WRC ainda não logrou alcançar, ficando-se pelas 23 subidas ao lugar mais alto do pódio. A pergunta é: como é que com um currículo destes, que coloca a marca francesa no topo do WRC, pôde, um dia, a Citroën conceber um carro tão mau que, de tão mau que era, ainda hoje pesa na memória de todos? Vamos tentar perceber…

Desejosa de dividir protagonismo com as marcas que direcionavam a sua aposta para o Mundial de Ralis, a Citroën arrancou tarde e com menor capacidade económica de investimento para o seu projeto de Grupo B que as suas rivais. As tentativas feitas para construir um carro competitivo neste agrupamento tinham tido, em 1984, um sucesso relativo com o Visa 1000 Pistes e a Citroën decidiu redireccionar a aposta para o modelo BX. Um primeiro protótipo, designado BX Polytechnic, equipado com um motor 2,4 turbo de 16 válvulas preparado pela Roc com 325 cv e com uma original carroçaria de três portas, já tinha feito algumas aparições em 1983 incluindo no Rali de 1000 Pistes onde o sobreaquecimento do motor ditou o seu abandono. Entre o Visa em fim de carreira e o BX em plena ascenção, o departamento de competição da Citroën, então chefiado por Guy Verrier, não teve dúvidas em optar pelo carro mais recente e aquele que comercialmente mais sentido fazia explorar o desenvolvimento. Mas, os primeiros problemas não tardaram…

Para ser homologado pela FIA, o carro tinha que derivar de um modelo 4 TC original, uma série especial do BX, construída então propositadamente pela Heuliez e que a Citroën foi obrigada a criar e comercializar. Logo aí a base estava longe de ser a melhor para desenvolver um carro de competição já que não só o modelo tinha cinco portas e era mais pesado, como o 4 TC de estrada tinha ainda que obedecer a um caderno de encargos bastante estrangulado por forma a que o seu sucesso comercial se pudesse basear num preço final competitivo. Fazer ‘omoletes sem ovos’ é algo que hoje, como a meio da década de 80, não dava resultados. E, por isso, quando importantes escolhas técnicas foram tomadas, já sob a alçada de Verrier, o projeto do BX 4 TC começou a cavar, ainda sem o saber, a sua própria sepultura.

O maior problema prendeu-se com as escolhas que ditaram que o chassis tivesse um equilíbrio dinâmico que ficava a léguas da perfeição. Uma silhueta que teve que crescer 28 cm face ao BX normal (só o capot ficou com 1m10!), um peso global que se cifrava 40 quilos acima do mínimo regulamentar (1000 em vez de 960 kg) e uma distribuição de massas que as boas línguas afirmavam ser de 56 por cento à frente e 44 por cento atrás mas que as más apontavam para os 62 por cento na dianteira e os 38 por cento na traseira, não davam, já de si, boa fama ao 4 TC Evolution. E ainda nem tinha entrado em campo…

Potência a menos, tamanho a mais

Em relação ao motor, a base da unidade propulsora foi a do Peugeot 505 Turbo (N9T), de origem Chrysler, e com a mão de Denis Mathiot chegava aos 200 cv no 4 TC de série mas acabou esticada até aos 380 cv na versão Evolution do Mundial de Ralis. Parca potência comparada com a extraída dos rivais Peugeot 205 Turbo 16, Lancia Delta S4 ou Audi Quattro que se aproximavam, no primeiro ano da sua evolução, dos 450 cv. E, ao contrário do que chegou a ser feito, por exemplo, com o ‘primo’ 205 T16, a colocação do motor não chegou a ser alterada para a parte traseira do carro uma vez que, como referia Verrier, na altura, “com 80 por cento dos troços do Mundial feitos em terra, consideramos que temos mais vantagens em ter o propulsor à frente sobretudo, se associado à suspensão que adoptámos”…. Pois, o sistema de suspensão. O sistema hidropneumático (que teria, segundo os técnicos daquele tempo, vantagens não só ao nível da eficácia como da rapidez de acesso em termos de manutenção e substituição na assistência) que acabaria por ser uma das suas maiores fraquezas.

