F1, Crónica: Fintar a morte com um chinelo

Por a 30 Novembro 2020 16:00

As imagens da primeira volta do GP do Bahrein fizeram-nos lembrar de momentos negros da F1. Felizmente esses momentos negros deram lições importantes para que Romain Grosjean sobrevivesse.

Ninguém me tira da cabeça que o que vi no domingo foi um milagre. A forma como Grosjean sai de pista, o incêndio, a forma como o francês conseguiu sair do carro… o que vi desafia a lógica. Mas passado umas horas o vídeo do francês a dizer que estava bem deu-nos a sensação de alívio e a confirmação de que escapou a um acidente fatal com lesões menores.

O que senti quando vi a bola de fogo a surgir no ecrã foi o mais parecido com o que senti quando vi o carro de Jules Bianchi bater contra aquele trator em Suzuka. Estávamos em 2014, escrevia sobre automobilismo à relativamente pouco tempo e naquela manhã vi um jovem promissor ter um acidente que acabaria por ser fatal. Já tinha visto Robert Kubica sobreviver no Canadá ou Felipe Massa a fazer o mesmo na Hungria, mas aquela tarde cinzenta de Suzuka transportou-me para o dia em que, vi o Williams de Ayrton Senna bater na Tamburelo e do choque que senti, no alto da minha inocência de miúdo, quando ele nunca mais saiu do carro.

Aquele acidente de Bianchi lembrou-nos de forma amarga que a F1 não é nem nunca foi 100% segura, que nem sempre os pilotos saem dos carros e que este desporto que amamos, como qualquer paixão, não é apenas feito de momentos bons.

Mas a herança do acidente Suzuka salvou vidas. No decurso da investigação ficou claro que não se quis olhar para o facto de que a corrida não deveria ter continuado, mas analisou-se a fundo as causas das lesões fatais de Bianchi e chegou-se à conclusão que era preciso proteger mais os pilotos. Duas propostas foram colocadas em cima da mesa, o Aeroscreen da Red Bull e o Halo da FIA.

Inicialmente o Aeroscreen parecia a solução mais visualmente apelativa, mas o Halo ganhou por ser uma solução mais robusta e completa. Tivemos de passar a ver um apetrecho montado em cima da cabeça dos pilotos, algo pouco estético e que segundo os puristas, ia contra a essência da competição. “Os monolugares sempre foram abertos e assim vale mais ter protótipos”, cheguei a ouvir, assim como “os F1 agora são corridas de chinelos”. Da minha parte, sempre achei o Halo demasiado feio, mas se sobrevivi à “era fálica” de 2014, achei que também sobreviveria ao Halo.

Link para vídeo AQUI

As críticas não eram só dos fãs, pois ouvimos alguns pilotos como Lewis Hamilton, Kevin Magnussen, Nico Hulkenberg e Romain Grosjean a afirmarem que não gostavam do dispositivo e que protegiam apenas de acidentes que acontecem apenas uma vez num milhão. A FIA, como já tinha feito no tempo do HANS e de outras medidas de segurança, aguentou a pressão e ignorou as críticas.

Foi preciso esperar até 2018 para ver o Halo a evitar dissabores, logo na época em que passou a ser obrigatório em praticamente todos os monolugares. Nirei Fukuzumi, na altura piloto de F2, foi o primeiro a sair ileso de um acidente graças ao novo dispositivo, na corrida em Barcelona. Pouco tempo depois, foi a jovem estrela da Ferrari, Charles Leclerc a sair ileso de um acidente na primeira curva do GP da Bélgica, com o Halo a evitar que a roda de Fernando Alonso embatesse com violência na cabeça de Leclerc. A ironia da vida ditou que o dispositivo criado para evitar mortes como a de Bianchi (padrinho de Leclerc) tenha evitado males maiores para o seu afilhado.

Link para o vídeo AQUI

Alex Piorni também foi salvo pelo Halo em 2019 em Monza e agora foi a vez de Grosjean.

Quem segue a F1 sabe que, se após um acidente, não vemos imagens do carro, algo de muito grave se está a passar e aqueles minutos que passaram entre a bola de fogo e a imagem de Grosjean no carro médico pareceram uma eternidade. Mas nunca imaginei ver as imagens que se seguiram. O mar de chamas que envolveu o monocoque do carro, a coragem do médico, e de Grosjean que saiu depois de quase 20 segundo preso, uma espécie de “remake” indesejado dos anos 70.

Mas nada me impressionou mais do que ver as imagens depois do fogo extinto. Como alguém sobrevive a isto? Uma pergunta que ainda hoje me faço. O monocoque, apesar de todo queimado, aguentou o choque de 53 G e protegeu o piloto, era o símbolo do terror que se poderia ter vivido e da evolução da segurança que tem sido feita.

