Histórias de Spa-Francorchamps na Fórmula 1… e não só!

Por a 28 Agosto 2022 13:30

O próximo desafio para os 20 pilotos da grelha de 2022 é o GP da Bélgica de F1 em Spa-Francorchamps. Numa altura em que a clássica pista belga está em risco de não fazer parte do próximo calendários do “Grande Circo”, nada melhor do que recordar histórias de uma das mais icónicas pistas do Mundial de F1. Spa-Francorchamps conseguiu manter o carácter do velho traçado, que se tinha tornado demasiado extenso e perigoso perante a rapidíssima evolução do desporto motorizado. Porém, até aos anos 70, Spa era um desafio bem maior, uma das pistas, juntamente com Nürburgring e Monza, que mais respeito e temor inspirava aos pilotos.

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Apesar de ser um dos países mais pequenos da Europa, a Bélgica foi uma das nações que mais rápido se industrializou nos inícios do século XIX, em parte fruto da sua riqueza em ferro e carvão, pelo que não é de admirar que, pouco tempo depois da conceção do primeiro automóvel, existissem diversos pequenos construtores belgas com razoável importância no mercado europeu, salientando-se nomes como os Excelsior, Minerva, Nagant e Pipe, entre outros. Claro está que este desenvolvimento também se distinguiu na competição, com estas e outras marcas a aparecerem desde o final do século XIX nas listas de inscritos das principais provas disputadas anualmente, como a Taça Gordon Bennett e o G.P. do ACF. E, depois das tragédias do Paris-Madrid de 1903, foi na Bélgica que a “alta competição internacional” da época foi retomada, no Circuito das Ardenas, em Bastogne – esta foi uma das primeiras experiências em circuito fechado da história, e que mostrou o caminho a seguir por parte dos organizadores de eventos, já que as altas velocidades (para a época, com certeza) e a falta de controlo do público eram claras ameaças à segurança.

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Contudo, esta vanguarda por parte da Bélgica praticamente terminou com a I Guerra Mundial já que, apesar de neutral, foi invadida pelos Alemães e foi palco de sangrentas batalhas, causando inúmeras perdas humanas e irremediáveis danos nas suas infraestruturas. Mesmo assim, tal como se verificaria no pós- II Guerra, o automobilismo, pese os gastos e logística envolvidos, sempre recuperou mais depressa do que o leitor incauto esperaria, por isso logo em 1919 se organiza na Bélgica um rali. E seria um ano depois que o dono do conceituado jornal La Revue Sportive Illustrée Jules de Thier apresentou no seu periódico um esboço de um traçado na região de Spa (que já tinha assistido a provas no pré-Guerra). Assistido por alguns notáveis do Royal Automobile Club de Belgique (RACB), de Thier desenhou então um traçado de formato aproximadamente triangular, usando as estradas que ligavam as vilas de Francorchamps, Malmédy e Stavelot, localizadas a sul de Spa, traçado esse que teria aproximadamente 15 Km e que não tardaria a ficar conhecido por Spa-Francorchamps, devido à proximidade entre as vilas e a ligação de Spa ao tempo dos pioneiros. É interessante salientar aqui que esta pista foi um “produto” do Tratado de Versalhes, o principal documento que pôs fim à I Guerra Mundial! Tudo isto porque a velha fronteira entre a Bélgica e a Alemanha se localizava paralela à atual reta Kemmel, seguindo a direito na direção do Luxemburgo, o que deixava Malmédy e parte da mítica recta Masta no território alemão! Aliás, antes da construção do Raidillon os pilotos descreviam uma esquerda apertada em Eau Rouge pela estrada que levava até ao posto fronteiriço – daí o nome “Virage de l’Ancienne Douane”, aonde descreviam um gancho à direita que os levava de novo em direcção a Kemmel. Só em 1939 seria construída uma ligação, claramente inspirada pelo desporto motorizado, entre a ponte sobre o riacho de Eau Rouge e Kemmel, o famoso Raidillon.