Com uma caixa de cinco velocidades longitudinal, quatro rodas motrizes e ausência de um diferencial central (com o diferencial dianteiro produzido pela ZF a ficar directamente ligado ao traseiro assinado pela Peugeot por um simples veio de transmissão em fibra de carbono-kevlar) a passagem da potência era repartida de forma equitativa pelos dois eixos mas gerava um comportamento demasiado subvirador que colocava dificuldades acrescidas aos pilotos. Depois, muitos do componentes usados em modelos da marca ganharam também vida no 4 TC, fosse na versão de estrada, fosse na Evolution. A direção assistida, tipo Diravi (com retorno automático à posição inicial), veio do CX e assegurava a brecagem das rodas por pressão hidráulica, enquanto o sistema de travagem comportava quatro discos ventilados com prensas de quatro pistões também herdadas do CX e comandados por um doseador-compensador alimentado por circuito hidráulico de alta pressão, com possibilidade de afinação frente/traseira através de um repartidor colocado dentro do habitáculo.

Mas, de tudo, não havia grandes dúvidas: era a aerodinâmica que impressionava! No Evolution os radiadores de água e óleo foram deslocalizados para a traseira para tentar melhorar a distribuição de massas e uma enorme asa traseira propunha-se melhorar a downforce e motricidade a velocidades elevadas. Só que isso em nada corrigia o problema das enormes vias do carro que, se por um lado, aumentavam a estabilidade do BX, por outro, aumentavam-lhe a dificuldade em lidar com os sulcos formados nos troços de terra já que os pilotos tinham que escolher entre andar fora dos regos e arriscar saídas de estrada constantes ou andar no seu interior e danificar constantemente material.

O carro foi finalmente homologado a 1 de dezembro de 1985 depois de sucessivos atrasos no projeto, que chegou a ter estreia marcada para o Rali da Argentina de 1985 e depois para o RAC nesse mesmo ano. Mas havia de ser o Rali de Monte Carlo de 1986 a marcar o início da dolorosa caminhada pelos tortuosos trilhos do insucesso que acompanharam a Citroën naquele que foi declaradamente o seu ‘annus horribilis’ no Mundial de Ralis. Felizmente, um dia, a Citroën conseguiu refazer totalmente a sua imagem no seio dos ralis e, hoje, o tremendo erro em que, afinal, se transformou o BX 4 TC, não é mais do que uma pequena cicatriz bem disfarçada no seu invejável palmarés. Mas, como todas as cicatrizes, não desaparece e carrega sempre uma lição de vida…

Quantos ainda há?

Estima-se que a produção do BX 4 TC Evolution tenha sido de 20 unidades, o que significa que mesmo que a Citroën tenha usado um chassis novo em cada prova do WRC em que participou, 13 carros nunca foram usados ou tiveram um destino desconhecido, sabendo-se que algumas unidades foram desviadas para o Rallycross e outras podem estar, com os seus 0 km (ou perto disso) na mão de colecionadores que preferem preservar o anonimato.

Mas ainda mais curiosa é a história dos 200 4TC que a Citroën se viu obrigada a produzir para conseguir a homologação da versão Evolution. Das duas centenas de unidades produzidas, em 1985, só 85 carros tinham sido vendidos e num claro sinal de desespero, dois anos depois, a marca francesa reduziu cerca de 40 por cento o preço do carro para se ver livre do stock. Mas os resultados práticos da ação foram diminutos e a Citroën mudou então de política, propondo aos proprietários dos 4 TC readquiri-los pelo dobro do preço numa proposta onde nas entrelinhas se também podia ler que a marca ia deixar de prestar assistência aos carros que é, como quem manda um aviso de que, mais tarde ou mais cedo, não vão servir para nada pelo que mais vale fazer a devolução à precedência.

É assim que uma grande parte dos 4 TC regressa à sua origem para serem destruídos pela marca. Hoje, devem restar cerca de 40 unidades e as que raramente aparecem à venda fazem valer o seu estatuto histórico com preços que podem ultrapassar os € 60 000. Muito para um BX, pouco para um carro com uma história tão bizarra.

