Circuito Lordelo do Ouro, uma solução de recurso

Por a 4 Dezembro 2022 16:54

Numa altura em que Portugal se arrisca a ficar sem um (muito necessário) circuito permanente no Norte, recordamos um traçado, desconhecido por quase todos, o circuito de Lordelo do Ouro que teve uma fugaz (mas não menos interessante) passagem pela alta-roda do desporto automóvel nacional e conseguiu mesmo atingir o patamar da internacionalização.

Desde o início concebido como uma alternativa provisória para o Porto continuar a receber provas automobilísticas, Lordelo acabou esquecido por quase todos. 50 anos depois da última edição, é altura de lembrar esta maravilhosa história. Como refere o título, Circuito Lordelo do Ouro, uma solução de recurso, porque não aparecer outros que o possam ser também?

No final da década de 50, o automobilismo nacional estava em alta. O parque automóvel era apelativo, e embora não existissem estruturas nem pilotos totalmente profissionais, havia um conjunto de bons ases do volante capazes de se medir de igual para igual com os grandes nomes internacionais que habitualmente competiam nas principais provas promovidas pelo ACP, no Porto (Boavista) e em Lisboa (Monsanto). O cúmulo desta evolução foi a chegada da F1 a Portugal em 1958, no Circuito da Boavista, ficando na memória a espetacular vitória de Stirling Moss, e a respectiva atitude cavalheiresca tida para com o seu grande rival na luta pelo título, Mike Hawthorn que, ironicamente, custaria o título ao piloto da Vanwall. De acordo com o estabelecido pelo ACP em finais de 1956, Lisboa e Porto alternariam entre si a organização do G.P. de Portugal, por forma a racionalizar fundos e diminuir os habituais prejuízos. A F1 regressaria a Portugal em 1959 e 1960, respectivamente em Monsanto e na Boavista; mas no final de 1960 o ACP optou por não continuar a receber a modalidade e tornar o G.P. de Portugal/ACP de âmbito estritamente nacional.

Vários motivos contribuíram para esta decisão. Em primeiro lugar, apesar do sucesso das três edições do G.P. de Portugal em F1, o aumento dos custos derivados da logística crescente e dos prémios a pagar aos pilotos tornavam a organização dos eventos altamente deficitária; mas também já se punha a questão de a F1 estar interessada em alargar o calendário para outros mercados mais representativos, algo que Portugal não era de forma alguma, dado não existirem grandes condições económicas nem estruturas profissionais para suportar um desenvolvimento pujante da modalidade. Por outro lado, tanto o circuito de Lisboa como o da Boavista apresentavam sérios problemas logísticos – além de ambos serem longos e extremamente rápidos, obrigando a um grande investimento nas rudimentares estruturas de protecção para os pilotos (leia-se fardos de palha e afins, que não eram propriamente baratos….) – acarretavam acima de tudo restrições de tráfego bastante relevantes. Monsanto usava um troço de autoestrada, que ligava o centro de Lisboa ao Estádio Nacional (actualmente parte integrante da A5); enquanto o Circuito da Boavista se disputava numa região fortemente urbanizada e interrompia parcialmente duas artérias fundamentais na cidade – a Avenida da Boavista e a Estrada da Circunvalação. Estes constrangimentos, aliados aos crescentes custos, foram determinantes para a decisão do ACP em tornar as suas provas de âmbito exclusivamente nacional e em abandonar em definitivo os dois icónicos circuitos. Não deixa de ser irónico que se falasse na perigosidade dos mesmos, por serem citadinos mas extremamente rápidos, mas perante as precárias condições de segurança existentes nos famosos congéneres da época como Spa-Francorchamps, Monza, Nürburgring, etc., não se pode dizer que Boavista e Monsanto fossem piores…