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Spa foi inaugurado com uma prova de motos em 1921, e depois recebeu a primeira prova de endurance em 1922 – que daria origem às 24 Horas de Spa em 1924 – e só em 1925 foi organizado o primeiro Grande Prémio da Bélgica, dominado ostensivamente pelos Alfa Romeo, com a vitória a ir para Antonio Ascari. Rapidamente Spa-Francorchamps se tornou numa das mais conceituadas pistas europeias, se bem que muito perigosa, já que era estreita e rodeada de árvores e postes elétricos, o que, aliado à habitual meteorologia instável das Ardenas, não perdoava o menor erro, e cedo Spa reclamou o seu lote de vidas. Infelizmente, muito mais homens morreriam por perto na última contra-ofensiva da Alemanha Nazi, a Campanha das Ardenas, contra as forças aliadas que avançavam de França para Berlim. Um dos epicentros da chamada Batalha de Bulge (Dezembro de 1944-Janeiro de 1945) localizava-se precisamente no eixo Malmédy-Stavelot, o que causou verdadeiros massacres na região. No entanto, uma vez mais, o desporto regressou a Spa-Francorchamps mal as infraestruturas foram reparadas e no final dos anos 40 tanto as 24 Horas como o G.P. da Bélgica já tinham sido retomados. E, entretanto, todas as curvas lentas à exceção de La Source foram eliminadas já que, além da construção do Raidillon, foram construídos pequenos troços que contornavam o original traçado em Malmédy e Stavelot, tornando a pista num verdadeiro traçado de alta velocidade, passando o circuito a medir 14,100 quilómetros.

Com autorização do autor, vamos viajar a alta velocidade, num Porsche 917 de 1970, pelo traçado de Spa, ao lado de Brian Redman: “Começo em La Source, o gancho que constitui a última curva aonde progressivamente aperto o acelerador até endireitar o carro e depois carrego a fundo no pedal na descida das boxes. Quando passo pela linha de meta, passo de segunda para terceira enquanto atinjo cerca de 260 km/h. Um toque nos travões no final da descida permite-me deslizar pelo “s” de Eau Rouge e carregar estrada acima a 225 km/h pela sequência direita/esquerda do Raidillon. Metendo a quarta velocidade (a mais alta num Porsche 917K), sigo a alta velocidade pela reta Kemmel, em ligeira subida, sempre com a velocidade a aumentar. Em cada passagem de caixa, não deixo as rotações passarem das 8.000 rpm, uma mudança em falso e as delicadas válvulas encontram-se com os agitados pistões, resultando num motor partido.”

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“Quando a vasta esquerda de Les Combes surge no horizonte a cerca de 270 km/h, travo a fundo, desço para terceira e, usando toda a largura da pista, carrego de novo no acelerador para mais uma longa descida para a longa direita a fundo chamada Burnenville. Ainda com a relação mais alta, ataco ao máximo a ligação até Malmédy e à reta Masta, aquele estreito pedaço de estrada pública com cerca de dois quilómetros e meio aonde levo o carro à sua velocidade máxima – 344,5 km/h. Tento pensar o mínimo possível à medida que me aproximo do “s” de Masta, provavelmente a curva mais intimidante do desporto automóvel. Aquela velocidade, não posso sequer imaginar o mais leve levantar do pedal, sem perder segundos preciosos (e o meu lugar na equipa). Esquerda/direita a 290 km/h para seguir pela reta Hollowell, de novo a fundo à velocidade máxima por cerca de mais dois quilómetros e meio.”

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“Stavelot, uma longa direita, é feita com a mudança mais alta a cerca de 275 km/h e seguida de uma rápida esquerda que rapidamente se torna numa direita a 260 km/h com o ponto de corda perto de uma construção de pedra. De seguida, em frente e a subir em direção à cega e a fundo Les Carrières, sempre a ganhar velocidade até à igualmente cega Blanchimont, onde uma curta margem de relva é o tudo o que separa a pista de uma barreira de aço. Uma última reta em subida traz-me de novo a La Source, a curva em primeira velocidade onde esta volta começou. Esta curva lenta permite-me alguns segundos para respirar, fletir os músculos e relaxar até repetir novo exercício – 14 vezes mais”.

