Stefan Bellof: Um meteoro na Fórmula 1

Por a 30 Dezembro 2019 19:17

Stefan Bellof foi um meteoro que passou pela F1. O seu aspeto frágil escondia um temperamento férreo e uma coragem temerária, que por vezes raiava a inconsciência. O seu desaparecimento precoce cerceou uma carreira nascente, que nunca se saberá onde o teria levado. Muitos viam-no já como um futuro Campeão do Mundo. Já lá vão 35 anos que o mundo se surpreendeu pela derradeira vez com essa sua coragem – em Spa, a pista dos heróis. Numa altura em que o seu mítico recorde do Nordschleife foi batido, recordamos o piloto que o deteve por 35 anos…

A primeira vez que ouvi falar de Stefan Bellof foi quando ele se estreou na F2 e, com um improvável Maurer, ganhou as duas primeiras corridas em que participou. Nessa altura, comprava religiosamente várias publicações ligadas ao automobilismo de competição – e, entre elas, a Sport Auto e o AUTOhebdo. Numa delas, encontrei uma longa reportagem sobre este jovem de ar franzino, um grande sorriso numa boca enorme, cabelos loiros rebeldes, à James Dean.

Devorei a entrevista e, órfão de Gilles Villeneuve, a partir daí, tornei-me fã irredutível deste rapaz de Giessen. Até ao fim da sua vida, aos 27 anos.

Nasceu para vencer

Stefan Bellof era daqueles pilotos que, quanto mais brutal o desafio colocado pela potência no final das rédeas que a dirigiam, mais mestria colocava no seu domínio. Transfigurava-se; a sua ousadia não tinha limites. Medo e impossível eram palavras que não constavam no seu dicionário; foram a estrela da sua

vida.

Nasceu em Giessen, uma cidadezinha situada entre Nürburgring e Hockenheim. Uma coincidência trágica e, também, profética: não muito longe, tinha nascido Wolfgang von Trips; e nasceria mais tarde Michael Schumacher – os três pilotos alemães que mais talento trouxeram do berço para serem Campeões do Mundo. O primeiro, ficou à beira da glória; o segundo, não viveu muito para contá-la; o terceiro, tornou-se numa lenda (ainda) viva. Mas que afrodisíacos possuem aqueles ares, vitalizados pelos odores das Ardenas e do Eifel, para produzirem pilotos assim? Talvez a proximidade relativa a Spa-Francorchamps e ao Nürburgring, dois mitos da coragem mais pura ao volante.

Portanto, Bellof não se destacou nas fórmulas de promoção: afinal, nem sequer teve tempo para isso. Era, mais que um piloto em busca de títulos, um jovem ansioso por seguir em frente. Do título alemão na FF 1600, em 1980, passou a meio da temporada para a F3 – e quase venceu de novo. Mas a paciência não fazia também parte da sua filosofia de viver a vida – e, em 1982, estreou-se na F2, ganhando com o também estreante Maurer/ BMW as duas primeiras provas do Campeonato, em Silverstone e Hockenheim. Os holofotes acenderam-se sobre a sua cabeça desgrenhada e o sorriso luminoso – e apenas se apagaram naquela fatídica tarde em Spa, três anos mais tarde. Ou talvez não: Bellof está hoje no panteão dos heróis, aqueles que viveram depressa a vida e morreram jovens.

Em 1983, depois de uma primeira experiência, no ano anterior, com um Kremer C-5, Bellof decidiu disputar o Campeonato do Mundo de Sports-car, com um Porsche 956 da Rothmans, que partilhou com o veterano Derelk Bell. Nesse ano, em Nürburgring, fez uma volta ao velho e fantasmagórico circuito em 6m25,91s – e, até hoje, nunca ninguém conseguiu fazer mais rápido. A sua primeira coroa de Campeão do Mundo conquistou-a em 1984, depois de seis vitórias, sempre com Bell, ao qual se juntou John Watson. Mas, nessa altura, estava já na F1.

Mais rápido que Senna à chuva?

Stefan Bellof foi descoberto pelo velho lenhador Ken Tyrrell, que foi um caçador de talentos desde que, nos anos 50, concluiu que era um péssimo piloto e decidiu fundar a sua própria equipa, para desenvolver campeões em potência. Em Bellof, pensou ter encontrado mais um – mais talentoso que Jackie Stewart, mais corajoso talvez que François Cévert.

