Rali Sprint ou ‘endurance’ no WRC? A evolução do formato dos ralis…

Por a 24 Dezembro 2023 10:55


ENDURANCE:  Perante uma imensidão de gente a aplaudir, o Talbot Sunbeam Lotus de Grupo 2, subia com visíveis sinais de cansaço, a rampa que assinalava a “llegada” da edição de 1981 do Rali da Argentina.

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Do carro número 2, saíam o piloto, Guy Frequelin, ainda com o fato de competição, e o seu navegador, envergando calças à boca de sino, Jean Todt de seu nome. Era o final de uma desgastante batalha com os pilotos da Datsun, Salonen e Mehta, travada durante cinco dias e ao longo de quase quatro mil quilómetros de caminhos esculpidos nas montanhas dos Andes. 14 horas e 22 minutos foi quanto a dupla de gauleses precisou para percorrer mais de mil e trezentos quilómetros de troços cronometrados, deixando o Violet de Shekhar e Yvonne Mehta a 38 minutos…

Rali Safari (4)

Longe vão os tempos das longas provas de resistência, corridas em vários dias e noites, em que os concorrentes visitavam os locais mais inóspitos, preocupando-se em andar depressa, mas sobretudo, em gerir o seu esforço e o do carro, de modo a assegurar que chegavam ao fim.

As provas de estrada continuam ainda a suscitar o entusiasmo do público e dos media, mas o receio de perder adeptos, tanta é hoje em dia a oferta disponível, leva a que a FIA pense em alterações e por isso Mahonen “mandou cá para fora” o primeiro bitaite, e agora as redes sociais vão fazer o resto e os ‘analistas’ vão perceber as sensibilidades. Foi assim com o barulho dos Fórmula 1, e se olharmos para o que foram as declarações dos responsáveis em 2014, quando nasceu a atual era de motores da F1 e o que se diz agora, tudo é bem diferente, e já se fala novamente em “muito barulho”. Nem que seja com um amplificador…

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A questão é simples: Rali Sprint ou ‘endurance’ no WRC? E porque não os dois?

O Rali Safari era uma espécie de montra dos ralis à moda antiga e a grande referência dos “ralis-maratona”. Embora estivesse sempre associada ao Quénia, a verdade é que, durante vários anos, a prova africana foi mais abrangente, visitando países vizinhos como a Tanzânia e o Uganda. Durante cinco dias, os pilotos partiam de Nairobi, enfrentando mais de cinco mil quilómetros, em caminhos de terra abertos ao trânsito local. Os carros eram especialmente preparados, com suspensões elevadas, respiração extra para a travessia dos rios, maior capacidade para combustível e proteção reforçada, incluindo barras frontais para prevenir danos irreparáveis em caso de atropelamento de animais. Na nossa memória, permanecerão as imagens dos concorrentes desafiando os perigos da savana, com o monte Kilimanjaro em fundo e perante o olhar atento dos Masai. Do manancial de histórias memoráveis que ilustram a aventura que representava a participação no Safari, há um conhecido episódio ocorrido numa das edições do final da década de 80, quando o piloto local Vic Preston Jr. foi obrigado a parar durante a noite, a meio de um setor cronometrado. A assistência chegou pouco depois, dedicando-se durante algumas horas a reparar o Nissan 200 SX. Quando os primeiros raios de claridade apareceram no horizonte, foi com enorme “surpresa” que os mecânicos constataram que, a seu lado, dormia tranquilamente uma alcateia de leões.

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O Safari deixou o WRC em 2002, quando a organização enfrentou sérios problemas financeiros, mas a verdade é que, mesmo sofrendo evoluções – nos últimos anos, já contava apenas com 2000 quilómetros de extensão – dificilmente a prova resistiria ao figurino atual do campeonato.

Dez anos antes, também a Costa do Marfim dizia adeus ao Mundial de Ralis. Integrando a competição desde 1978, o rali tinha uma extensão semelhante à do Safari, mas era possível detetar diferenças na atmosfera envolvente. Máquinas e pilotos eram postos à prova em longos setores cronometrados, percorrendo infindáveis retas desenhadas na densa vegetação. De Abidjan a Yamoussoukro, a prova atravessava inúmeras aldeias, para grande alegria das crianças que recebiam com entusiasmo o colorido da caravana do rali.

Marrocos foi outro dos destinos africanos do Mundial, integrando o calendário logo no ano da criação do campeonato, em 1973. Os concorrentes tinham pela frente um traçado bem ao estilo de uma prova de Todo Terreno dos nossos dias. Cinco mil quilómetros de paisagens áridas, dos quais mais de mil contra o relógio, tornavam esta maratona numa das mais difíceis provas de resistência da época. Em 1976, ano da última visita do WRC a estas paragens, um dos setores cronometrados tinha nada menos que 776 quilómetros, necessitando o mais rápido, Simo Lampinen , em Peugeot 504, de mais de 9 horas para o percorrer!

