A lenda de Jorge Recalde

Por a 6 Fevereiro 2023 10:53

Por Martin Holmes e Guilherme Ribeiro

Jorge Recalde nunca será esquecido. O único piloto argentino que venceu uma prova do campeonato do Mundo de Ralis morreu quase há 22 anos, no dia 10 de março de 2001, aos 49, na sequência dum ataque cardíaco, que sofreu quando empurrava o seu carro rumo ao parque fechado em Villa Dolores. Oriundo de Mina Clavero, uma pequena cidade agrícola a cerca de 800 km de Buenos Aires, Jorge Recalde cresceu a viajar pelas estradas de terra da sua zona, e por isso conhecia os percursos do Rali da Argentina como poucos.

Deu-se a conhecer ao mundo em 1972, quando, a convite da FIAT, participou numa prova local, na zona de Mina Clavero, juntamente com pilotos europeus de renome, que bateu sem apelo nem agravo. Anos depois, Juan Manuel Fangio arranjou-lhe um lugar na Mercedes, e aí começou a sua escalada rumo ao sucesso, mas sempre com grandes dificuldades devido à falta de apoios.

Arranjar bons carros para disputar o Rali da Argentina, nunca foi um problema, mas sair do seu país era outra história. Em 1980 conseguiu alguns patrocínios para disputar ralis na Europa, mas não chegou para muito. Quedou-se pela Mercedes que o colocou a correr em África, onde, por exemplo, terminou no segundo lugar o Rali da Costa do Marfim, antes da Mercedes terminar o seu programa nos ralis. Mas dava sempre nas vistas no Rali da Argentina, e anos depois, levou um Lancia Delta à vitória no Rali da Argentina, em 1988. No ano seguinte começou a correr na Europa em Grupo N. Manteve-se nos ralis internacionais até 2000, terminou duas vezes em segundo na Taça FIA de grupo N e obteve nove pódios no WRC.

Era uma pessoa querida por todos. Por exemplo, o patrão da Mitsubishi, Andrew Cowan revelou que: “era uma excelente pessoa, sempre pronto a ajudar”, David Sutton, que lhe cedeu o Ford Escort que guiou na sua primeira visita à Europa contou que “não falava inglês naquela altura, mas tinha sempre um grande sorriso debaixo do enorme bigode”. Simo Lampinen, um dos ‘ases’ que Recalde ‘humilhou’ em 1972 na corrida organizada pela FIAT disse: “Percebi logo nessa prova que tinha uma fibra especial”.

Os primeiros dias

A vitória de Jorge Recalde no Rali da Argentina de 1988 foi a única vitória no WRC conseguida por um piloto argentino, ou mesmo sul-americano, até à data. Dada a paixão dos entusiastas locais pelos desportos motorizados, e considerando a estima tida por pilotos como Juan Manuel Fangio e Froilán González, esta realidade parece ser surpreendente. Esta é a história de Recalde que contou com o apoio de Fangio na sua caminhada nos ralis.

A morte súbita de Jorge Recalde foi um grande choque para todos os que tiveram o prazer de o conhecer ao longo dos seus 30 anos de carreira no desporto automóvel. O impacto que teve no cenário argentino foi alargado e só se foi percecionando à medida que o dia passava. É difícil colocar em perspetiva o significado da vida de uma pessoa, especialmente para alguém que vive do outro lado do globo, mas no caso de Jorge Recalde a sua tranquilidade e modéstia tornam esta realidade ainda mais difícil de avaliar. No entanto, um dos grandes triunfos da sua vida residiu no facto de Jorge viver, não simplesmente na

Argentina, mas bem longe dos grandes centros de civilização no meio do país. O mundo de Mina Clavero é bastante diferente da vida europeia.

A duas horas de estrada de Cordoba, por altas montanhas agora bastante conhecidas na Europa graças ao WRC e ao Rali da Argentina, desce-se para aquela pequena cidade rural. Atualmente, a ligação é feita por uma estrada rápida e bem-mantida. Há um quarto de século, era uma longa e entediante viagem por estradas em terra batida, atravessando troços suficientemente tortuosos para pedir o seu encerramento para o desporto motorizado.

Recalde estreou-se no mundo europeu do WRC em 1980, mas era já bem conhecido e respeitado antes disso. O desporto automóvel nos anos 70 atravessava

então um ponto de viragem no seu país. As provas de circuito eram muito disputadas, principalmente as “Temporadas” no defeso das épocas europeias, que levavam muitos europeus de renome aos confins do hemisfério sul. Recalde lembrava-se bem do dia em que o piloto suíço Silvio Moser vencera uma prova de Formula Junior para pilotos convidados em Cordoba.