Da sua curta e meteórica passagem pela F1, recordo com enorme prazer aquele polémico Grande Prémio do Mónaco, que Alain Prost ganhou depois do seu amigo Jacky Ickx, que fazia de diretor de prova, ter interrompido a corrida, que estava a desenrolar-se debaixo de chuva torrencial. Toda a gente fala e lembra um Toleman que, magistralmente pilotado por outro jovem, de seu nome Ayrton Senna da Silva, se aproximava a passos largos do francês. E que, sem a interrupção da corrida, poderia tê-la ganho. Pois eu não: os meus olhos e o meu vencedor estavam colados num Tyrrell azul-escuro que, ainda melhor pilotado por um alemão com um nome de sonoridade russa, estava a rodar ainda mais depressa e, não apenas se aproximava de Prost, como cada vez mais de Senna.

Esse sim, teria sido o vencedor desse Grande Prémio do Mónaco. O seu nome? Stefan Bellof! No ano seguinte, continuou na Tyrrell e acabou por pontuar no GP de Portugal – foi 6º, noutro dilúvio célebre, em que de novo o herói se chamou Senna – e também no GP de Detroit – em que foi 4º classificado, mesmo fazendo a corrida sem a asa dianteira!

O choque em Spa

A morte de Bellof não foi uma surpresa para mim – foi, apenas, mais um choque, no meu baú de memórias que retenho, sobre a F1. Ele nunca poderia ter conhecido uma sorte diferente – tal como aconteceu com James Dean. Durante os 1000 Kms. de Spa, prova pontuável para o Mundial de Sportscar, Bellof e Ickx lutavam arduamente pela liderança, com o belga na frente do alemão. Na descida para o Raidillon, em plena curva de Eau Rouge, Bellof tentou passar Ickx, que não o viu. Era uma manobra que apenas um visionário como Bellof teria tentado. O contacto foi inevitável e, a 300 Km/h, ambos os Porsche entraram em despiste. Mas, enquanto o de Ickx se imobilizou após alguns piões, o de Bellof desviou-se secamente para a esquerda e, sem espaço físico para o piloto tentar perder velocidade ou inércia, esmagou-se contra as proteções laterais, exatamente no sítio onde ancorava uma bancada. O Porsche explodiu em chamas e, para Bellof, o destino marcou a hora.

Dois meses mais tarde teria festejado 28 anos. Tinha assinado havia pouco um contrato, para ser segundo piloto da Ferrari no ano seguinte. Foi-lhe impossível cumpri-lo: e foi esta a segunda vez em que a palavra impossível entrou no seu dicionário; a primeira, foi em 1 de Setembro de 1985, durante aquela manobra.

Fez agora 30 anos.

Gato escondido…

O primeiro ano de Stefan Bellof na F1 ficou célebre pelos piores motivos. Depois de meia dúzia de surpreendentes exibições, tudo se esfumou quando a FIA descobriu a batota feita nos Tyrrell e decidiu desqualificar a equipa do velho lenhador e, por arrasto, os pilotos. A razão? Simples, verdadeiro golpe de génio – mas um pouco à laia de gato escondido com o rabo de fora: depois do GP de Detroit, em que os dois Tyrrell estiveram na luta pelo triunfo, os comissários técnicos da FIA descobriram lastros ilegais no fundo dos depósitos dos carros – uma forma engenhosa de tornar os 012 mais competitivos, perante os mais poderosos carros equipados com motores turbo, que tinham mais 150 cv de potência. A Tyrrell apelou da decisão, mas perdeu, sendo arredada do Campeonato a partir do GP da Holanda. Até então, ficaram na memória algumas excelentes exibições dos seus pilotos, nomeadamente a de Stefan Bellof, no GP do Mónaco. A primeira vez que Stefan Bellof se sentou num F1 foi numa sessão de testes a convite da McLaren, que reuniu em Silverstone os dois pilotos que lutavam pelo título na F3 inglesa, Ayrton Senna (Campeão) e Martin Brundle. Entrando em pista depois de Senna, Bellof quebrou a caixa de velocidades e Brundle já nem se sentou no carro!

Mas as suas qualidades – rapidez, ousadia a coragem – já tinham impressionado Ken Tyrrell, que não teve muito trabalho em o contratar para a temporada de 1984. Ao volante de um 012 equipado com motor Ford Cosworth DFV V8, nem sempre as coisas correram bem. Mas, quando correram, correram mesmo muito bem! Stefan Bellof conquistou o seu primeiro ponto no Mundial no GP da Bélgica, em Zolder, onde foi 6º classificado. Tinha abandonado nas duas primeiras corridas da temporada e, logo a seguir, repetiu a posição, ao ser 6º no GP de San Marino. Mas, pouco mais de três semanas depois, Bellof ‘explode’, literalmente, no mundo da F1 – ao mesmo tempo que um tal de Ayrton Senna.