Resultados desastrosos

Jean-Claude Andruet e Philippe Wambergue, a que se juntou, por uma vez, Maurice Chomat, forem os pilotos contratados pela Citroën para tentarem o impossível com o BX 4 TC ou seja, resultados positivos no WRC. Na programação da época, a Citroën ‘desenhou’ um calendário quase completo (Safari incluido), deixando de fora apenas as dispendiosas deslocações à Austrália e Nova Zelândia que podiam ser reconsideradas se os bons resultados justificassem, entretanto, o investimento. Mas no final da primeira etapa do Rali de Monte Carlo de 1986, na estreia oficial do carro, desde logo se percebeu havia um longo caminho a percorrer para tornar o 4 TC tão competitivo como os restantes Super Grupo B, apesar dos responsáveis da equipa continuarem a alimentar a convicção de que seria possível aceder a bons resultados com custos substancialmente mais baixos que os suportados pela concorrência. Logo no percurso de concentração, Andruet foi o primeiro a mostrar as fraquezas do Citroën mas foi preciso esperar pela segunda classificativa para que o primeiro BX encostasse à berma quando Wambergue se viu obrigado a desistir devido à rutura da suspensão. Cinco classificativas depois, Andruet tinha o mesmo destino depois de sair de estrada já como resultado de mais problemas. A prova seguinte, o Rali da Suécia, havia de dar o melhor resultado da curta época protagonizada pela Citroën. Se Wambergue somou o segundo abandono consecutivo, agora devido a problemas de motor, Andruet chegou em sexto (após beneficiar de algumas desistências), somando os primeiros (e únicos!) 10 pontos da época, mas foi batido constantemente pelos melhores Grupo A da altura.

Os resultados eram, apesar de tudo, pouco convincentes e a Citroën decidiu retirar-se para ‘reflexão’ e aprumo dos seus carros, faltando às três etapas seguintes, Portugal, Safari e Córsega. O regresso aconteceu em Acrópole, depois dos motores passarem a dispor de quase 400 cv e binário melhorado e do conjunto acusar menos 50 kg na balança. Um terceiro carro foi confiado a Chomat que, tal como os outros dois, tinha como missão sobreviver à implacável dureza do rali num teste decisivo à fiabilidade e competitividade do carro. Falhas estruturais graves não seriam mais toleradas… mas aconteceram. Chomat e Wambergue não passavam da primeira classificativa devido à cedência de uma peça da suspensão com defeito na fundição e Andruet via uma das esferas da suspensão explodir e saia novamente de estrada. O renovado e último fôlego do BX 4 TC tinha durado três classificativas! Não havia razões para continuar. A Citroën abandonava Mundial de Ralis pela porta pequena… sem nunca o anunciar oficialmente.

Ficha técnica

Citroën BX 4TC Evolution (by Citroën Competition)

Carroçaria Berlina de 5 portas e dois lugares, capot, guarda-lamas, portas, tampa da mala e pára-choques em kevlar-carbono. Vidros laterais e traseiros em ‘margard’ Motor Bloco Tipo N9TE, 2142 cm3, 4 cilindros, longitudinal Alimentação Injeção K-Jetronic, turbocompressor KKK (K26), pressão de sobrealimentação regulável (a partir do cockpit) Potência 380 cv/7000 rpm (com pressão de sobrealimentação de 1,3 bar) Binário 460 Nm/5500 rpm Transmissão Caixa de 5 velocidades em ‘H’ (tipo Citroën SM), longitudinal, diferencial dianteiro ZF e diferencial traseiro Peugeot (desbloqueamento do diferencial traseiro de comando manual no cockpit), autoblocante dianteiro e traseiro, embraiagem de diafragma (duplo disco a seco) Suspensão Hidropneumática de rodas independentes e altura constante Direção Cremalheira, assistida do tipo Diravi Travões Discos ventilados à frente e atrás com prensas de quatro pistões. Repartidor de travagem Dimensões Comprimento 4590 mm Largura 1915 mm Distância entre eixos 2612 mm Via dianteira 1614 mm Via traseira 1614 mm Depósito 120 litros Peso (anunciado) 980 kg

https://youtu.be/olIa2PkJZ5Y
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