Porém, os circuitos permanentes na Argentina daqueles tempos eram poucos, e a maior parte das competições tinha lugar em estrada aberta. Pilotos como Eduardo Larreta “Larry” tornaram-se reis do desporto motorizado pilotando nas autoestradas. Pilotavam carros de “Turismo Carretera” a velocidades muito elevadas. Recalde costumava lembrar-se do seu espanto devido a algumas secções usadas em eventos, como o Gran Prémio, serem vencidas com médias horárias bastante superiores às das provas em circuito fechado, assim como nos troços de terra.

A carreira desportiva de começou em 1970. O seu pai, que faleceu sem ter a oportunidade de o ver competir, já tinha ensinado o futuro campeão a conduzir nos 500 hectares de terreno do rancho familiar. Foi o momento que mudou a sua vida. Esperava-se que Jorge estudasse engenharia.

Os membros da família prosseguiram diferentes vocações. O pai, rancheiro; a mãe, advogada; o irmão mais velho, contabilista; a irmã mais velha, advogada e o irmão mais novo, arquiteto – isto sem mencionar as três irmãs mais novas. O futuro engenheiro não seguiria a sua vocação, porque o desporto automóvel interveio. Começaram por lhe emprestar um Renault Gordini 1093 e em apenas um ano tinha vencido a sua primeira prova de montanha, mas ao volante de um Fiat 600 importado. Este acabou por ser um momento importante também noutra perspetiva. Os carros anteriormente mais bem-sucedidos na Argentina eram modelos importados e preparados lá, geralmente Ford, Dodge e Chevrolet.

A produção de carros tinha começado a sério e uma alargada gama de marcas e modelos – e tamanhos – estava disponível. Jorge chegou ao topo da sua carreira pilotando carros de outras pessoas, exceto numa ocasião verdadeiramente memorável. Ele mesmo não se apercebeu de tal no momento. Em 1972, a Fiat queria publicitar o seu recém- introduzido modelo 125, e num surto de publicidade pegaram em alguns dos seus melhores pilotos europeus, como Simo Lampinen, Harry Källström, Arnaldo Cavallari e Håkan Lindberg, e levaram-nos para mostrar como se pilotava depressa. Seria uma prova monomarca entre Villa Carlos Paz e Mina Clavro, ida e volta, e alguns pilotos locais foram alinhados contra os visitantes, pilotando carros idênticos, incluindo Jorge, então com apenas 21 anos! Para espanto de todos, Jorge venceu de imediato. E ele perguntou qual era o prémio. “É um carro. De facto, o carro que acabaste de pilotar!” Seguiram-se uma alargada gama de carros e provas. lembrava-se de uma prova em estrada aberta em que partira do 57º posto, passou todos exceto dois carros na estrada, e venceu a prova por tempos. Correu em circuitos, não só em Sport-Protótipos, mas também em carros que seguiam as regras

da Formula 1 Argentina. Os carros eram monolugares de quatro cilindros, produzindo cerca de 350 cavalos.

Usava geralmente motores Renault, o que lhe deu um contacto próximo com o importador da marca francesa, com os quais teria a oportunidade de alcançar vários sucessos de nomeada nos ralis ao longo dos anos. Jorge fez a sua estreia competitiva ao volante de um Renault 12 no seu país, mas em 1975 tornou-se piloto de fábrica a tempo inteiro pela Ford. Recalde ouvira e sonhava em tornar-se um piloto profissional do outro lado do equador e o pentacampeão do Mundo de Fórmula 1, Juan Manuel Fangio, fez muito para o ajudar. Há alguns anos, Jorge disse- -me: “Mesmo quando o Juan Manuel terminou a sua carreira, nunca deixou de trabalhar em prol do nosso desporto. Andava pelas boxes nas provas, ia para as montanhas para assistir aos ralis. Todos o conheciam e respeitavam e era uma pessoa muito acessível.”

Jorge e Fangio tinham ainda outro elo de ligação. Jorge era amigo de Domingo Marimón e o seu pai era Onofre Marimón, o piloto de F1 e protegido de Fangio que havia morrido no Nürburgring em 1954. Querer ir para a Europa e fazê-lo eram duas coisas muito diferentes. Para Jorge, a memória daquela prova de 1972 não tinha sido esquecida e deixou-o em boa posição para cumprir o seu desígnio porque era um nome que os estrangeiros já reconheceriam. Mas foi Fangio quem deu o “empurrão” vital para o arranque da carreira internacional de Recalde. E nos vinte anos seguintes, Recalde tornou-se no bem conhecido embaixador dos ralis Argentinos pelo mundo.

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christopher-shean
christopher-shean
4 anos atrás

Não sabia que tinha morrido apesar de ter deixado de ouvir falar nele… muito menos a empurrar o carro! DEP!

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