Palco: as estreitas ruas da cidade de Monte Carlo, capital do Principado do Mónaco – cenário anual para um dos mais aguardados e badalados GP de F1. Nesse domingo, a chuva inundou essas ruas e, durante a corrida, enquanto Alain Prost esbracejava lá na frente, com a estrada limpa e sem o ‘spray’ levantado pelos outros carros, atrás de si, emergindo cada vez mais perto no meio desse mesmo ‘spray’, o Toleman de Senna ia crescendo nos espelhos do seu McLaren. Um pouco mais atrás, crescendo nos espelhos de Senna, corria um carro azul-escuro, mais rápido que os outros dois. Ao seu volante, estava Bellof, um nome

quase desconhecido no mundo da F1, pois não trazia nada de relevante no seu ‘palmarés’, exceto duas vitórias na F2 com um (desconhecido) Maurer e uma coragem inaudita. De repente, os pedidos desesperados de Prost foram atendidos pelo seu amigo Jacky Ickx, nas funções de diretor da prova: o GP foi interrompido com bandeira vermelha, sendo declarado vencedor o francês, na frente de Senna e de Bellof, que subiu extasiado pela primeira vez a um pódio da F1.

Duas semanas depois, nova exibição de luxo, tendo de novo por palco as ruas de uma cidade: em Detroit, estava em 2º lugar quando desistiu, depois de embater no muro das boxes e deixando esse lugar para o seu colega de equipa, Martin Brundle. No final da prova, caiu o Carmo e a Trindade: os homens da FIA decidiram afastar a Tyrrell do Mundial, desqualificado a equipa e retirando-lhe os resultados nos GP. Brundle saiu logo da equipa, sendo substituído por Stefan Johansson que, tal como Bellof, continuou a correr, enquanto… corria o apelo interposto pela equipa britânica. Que foi em vão: a Tyrrell desapareceu mesmo do Mundial após o GP da Holanda, em finais de agosto. O mal estava feito – e o (bom) nome de Stefan Bellof também.

Campeão do Mundo de Sport em 1984

Stefan Bellof estreou-se nos carros de Sport quando ainda fazia F2 – em 1982, ao volante de um Kremer CK5 e fazendo equipa com o veterano Rolf Stommelen, participou nos 1000 km de Spa, desistindo na 51ª volta com um problema no motor de arranque. Uma semana antes, tinha já impressionado ao participar, em Hockenheim, na Hessen Cup, uma jornada do germânico DRM (Deutsche Rennsport Motorsport). E foi tudo: até ao final da temporada, dedicou-se à F2 e começou a olhar para a F1. Mas, em 1983, Bellof decidiu assinar com a Rothmans Porsche, a equipa de fábrica da casa alemã, para participar no Campeonato do Mundo de Endurance (WEC), com um Porsche 956. O seu colega de equipa era outro veterano, nada mais, nada menos que Derek Bell, que já tinha ganho em Le Mans por três vezes (1975, 1981 e 1982). Não conseguiu ser campeão do Mundo, mas deixou a sua marca em vários locais. Rapidíssimo e senhor de uma coragem extrema, Bellof venceu a primeira prova do WEC em Silverstone, batendo Bob Wollek e Stefan Johansson, em carro idêntico, por mais de um minuto e cumprindo os 1000 km à média de 198,275 km/h! Autor da ‘pole’, o seu tempo de 1m13,15s permitir-lhe-ia partir de 12º na grelha do GP da Grã-Bretanha de F1 do ano seguinte…

Mas houve mais: na prova seguinte, os 1000 Km de Nürburgring Bellof fez de novo a ‘pole’, com o tempo de 6m11,13s. Este tempo nunca mais foi batido por qualquer outro piloto, ou viatura, permanecendo atualmente ainda como o recorde absoluto não-oficial da pista do Nordschleife, à terrível média de 202,073 km/h! Na corrida, Bellof estabeleceu a melhor volta em 6m25,91s – que permanece como o recorde oficial da pista, na sua configuração dos tempos modernos. Duas voltas mais tarde, sofreu um violento despiste na zona de Pflanzgarten, de que saiu felizmente ileso. Até ao final do ano, Bellof conquistou mais duas vitórias, em Kyalami e em Fuji, terminando o ano em 4º lugar. Além disso, venceu também a prova extra campeonato que decorreu em Norisring.