Para 1961, o ACP organizou o seu Grande Prémio num aeródromo em Alverca, uma solução de recurso, mas que provou ser bastante impopular para os pilotos, que estavam habituados ao grande nível técnico proporcionado pelos circuitos de Monsanto e da Boavista. A Secção Regional Norte (SRN) do ACP não perdeu tempo e, de acordo com o já referido regime de rotatividade, tentou tudo para trazer o G.P. do ACP de volta ao norte. Equacionou-se Vila do Conde, pertencente ao distrito do Porto, ou eventualmente Vila Real, mas os portuenses queriam voltar a ver acção, e rapidamente José Luís Novais e Vasco Brito, dois dos nomes mais sonantes do SRN, começaram a procurar locais no Porto ou arredores para fazer um circuito, e depois de afastada a hipótese de Matosinhos, a escolha recaiu em Lordelo do Ouro. À data, a região de Lordelo e da Pasteleira eram praticamente desabitadas, mas havia planos para a urbanização do local, por isso alguns arruamentos já estavam construídos. Assim se delineou um traçado bastante curto (1.509 Km), mas extremamente técnico e sinuoso, destacando-se pelos acentuados declives, no qual era impossível serem atingidas altas velocidades devido á quase total inexistência de zonas rápidas. O circuito gozava de bons acessos e uma excelente panorâmica para os espectadores, que além de poderem apreciar a soberba vista sobre o Douro, conseguiam nos pontos mais altos do traçado ver quase por completo o desenrolar das provas. Quanto aos pilotos, ficava claro que o circuito beneficiava claramente o talento do piloto ao invés da potência do carro, e que as afinações de motor e caixa de velocidades seriam determinantes para o sucesso.

O programa de 1962 incluiu três provas, já que o evento destinado a viaturas de Turismo (Taça Jorge Novais, pai do referido José Luís Novais e destacado membro do ACP, falecido no início de 1961) foi dividido em dois devido à grande afluência de concorrentes. No evento destinado às pequenas cilindradas (até 850 cc) venceu Eduardo Valadas, enquanto nas cilindradas superiores o vencedor foi José Baptista dos Santos, após uma espetacular luta com Carlos Faustino e António Peixinho. Já a prova-rainha, a Taça ACP, para carros de Grande Turismo e Sport, atraiu a nata do automobilismo nacional, destacando-se Aquiles de Brito, Luís Fernandes, Manuel Nogueira Pinto, Carlos Faustino e Horácio Macedo, este último saindo vencedor no seu Ferrari 250GT. O evento foi um sucesso junto dos espectadores e pilotos (que elogiavam a qualidade técnica do circuito), embora de imediato ficassem evidentes algumas deficiências inerentes ao traçado – a pista era demasiado sinuosa e estreita, o que dificultava muito as ultrapassagens, tornando-as quase impossíveis no caso dos GT e Sport, e o piso era bastante irregular e abrasivo, mesmo apesar do apoio da Câmara Municipal do Porto, que antes da prova procedeu ao ajuste topográfico de algumas partes do circuito e à colocação de um novo tapete de asfalto. Outro grande problema era o seu reduzido perímetro, considerado demasiado curto para uma prova de tal calibre. Mas é preciso não esquecer que se tratava de uma solução de recurso, e que a médio prazo a SRN queria encontrar um local mais adequado.

Porém, tal não foi possível em 1963, e o sucesso retumbante do Circuito de Cascais fez com que o ACP optasse por não prosseguir as regras da rotatividade e manteve o Grande Prémio naquela pista em 1964. Para compensar os pilotos e entusiastas nortenhos, a SRN conseguiu que o XI Rali Internacional do ACP terminasse no Porto, com a última prova complementar a ser disputada nos arruamentos de Lordelo, consistindo em três voltas a um circuito de 1.350 Km, totalizando 4.050 Km. Os ralis estavam a atravessar um período fulcral de transição, em que o conceito de regularidade, cumprimento de médias horárias estabelecidas em sectores de estrada aberta e de handicaps estavam gradualmente a dar lugar à primazia das provas especiais de classificação, enquanto o calendário internacional ia adquirindo regras comuns e o título europeu começava a ser mais valorizado. É de salientar que o Rali Internacional do ACP de 1964 contou para o Europeu, algo que só tinha acontecido por uma vez, em 1959.

Apesar deste estímulo, a adesão de pilotos estrangeiros foi muito reduzida, por isso a prova foi essencialmente uma luta entre os maiores volantes nacionais e as equipas de fábrica da Mercedes (EugenBöhringer, Dieter Glemser, Ewy Rosqvist) e da Alfa Romeo (Andrea de Adamich, Arnaldo Cavallari). De facto, a prova até foi muito disputada, mas seria marcada por uma enorme controvérsia relativa ao fecho de um controlo em Salamanca, que viria a levar à desclassificação de vários pilotos, entre os quais o vencedor Horácio de Macedo, que praticamente abandonou o automobilismo depois desta polémica, por discordar com a decisão do ACP. As classificações finais só foram homologadas em meados de Setembro, devido à torrente de apelos interpostos pelas respectivas partes, dando a vitória final a Andrea de Adamich (futura estrela dos Turismos e Sport-Protótipos, e também piloto de F1), que havia vencido a prova complementar de Lordelo. Por sua vez, a falta de adesão dos pilotos internacionais, muito por culpa da periferia geográfica do nosso país, aliado aos custos de organização de tal evento, fez com que o ACP decidisse não continuar com a iniciativa de um Rali Internacional. Ficou também decidido que o G.P. do ACP seria novamente disputado em Cascais em 1965, e que Lordelo estaria fora de hipótese, investindo-se num possível regresso a Vila Real.