Esperando que os leitores tenham apreciado a descrição de uma volta ao fabuloso traçado no seu apogeu – depois dos acidentes mortais nas 24 Horas de Spa de 1973, foi colocada uma chicane em Malmédy – deixo-os com as restantes considerações de Brian Redman sobre Spa. É de salientar que este piloto, cuja carreira foi particularmente longa, estendendo-se desde meados de anos 60 até ao final da década de 80, e recheada de êxitos – que será em breve “alvo” de uma biografia nesta rúbrica – correu numa época onde a taxa de mortalidade na competição era elevadíssima, e o próprio dizia que Spa era daqueles lugares em que, quando fechava a porta do hotel na manhã da corrida, pensava sempre se iria ou não voltar, com uma intensidade diferente das outras pistas. Estes excertos foram retirados do livro Brian Redman – Daring Drivers, Deadly Tracks, uma autobiografia do piloto com a contribuição do autor Jim Mullen, e são reproduzidos nesta publicação com a clara permissão do antigo piloto. Deixo-os então, mais uma vez, voar nas asas da história com Brian Redman:

“Entre 1965 e 1975, um em cada três pilotos de topo do Mundial de Sport-Protótipos morreram ao volante ou em resultado de acidentes em pista. As probabilidades eram ainda maiores para aqueles de nós que também competiam na Fórmula 1. Para perceber como e porquê, não há pista mais significativa que Spa-Francorchamps.”

“Na volta de abertura do G.P. da Bélgica de 1966, o pelotão ainda compacto deparou-se com uma inesperada chuva torrencial na parte mais rápida de Spa, originando uma sequência de despistes para os campos adjacentes. O BRM de Jackie Stewart entrou em aquaplaning na temível secção de Masta, bateu na cabana de um lenhador e acabou na cave de uma quinta próxima. Stewart ficou preso no seu carro capotado, com costelas partidas e um ombro deslocado, enquanto a bomba de gasolina elétrica continuava ligada e derramava o conteúdo do tanque sobre o piloto. Felizmente, os seus colegas da BRM Graham Hill e Bob Bondurant tinham batido com menos violência nas proximidades e conseguiram desencarcerar Stewart com ajuda de ferramentas fornecidas por um espectador.”

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“Não só os carros da época eram construídos sem qualquer proteção para o piloto ou mesmo com rádios, mas também circuitos como Spa eram produtos de uma construção romântica datada de 40 anos. Havia muito poucos meios de proteção dos pilotos e espectadores, o apoio dos comissários era insuficiente, não havia posto médico no local, e os organizadores pareciam esquecer as crescentes velocidades. A experiência dramática de Stewart tornou-o no mais incansável e resoluto ativista pela segurança, muitas vezes criticado mas, em última instância, bem-sucedido. Infelizmente para mim, a influência de Jackie na segurança só se começou a fazer verdadeiramente sentir a partir de 1976, tornando-se um movimento crescente a partir daí. No final da década, o período moderno da segurança no desporto automóvel estava definitivamente estabelecido, e tem melhorado continuamente a cada ano que passa. Penso que cada piloto que tenha sobrevivido a um acidente nas últimas quatro décadas faria bem em ajoelhar-se hoje à noite e oferecer uma pequena prece pela contribuição do tricampeão mundial de F1 Sir John Young “Jackie” Stewart OBE.”

“Os pilotos dos dias de hoje que conhecem as 4 milhas e meia do circuito belga enfatizam a forma como curvas rápidas se encaixam em retas de alta-velocidade, curtas ou longas, em subida ou descida. Mais tarde ou mais cedo, histórias da abordagem ao complexo Eau Rouge/Raidillon são discutidas, dando azo aos pilotos para embelezar as suas histórias e provar o seu valor. Dificilmente alguém vai mencionar as largas escapatórias de asfalto, as contínuas barreiras de aço, os múltiplos postos de comissários ou a chicane que quase faz os carros parar. Nem o devem fazer. O circuito moderno de Spa é um bom circuito que permite excelentes provas em condições de segurança fantásticas, e todos os pilotos devem estar agradecidos por esse facto.”

