Mundial de Karting de 1979 no Estoril: O título que Ayrton Senna perdeu por… engano

 

Ele há dias assim e o dia 24 de Setembro de 1979 foi um desses dias. Pelo menos para um tal de Ayrton Senna da Silva, estrela emergente da música popular gritada pelos cilindros dos motores e que, no Kartódromo do Estoril, cantou uma canção de embalar… mas em que o bandido acabou por ser outro, o improvável Peter Köne. Esta é a história de como um Campeão do Mundo anunciado não o foi. Na verdade, à boa maneira dos heróis que povoam os livros de Gabriel Garcia Márquez. O AutoSport esteve lá, ao vivo e em direto…

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O título da reportagem, assinada por José Vieira, Dina Lopes e Vítor Abreu, diz tudo: “Peter Köne, o vencedor surpresa.” E acrescenta, em subtítulo: “Figueiredo e Silva (35º) o melhor português.” Pois é: estas coisas acontecem. Apesar de Ayrton Senna da Silva, que foi o último da delegação brasileira a chegar, proveniente de Itália, ser declaradamente o principal favorito. Ele que, aos 19 anos, era já “menino querido” dos “tifosi” portugueses que, na sua maioria, se deslocaram ao Estoril para o verem atuar. Isto mesmo: atuar, pois já aí ele, o futuro Senna de todas

as histórias de príncipes dourados e de meninos bem comportados da atualidade, era um artista que debruava a sua arte pelas pistas de todo o mundo. Então, ainda e apenas do karting.

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O segundo pois é desta narrativa vai para os portugueses. Dizia, então, Vítor Abreu: “Os pilotos portugueses não estão em condições de poderem discutir os primeiros lugares, mas já seria muito bom se um ou dois dos nossos pilotos conseguisse qualificar-se para a Final.” Não foi bom, pois nem um só conseguiu entrar nas Finais). Ayrton Senna da Silva, o fenómeno O Campeonato do Mundo de Karting era, na altura, uma das grandes provas internacionais que se realizavam em Portugal. A F1 ainda estava longe e, no Estoril, as bancadas apenas se enchiam durante o “slalom” do Rali de Portugal. Por isso, não são de estranhar os encómios assinalados pelo AutoSport: “O Autódromo do Estoril vestiu a sua melhor roupagem para receber em sua casa a fina flor do Karting Mundial. Foi a festa maior da modalidade no que toca à Classe A, a única que tem as honras de Campeonato do Mundo, pelo menos até este ano.” O resumo da prova diz tudo – sobre o que se passou e sobre os desejos de quem assistiu, e até de quem fez a reportagem: “O vencedor foi o holandês Peter Köne, apesar de no final das três manches estar empatado com o fenómeno do karting brasileiro, que dá pelo nome de Ayrton Senna da Silva. Senna da Silva merecia plenamente o título mundial e por pouco o Campeão do Mundo quase que falava português.

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Então, já era assim: Ayrton Senna da Silva, um verdadeiro fenómeno de popularidade entre os fãs portugueses. E ainda faltavam seis anos para

ele dar “show”, no dilúvio do GP de Portugal, a sua primeira vitória na F1. O que se segue diz tudo sobre o ambiente, difícil aliás de imaginar: “Para o muitíssimo público que encheu as bancadas do autódromo, fenómeno que só se verifica com a realização de provas internacionais de karting, Senna da Silva foi sem dúvida o ídolo do dia. Cada vez que Senna da Silva ultrapassava um adversário, toda a bancada explodia numa aclamação unanimemente estrondosa, que só encontra paralelo nos estádios de futebol.” Nas eliminatórias, Senna da Silva (vamos tratá-lo, aqui neste trabalho, desta forma, pois o Ayrton Senna só “nasceu” mais tarde) ganhou (quase) tudo. Só que na quarta eliminatória sucedeu o que, nas contas finais, acabou por prejudicar Senna: “Uma manche de peso. Fullerton, Senna da Silva, Allen e Wilson ocupavam as duas primeiras linhas da grelha de partida. (…) Senna da Silva tomou a dianteira seguido de Fullerton mas, na terceira volta, conforme havia dito, deixou passar o piloto britânico para o primeiro lugar. Era uma pura manobra tática de jogo de equipa de fábrica, uma vez que os dois pilotos correm pela DAP. No entanto, Senna da Silva cometeu o erro que no final do dia se viria a revelar bastante grave Da Silva colouse a Fullerton e quando este gripou na reta que antecede a curva do bar e lhe barrou o caminho, o brasileiro saiu fora da pista juntamente com Fullerton, que provavelmente terá sentido o seu motor a gripar e avisou tardiamente Senna da Silva. O piloto brasileiro pode continuar a prova, mas os primeiros já estavam longe e os pontos perdidos nesta manche viriam a mostrar-se preciosos para o desempate final com Köne.”