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O mais longo

As provas que ainda integram o Campeonato do Mundo foram, também elas, alvo de radicais transformações. O Rali da Nova Zelândia é disso exemplo. No ano de estreia, em 1977, totalizava mais de dois mil quilómetros de classificativas e quase outro tanto de ligações. Fulvio Bacchelli, demorou mais de 24 horas a percorrer as 74 Provas de Classificação, levando o Fiat 131 Abarth à vitória depois de um animado duelo com Ari Vatanen, em Ford Escort RS. Este foi, até hoje, o rali com maior duração e dificilmente este máximo será batido no futuro. Em 2010, o vencedor Jari-Matti Latvala não precisou mais do que quatro horas para cumprir os 396 quilómetros distribuídos ao longo de apenas 21 troços cronometrados.

Mais recentemente, quando ainda estava no WRC, o Rali da Acrópole desenrolava-se à volta de Loutraki, e os pilotos mediam forças em apenas 348 quilómetros, sensivelmente metade daqueles que compunham o evento nas décadas de 70 e 80. Após a partida em Atenas, os concorrentes dirigiam-se para norte, enfrentando a dureza de um autêntico Safari europeu. Já na região de Kalambaka, percorria-se a classificativa “Meteora”, uma das mais fotogénicas do álbum de memórias dos ralis, com os seus mosteiros construídos em cima de colossais rochedos. Depois de rumar novamente a Sul, um navio transportava os sobreviventes de volta para Atenas onde os aguardava a merecida consagração.

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A grande mudança

A evolução é um dos paradigmas da humanidade e os ralis não fogem a este princípio, tendo sido alvo de importantes transformações a partir do final dos anos 80. Já nos anos 90, com a chegada de um novo promotor, a ISC, a modalidade conheceu as mudanças mais radicais da sua história. Cada prova passou a durar apenas três dias, com aproximadamente 350 quilómetros cronometrados divididos em cerca de uma a duas dezenas de classificativas que se disputam duas vezes. E a meio da tarde, já as equipas estão de volta ao único parque de assistência do rali, dando por terminada a jornada. Foi esta a fórmula encontrada para minimizar os custos logísticos, contrapondo assim com os avultados investimentos das equipas no desenvolvimento tecnológico dos seus carros. Ao mesmo tempo, a desejada cobertura televisiva sairia facilitada.

Talvez não existissem grandes alternativas para garantir a vitalidade deste desporto e atrair os construtores, mas é inegável que os ralis alienaram muita da sua alma. Perdeu-se a vertente da descoberta e do desafio que constituía cada etapa do WRC. Há uns anos, Jean Todt percebeu isso mesmo e, com a ajuda de Michéle Mouton, pareceu disposto liberalizar as regras, de modo a recuperar a essência dos ralis e com isso, um maior mediatismo e entusiasmo dos espectadores, mas com o passar do tempo dá sinais de se render às evidências…

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Recuando um pouco, cinco anos, o regresso das provas com piso misto, a inclusão do Monte Carlo no calendário de 2012, com visita obrigatória às regiões míticas da prova, e os planos (na altura) dos organizadores argentinos para a criação de um longo rali com seis dias, pareciam ir de encontro aos desejos do presidente da FIA, mas era fundamental esperar pela posição dos construtores perante a perspetiva de ver os seus custos dispararem dramaticamente e esta como se calcula, não foi boa.

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O velho Rali de Portugal


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Não restam dúvidas que foram locais como Sintra, Fafe, Ponte de Lima, Cabreira, Arganil, Viseu ou Lousã que contribuíram para que Portugal conquistasse a fama e o reconhecimento da gente dos ralis, tendo recebido por seis vezes o título de melhor rali do mundo. No entanto, atualmente o ACP está preso ao formato de ‘boucle’, Ponte de Lima, Fafe, Marão e por isso o regresso a Arganil, a confirmarem-se novas diretrizes para 2019 nos ralis, mais difícil ficará. Sim, 2019, porque os ralis de 2018 estão definidos, se não por todas, quase todas as organizações…

Resta aguardar pelas decisões da FIA, mas se o bom senso imperar, até se acredita que se podem ‘formatar’ ainda mais os ralis, mas seria bom deixar sempre uma janela para inovação das organizações, pois é preciso diferenciação nas provas, senão é irrelevante um rali ser na China ou na Grã-Bretanha. É tudo igual, exceção feita à paisagem…

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