1984 foi o ano da consagração. Já na F1, brilhando com um Tyrrell (infelizmente) fora da lei, Bellof brilhou com a mesma intensidade no Mundial de Sport, mas agora com um carro em conformidade regulamentar. Mas, curiosamente, isso esteve quase para não ser verdade… logo na prova de abertura do campeonato, Monza, em que foi desclassificado porque o Porsche 956 estava abaixo dos 850 quilos regulamentares. Porém, a equipa apelou e ganhou, tendo sido reposto o resultado da pista…

Até ao final do ano, Bellof – que nem sempre usou o mesmo colega de equipa, dividindo-se entre Bell, Stuck, Grohs ou John Watson – ganhou mais quatro corridas (Nürburgring, Spa, Mosport e Sandown Park), terminando como campeão, com oito pontos de vantagem sobre Watson. Foi, também vencedor do

campeonato alemão DRM, sucedendo a Bell. Em 1985, Bellof somente fez seis corridas de Endurance, quatro delas no Mundial, em que teve no 3º lugar no Mugello o seu melhor resultado. Porém, ainda teve tempo para ganhar a prova do DRM que teve lugar em Norisring, fazendo equipa com Thierry Boutsen.

A morte anunciada

A morte de Stefan Bellof, na volta nº 78 dos 1000 Km de Spa, não pode dizer-se que tenha sido uma surpresa. ‘Sabia-se’ que, mais tarde ou mais cedo, ela poderia suceder – só não se sabia quando, apesar de Bellof ser olhado como um Campeão do Mundo (de F1, já o tinha sido de Sport) em potência. Senhor de uma coragem temerária, Bellof era daqueles pilotos que nunca levantavam o pé e que acreditavam, que havia sempre de se abrir um ‘buraquinho’ na agulha de qualquer corrida, onde ele coubesse com o carro que tinha mais ‘à mão’. Mas, ali, em Spa, e naquele sítio de Spa, isso não era possível. Para nenhum

piloto – nem sequer um do calibre de Bellof.

Os 1000 Km de Spa-Francorchamps eram a sétima corrida do Mundial desse ano. Ao volante do Porsche 956 da Brun Mortorsport, que partilhava então com Thierry Boutsen, Bellof fez o 3º melhor tempo da qualificação, a 0,086s da ‘pole’, assinada pelo Lancia LC2. Nessa altura, estava a iniciar o seu turno de condução e estava a lutar diretamente com o Porsche 962C oficial de Jacky Ickx – que estava também a começar o seu turno.

Na rápida esquerda de Eau Rouge, Bellof desviouse para a esquerda de Ickx, tentando passa-lo na subida antes da direita do Raidillon, no final a subida. Um local impossível, onde só mesmo um funâmbulo como Bellof ousaria desafiar numa ultrapassagem… De súbito, a frente direita do 956 de Bellof tocou

na traseira esquerda do de Ickx e ambos os carros entram em pião e vão contra as barreiras metálicas de proteção. Ali, circulava-se a mais de 280 km/h, naqueles carros pesados e pouco ágeis. Ickx bate no muro com a parte traseira direita, sem consequências para lá de danos graves no carro, que o levam ao abandono, sem mazelas físicas. Pior foi a sorte de Bellof, que acertou precisamente no local em que ancorava uma bancada – e que, por isso (tinha um muro de cimento logo a seguir aos ‘rails’) não dispersou a energia do embate. Além disso, o Porsche pegou de imediato fogo. Um dos primeiros a chegar

foi o próprio Ickx, que tentou retirar Bellof dos destroços, no que foi imitado pelos comissários e, pouco depois, pelos membros da equipa Brun.

Foram precisos 10 minutos para se conseguir retirar o piloto, que foi transportado ao centro médico da pista, onde foi declarado morto, em consequência de graves lesões internas. Tinha 27 anos e, talvez, um promissor futuro à sua frente. Um pormenor ainda mais triste: o acidente foi captado por uma câmara colocada no Porsche de Ickx – que continuou a gravar mesmo depois do carro se imobilizar, voltada para o local onde ficou o carro de Bellof e registando todos os esforços em o retirar de lá.

Hélio Rodrigues, In Memoriam

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