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As Finais decisivas

Tudo se decidiu na tarde de domingo, em três finais. “Para a primeira final, Mike Wilson ocupava a pole-position e tinha a seu lado o holandês Peter de Bruyn. Após a partida de Bruyn tomou o comando seguido de Senna da Silva. (…) Na 13ª volta Senna da Silva baixou para o quinto lugar por troca com Köne e Yasutoshi. A causa deste atraso foi o carburador que Senna da Silva procurava afinar.(…) Nesta altura, Senna da Silva curvava em algumas das zonas mais difíceis do kartódromo só com uma mão no volante e com a mão direita afinava o carburador. Conduzir dessa forma, à velocidade que o piloto brasileiro o fazia, não está a alcance de qualquer piloto. Na 14ª volta estavam três holandeses nos três primeiros lugares [de Bruyn, Köne e Schurman]. O impossível aconteceu: A primeira manche final terminou sem que nenhum dos grandes favoritos estivesse classificado nos lugares de honra.” E, diga-se em abono da verdade, foi aquela forma de Senna da Silva pilotar, em alta velocidade, com a mão esquerda a agarrar o volante (ele era canhoto) e a direita a tapar o carburador, para evitar a entrada de ar e, com isso, e enriquecendo a mistura progressivamente, que ficou na memória e, desde logo, tornou o jovem brasileiro no início de uma lenda. É que os outros pilotos também faziam isso, à mesma velocidade, mas somente nas retas. E Senna da Silva fê-lo, volta a após volta, mesmo nas zonas mais sinuosas e perigosas do traçado! Continuou a relatar o AutoSport: “A segunda manche tinha os três holandeses a frente e tudo parecia indicar que seria um holandês a vencer o Mundial.

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O jogo de equipa iria ditar as suas leis (…) e funcionou quase em pleno até à 10ª volta. Köne e Schurman protegeram da melhor forma De Bruyn dos ataques de Senna da Silva. Este, contudo, conseguiu passar os dois holandeses e, na 10ª volta, quando o motor de Peter de Bruyn gripou, o brasileiro ficou no comando da corrida (…) porém Köne passou Da Silva, relegando o brasileiro para o segundo lugar. Na terceira posição ficou Schurman.” Tudo estava, portanto, por decidir. Isso teria que esperar pela última manga, para a qual “Köne partiu (…) como o piloto melhor colocado para vencer o Campeonato do Mundo. (…) No entanto, não foi Köne que tomou a dianteira e sim Schurman, (…) seguido de Yasutoshi, Köne e Senna da Silva. Pouco depois, o brasileiro passou Yasutoshi e Köne e instalou-se na segunda posição, para pouco depois se guindar ao primeiro lugar. Para nós, que nos encontrávamos no “miolo”, era fácil saber quando Senna da Silva entrava na reta da meta com uma posição conquistada, pois de uma forma impressionante o público levantava-se das bancadas, de uma maneira como nunca tínhamos visto numa prova de karting. Senna da Silva, uma vez na frente, foi ganhando avanço sobre Schurman (…)” Sucedeu então o impensável. O que, ainda hoje, 37 anos depois, é recordado por todos – os que lá estiveram e os que, sem estarem, sabem tão bem como os primeiros: “Peter Köne não passou do sexto posto e quando terminou a manche convenceu-se de que tinha perdido o Campeonato do Mundo a favor de Senna da Silva, tanto que quando estes entraram no “miolo” a caminho das boxes, o brasileiro, por sinais, perguntou a Köne se tinha ganho o Mundial, este confirmou que sim. Enquanto Senna da Silva chegava exuberante à balança, Köne ia triste. No entanto, pouco depois as situações inverteram-se e era Köne quem dava largas à sua alegria, com direito a champanhe e abraços.” Afinal, o que tinha sucedido? Simples: “Os dois pilotos chegaram ao final da terceira manche empatados em pontos. Ambos tinham uma vitória e um segundo lugar, o que lhes conferia dois pontos no total, uma vez que das três manches só eram aproveitáveis os dois melhores resultados. Porém, ao contrário do que é habitual, o desempate não era feito pela manche deitada fora, mas sim pelo somatório de pontos obtidos nas eliminatórias disputadas no domingo de manhã. Ora, como no somatório das eliminatórias Peter Köne tinha 19 pontos contra 24 de Senna da Silva, estava feito o desempate a favor do piloto holandês.”

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José Vieira, porém, repõe a justiça do resultado: “Apesar da vitória ter sido conseguida desta forma, Köne, que no começo deste Mundial não

era potencialmente candidato à vitória, soube, pelas suas atuações, chamar à atenção e o título de Campeão do Mundo de 1979 foi ganho com todo o merecimento.” Para que conste, Ayrton Senna da Silva procurou a vingança no ano seguinte, em Nivelles, mas acabou por ser de novo batido por um holandês, agora Pater De Bruyn, terminando outra vez em segundo lugar. Em 1981, na cidade de Parma, tentou de novo, terminando em quarto lugar. E esta foi a grande mágoa (quiçá, a única?) de Senna, nunca ter ganho um título de Campeão Mundial no Karting.