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“Mas este não é o Spa que em que eu corri nos anos 60 e 70. Não é o Spa que quase me quebrou o espírito e quebrou o meu corpo. Nem é o Spa no qual eu venci cinco grandes corridas em cinco carros frágeis.”

“A pista original era um triângulo de 14,100 Km, composto por estradas rústicas ancoradas em cada ponta pelas vilas de Francorchamps, Malmedy e Stavelot. O circuito havia sido concebido no início da década de 20 para carros com potências a rondas os 50 cv., capazes de menos de 160 km/h, e continuou como uma magnífica loucura até termos máquinas de 620 cv. a rodar a mais de 320 km/h numa ânsia insana. Quando me estreei, Spa já tinha adquirido uma aura de não perdoar quaisquer erros, mesmo numa época em que a segurança preocupava apenas alguns pilotos e absolutamente nenhum manager.”

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“Aparte um gancho, o circuito original de Spa era uma tira de longas retas, misturado com curvas rapidíssimas, todas a serem negociadas com a agressividade que os pneus da época permitiam. Se, com o acelerador a fundo, um piloto saísse de Malmedy 5 km/h mais rápido que os seus adversários, conseguia entrar a uma velocidade superior ao longo de toda distância da reta de Masta, e o mesmo na igualmente longa Hollowell. Aritmeticamente, um Porsche 917 cobria, a 345 km/h, o comprimento de um campo de futebol (96 metros) num só segundo, e fazia-o por 26 longos segundos em cada uma destas duas retas. Se a velocidade de dois carros de competição fosse exatamente a mesma noutras partes do circuito, o piloto que fosse 5 km/h mais rápido nas rectas de Masta e Hollowell conseguiria uma vantagem de 14 carros e meio a cada volta do seu turno de 15 voltas, e estaria cerca de 1 quilómetro à frente quando passasse o carro ao seu colega de equipa – domínio total.”

“Inversamente, o mais pequeno erro de pilotagem em Masta kink – uma ligeira esquerda/direita a meio da reta Masta – ou o ligeiro levantar do pé nas curvas de Burnenville, Stavelot ou Blanchimont aumentava o tempo da volta não em meras décimas de segundo, mas sim mesmo em dois ou três segundos, custando cerca de 2 quilómetros no seu turno de pilotagem. Uma performance destas era impensável e levaria decerto ao rápido desemprego.”

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“Mais preocupante era a dura punição para o mais pequeno erro. Um carro de competição com pneus viscosos no asfalto abrasivo perde velocidade, mas se os pneus por acaso saem do circuito para a escorregadia relva perde aderência e algum ímpeto. E, sem impedimentos, pode fazer uma grande distância a um ritmo assustadoramente alto. Contudo, em Spa, nenhum carro poderia derrapar muito sem encontrar uma casa, árvore, poste telefónico, muro, talude, valeta ou um garrote de arame farpado. Estes perigos eram agravados pela natureza provincial do terreno e pelo tempo muito instável da região. Uma parte do traçado poderia estar banhada pelo sol, enquanto a outra estaria encharcada pela chuva. Sem rádios, os pilotos não tinham forma de saber de qualquer deterioração das condições e não raras vezes deparavam-se com cortinas de água que não existiam na volta anterior. Era comumente aceite que os acidentes no velho Spa resultavam geralmente em lesões sérias, ou pior.”

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MVM
MVM
6 anos atrás

Que artigo interessante! Parabéns ao AS.

dumberdog
dumberdog
6 anos atrás

Excelente artigo!!!

joaolima
joaolima
1 ano atrás

Grande artigo que vale sempre reler!

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