O Portugal dos anos 60 atravessava uma gradual modernização e o investimento no turismo foi um dos principais reflexos desse processo. O sucesso do Circuito de Cascais também assentava no potencial turístico da região, e no Porto havia vontade de fazer semelhante iniciativa. Faltava arranjar um local adequado mas, mais uma vez, apenas Lordelo parecia ser minimamente viável, por isso decidiu-se por integrar o circuito nas festas da cidade, em Junho de 1966. Para o desporto motorizado português, aquele ano traduziu-se por uma mudança fulcral já que, além de ter marcado a divisão do Campeonato Nacional de Condutores em dois – o Nacional de Velocidade, compreendendo as provas de circuito e as rampas, e o Nacional de Ralis – representou também um verdadeiro boom no número de circuitos realizados e no seu alcance internacional, já que se inscreveram três provas no calendário FIA: Lordelo, Cascais e Vila Real. Distribuir estas três provas no calendário mundial revelou-se bastante complicado, e obrigou a alterações relativamente às datas originais previstas, destacando-se a passagem da prova portuense para o fim-de-semana de 13 e 14 de Agosto, para evitar também coincidir com a inauguração da Ponte Salazar (actual Ponte 25 de Abril). Este adiamento, embora retirando a prova do contexto das festas da cidade, foi benéfico para a organização, já que o mau tempo que se fez sentir nos primeiros meses de 1966, e que causou fortíssimas cheias do Douro, atrasando as obras de melhoramento do piso.

O Circuito de Lordelo utilizado em 1966 era maior e mais interessante, tanto para pilotos como espectadores, do que o de 1962, já que o perímetro tinha sido aumentado para a 2.950 Km, utilizando os novos arruamentos entretanto criados para o dito processo de urbanização, que estava a ser bem mais lento do que o esperado. A extensão do percurso tornava a pista mais rápida e adicionava-lhe pontos de ultrapassagem, mas ao mesmo tempo mantinha as suas características intrínsecas de sinuosidade e declives acentuados, permanecendo extremamente técnica e favorecendo a pilotagem ao invés da velocidade. Estes melhoramentos foram de imediato destacados pelos pilotos nacionais, mas também pelos estrangeiros que, tendo corrido em Vila Real e Cascais, vieram deixar as suas máquinas ao Porto. O malogrado Chris Williams, uma das maiores estrelas da F3 e do cenário britânico à data (e que tragicamente faleceria num este ao volante de um F2 em 1969 sem nunca ter mostrado todo o seu potencial) destacou o elevado nível técnico do circuito, salientando que a volta mais rápida dificilmente ultrapassaria os 130 Km/h e que a escolha de relações de caixa seria o factor determinante na luta pela vitória, já que a potência bruta não seria de forma alguma fundamental.

Ao contrário de anos anteriores, o programa era bem mais completo, refletindo também a crescente diversidade do cenário automobilístico português. Além das provas de Turismo e GT e Sport, disputar-se-ia também uma ronda do recém-criado campeonato nacional de Fórmula V, além de uma prova internacional de F3, que foi a primeira e única prova internacional de circuito disputada na Cidade Invicta entre 1960 e 2005. A prova destinada às viaturas de GT e Sport, denominada Taça Governo Civil do Porto, seria marcada pela grande exibição de um dos maiores volantes portugueses da época, Manuel Nogueira Pinto (Lotus Elan), que só não ganhou porque fez “falsa partida”, valendo-lhe de imediato 1 minuto de penalização, e não conseguiu abrir tal vantagem sobre o segundo classificado, Pedro Torres Fernandes (Lotus Elan), que viria a ser declarado vencedor. “Mané” Nogueira Pinto desforrou-se na Taça Dr. Augusto Vaz, para as viaturas de Formula V, dominando totalmente o evento, marcado pela monotonia.