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Nomes famosos que vieram ao Mundial de Karting

A maioria dos pilotos que estiveram no Mundial de Karting, em 1979, no Estoril, nunca passaram disso mesmo: pilotos de “karting”. As exceções foram poucas e, mesmo assim, muitas delas deixaram apenas brilho no firmamento das corridas de “karting”, jamais avançando com a carreira para os automóveis. Bom exemplo disso foi o mais famoso dos pilotos britânicos presentes, Terry Fullerton. Nascido em 1953, foi Campeão do Mundo em 1973, em Nivelles Chegou ao Estoril, aos 26 anos, como Campeão da Europa em 1977, vencedor Taça dos Campeões em 1978 e 1979 e do Hong Kong Kart Prix e, por várias vezes, campeão da Grã-Bretanha. Era a sua 4ª vez no Estoril, onde nunca conseguiu boas classificações.

Segundo Allen, era o favorito: “Se ele disse isso é porque deve ser verdade!” Correu com chassis próprio e motores DAP e foi apenas 32º: “O piloto britânico preocupase apenas em ganhar provas e não liga muito à mecânica”, disse então o AutoSport. Nunca passou do “karting” e retirou-se da competição em 1984 e, desde aí, treinou pilotos como Paul di Resta, Dan Wheldon, Justin Wilson, Allan McNish ou Anthony Davidson. Mas, em 1979, viajaram até ao Estoril três italianos que, mais tarde, iriam dar que falar – tendo mesmo dois deles chegado à F1. Na verdade, os únicos das largas dezenas de pilotos que fizeram este Mundial a consegui-lo: Stefano Modena, Emanuelle Pirro e Roberto Ravaglia.

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A armada nacional

O “karting ” surgiu em Portugal no início dos anos 60, veiculado pelo visionário jornalista do “Motor” Augusto Martins e com pilotos como Joaquim Filipe Nogueira, Manuel Nogueira Pinto, Castro Pereira, Pinto basto ou Batista dos Santos. Em 1979, segundo reza o AutoSport de então, “o karting português atravessa um dos seus melhores momentos de sempre. 150 licenças foram já emitidas pelo ACP e “Para poder treinar terá que optar entre a pista do Autódromo do Estoril ou o kartódromo do Cabo do Mundo, em Matosinhos.”

O capitão da equipa portuguesa era Ruy Castro Santos, antigo praticante e pai dos futuros pilotos Pedro, Diogo e Bruno Castro Santos. A equipa era composta pelos seguintes pilotos: António dos Santos Dinis (31 anos). Segundo classificado da Categoria A em 1978 e 1979. Foi 50º no seu segundo Mundial de Karting, em Le Mans, 1978. “Gehefe” (30 anos) Foi campeão Nacional da Cat. Inter A e participou nos Mundiais de 1977 (Parma) e 1978 (Le Mans), onde não passou dos quartos de final. No Estoril, terminou em 63º, melhor que no ano anterior, apesar de problemas com o carburador do “kart”. Carlos Nascimento (39 anos). Foi terceiro no Nacional da Cat. Inter A em 1979. No Estoril, foi vítima de muitos problemas mecânicos.

Joaquim Figueiredo (22 anos). Quarto no Nacional da Cat. Inter A, Foi ao Estoril “para aprender” e terminou em 69º lugar. Luís Figueiredo e Silva (29 anos). “Português com mais prática da modalidade. Campeão Nacional da Cat. Nacional Super em 1978 e o português com o maior número de presenças em Mundiais: de 1973, em Nivelles, de 1974, no Estoril; em 1978, em Le Mans. Foi sempre “classificado como o melhor português.” No Estoril, foi de novo 2º melhor e, simultaneamente, o mais azarento dos pilotos portugueses. Realizando o 31º tempo dos treinos cronometrados, apenas por três centésimos de segundo não foi apurado para as meias-finais apenas por um lugar não ganhou o direito de

participar nas Finais, facto que até hoje nenhum piloto português conseguiu realizar.”

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Mário Borges (21 anos). “O piloto mais novo da equipa nacional esteve ausente, porque iniciou o cumprimento das suas obrigações militares”. No final, em jeito de balanço, escreveu-se no AutoSport: “No que diz respeito aos pilotos portugueses, haverá a registar uma certa melhoria em relação ao ano anterior, uma vez que três dos pilotos nacionais estiveram presentes nas meias-finais, facto que até agora não tinha acontecido, sendo de salientar a atuação de Figueiredo e Silva que, apenas por três centésimos de segundo não se viu automaticamente qualificado para as meias-finais do mundial e por apenas um lugar não teve direito de figurar entre os 34 melhores pilotos de Karting deste planeta”, tantos quantos os que disputaram o Mundial, dos 64 que estiveram no Estoril.