Contudo, as provas mais esperadas eram as de Domingo, começando pela Taça Cidade do Porto para viaturas de Turismo, que incluía uma lista de inscritos de luxo, entre os quais um dos mais famosos pilotos ingleses da categoria à data, Jeff Uren. No entanto, a luta pela vitória ficou desde cedo limitada a duas das maiores estrelas portuguesas, Carlos Gaspar (Alfa Romeo GTA) e Manuel Lopes Gião (Austin Cooper S), num duelo que teve a duração da prova e que sorriria ao primeiro. Por fim, a tão esperada Taça ACP seria atribuída ao vencedor da prova de F3. Pena que, comparativamente a Cascais e Vila Real, a lista de inscritos fosse substancialmente menor, tanto em qualidade como em quantidade, devido à concorrência de eventos estrangeiros com melhores prémios de alinhar, e que constituíam o “pão nosso de cada dia” dos pilotos do “Pequeno Circo” da F3 de então. Mesmo assim, destacavam-se algumas grandes promessas do desporto mundial, como Derek Bell, John Fenning e Chris Williams, assim como especialistas na categoria, como Manfred Mohr e BarryCollerson, e o único concorrente português, Joaquim Filipe Nogueira. Na prática a prova foi muito pouco disputada, já que Fenning, que já havia dominado em Vila Real, “cilindrou” a oposição e obteve mais uma grande vitória, na frente de Williams e Martin Davies, tendo 1966 contribuído para o consagrar como uma das maiores esperanças do automobilismo britânico, que infelizmente nunca viria a confirmar devido à falta de apoios. Quanto a Filipe Nogueira, ao volante de um Brabham BT16-Cosworth preparado por John Willment, conseguiu um honroso quinto posto, e poderia ter lutado por mais se não fossem alguns pequenos contratempos mecânicos.

No seu todo, o Circuito do Porto de 1966 voltou a ser um êxito, tanto a nível desportivo como de adesão maciça dos espectadores; mas os problemas intrínsecos continuavam a ser um entrave muito grande. Se a sinuosidade era compensada pelo elevado nível técnico e a ampliação tinha conferido muito mais interesse à pista, o piso tornou-se de novo numa “dor de cabeça” para pilotos e organizadores e deu origem a duras críticas. A Câmara Municipal tinha feito várias obras, principalmente na porção que transitava de 1962, mas as chuvas impediram mais uma vez que estas fossem tão amplas quanto esperado, e os pilotos cedo se queixaram do péssimo estado do tapete de asfalto. Aquiles de Brito e António Peixinho, também eles dois dos melhores pilotos do plantel nacional de então, optaram por não alinhar na prova de GT e Sport, afirmando que o estado do piso era demasiado mau para arriscar danos no chassis e nas suspensões de viaturas tão caras de manter, tendo disputado as outras provas em que estavam inscritos. Deu-se alguma disputa a nível jornalístico, já que as críticas pareciam provir essencialmente dos pilotos nacionais, enquanto os de F3 – começando pelo próprio Fenning – afirmavam ter corrido em circunstâncias bem piores. É de salientar aqui que a F3 visitava uma gama muito variada de circuitos, inclusive alguns para lá da “Cortina de Ferro”, e em muitos destes as condições estavam para lá do mau. Mas também tem que se referir que os pilotos de F3 pediram à organização que reduzisse a distância de 50 para 40 voltas devido ao piso, algo que foi prontamente aceite, e que o às dos turismos inglês Jeff Uren afirmou que em Inglaterra nunca seria permitido correr naquelas condições.

Era por demais evidente que Lordelo não tinha condições de sobreviver, apesar das contínuas melhorias da organização e de todas as tentativas do ACP. De facto, o processo de urbanização estava a chegar a uma fase determinante e os planos a curto e médio prazo implicavam a passagem constante de veículos pesados no local, tornando redundante a aplicação de um novo tapete de asfalto para as provas, que seria prontamente desgastado em seguida. Além do piso, não havia outras formas de melhorar a pista nem de aumentar o seu perímetro, e o próprio Joaquim Filipe Nogueira defendia que não valia a pena continuar a insistir em soluções de recurso, quando não havia planos possíveis a médio prazo. Deste modo, tanto a Câmara Municipal do Porto como a Comissão Desportiva do ACP decidiram afastar de vez Lordelo e tentar encontrar outra zona do Porto para realizarem uma prova em 1968, pensando-se mais uma vez em Matosinhos, mas a decisão do ACP em deixar de organizar provas citadinas por não conseguir assegurar as condições cada vez mais exigentes de segurança (embora apoiasse os clubes que o fizessem, como Vila do Conde e Vila Real), aliado à pujança internacional do circuito transmontano, fizeram com que o Porto nunca mais recebesse um evento até que a edilidade, o ACP e a FPAK conseguiram reeditar o Circuito da Boavista em 2005, numa versão mais curta e adaptada aos padrões de segurança modernos, trazendo de novo o cheiro a gasolina e borracha queimada ao Porto, com o sucesso que todos nós reconhecemos.

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