O carro partido terá ajudado a dissipar alguma da muita energia do impacto, algo estudado pela FIA e pelos engenheiros de F1, o fato ignífugo protegeu o piloto de queimaduras graves e… O halo protegeu a cabeça do piloto de uma morte quase certa. Claro que há um elemento de sorte aqui e se Grosjean tivesse ficado inconsciente após o impacto, a história poderia ter sido outra. O treino físico intensivo dos pilotos terá desempenhado um papel fundamental aqui.

Link para vídeo AQUI

O que mudou de 2014 para cá? Muito, mas claramente que o Halo é o maior elemento diferenciador de carros que na altura eram considerados já muito seguros mas que não teriam permitido a Grosjean sobreviver. O chinelo, como é chamado, salvou mais uma vida e afinal aquele acidente num milhão está mais próximo de acontecer do que imaginávamos. Se a FIA pode ser criticada por muita coisa, nunca poderá ser por não tentar melhorar a cada passo a segurança dos pilotos e de todos os intervenientes no automobilismo e é certo que lições serão aprendidas deste incidente. Quanto ao chinelo… o teste de fogo foi passado com sucesso e as (poucas) vozes que eram contra, ter-se-ão calado definitivamente. O milagre de Grosjean é um milagre conjunto: o da tecnologia de ponta, da busca incessante pela segurança e … o milagre “convencional” em que tudo se alinha de forma a que, contra todos os prognósticos, alguém sobreviva de um pesadelo.

Não duvido que Grosjean teve muita sorte para estar agora vivo, mas diz-se neste meio que a sorte dá muito trabalho e esse trabalho tem de ser creditado à FIA pelo esforço constante em querer mais segurança, mesmo contra um mar de críticas… porque as vezes apenas a sorte não chega.

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17 Comentários
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fjb
fjb
3 anos atrás

Viva.
“…vi o McLaren de Ayrton Senna bater na Tamburelo…” Foi com um Williams, não foi com a McLaren.
A mim, foi a primeira imagem que me veio à mente. Felizmente, estava errado e o Grosjean saiu pelo seu proprio pé … calçado, apenas o direito.

sr-dr-hhister
sr-dr-hhister
Reply to  fjb
3 anos atrás

Só um “jornalista” poderia dar tal erro!

831ABO
831ABO
3 anos atrás

O Fábio Mendes é, provavelmente, demasiado jovem para se lembrar do acidente do Gerhard Berger no Tamburello em 1989. Eu, que era um grande fã do austríaco e da Ferrari, senti um medo terrível entre o momento em que o carro começou a arder e a chegada – muito rápida, felizmente – dos comissários de pista. Uma coisa é certa: quando apareceram as primeiras imagens de carros de F1 com halos, fiquei tão chocado que pensei que ia perder o gosto pela F1. Mudei de ideias em 2018, depois do acidente em que o Nico Hulkenberg abalroou o Alonso e… Ler mais »

no-team
Reply to  831ABO
3 anos atrás

A partir do momento em que este comentário vem do maior defensor do Grosjean aqui do fórum, no mínimo é preciso coragem para falar de aselhice alheia. Parabéns!

831ABO
831ABO
Reply to  no-team
3 anos atrás

Que comentário tão estúpido! Não tem pena de ter nascido sem um cérebro?

sr-dr-hhister
sr-dr-hhister
Reply to  831ABO
3 anos atrás

Não tem pena de ter a espinha dorsal de uma caravela portuguesa?

Pity
Pity
Reply to  831ABO
3 anos atrás

Lembro-me muito bem do acidente do Berger e de ter dito “um dos meus favoritos deve ter acabado de morrer”. Felizmente, tal como Grosjean, sofreu apenas queimaduras nas mãos. Mas o acidente do Grosjean foi muito mais violento.

sr-dr-hhister
sr-dr-hhister
Reply to  Pity
3 anos atrás

“Um dos meus favoritos deve ter acabado de morrer.” Disse dona Pity enquanto sorvia um gole de café e folheava a TV Guia com o olhar obscurecido pelos seus óculos de sol arredondados, comprados em Paris.

(Eu sei que o comentário é estúpido mas foi a imagem que me veio à cabeça. Lol.)

Frenando_Afondo™
Frenando_Afondo™
3 anos atrás

Não gosto do Halo, mas a verdade é que já provou que tem de ser usado ou então voltariamos a chorar a morte de um piloto… E quero aqui salientar e agradecer a todos os comissários, engenheiros, designers e pessoal que decide introduzir estas medidas de segurança, foram eles que salvaram Grosjean com as suas ideias e decisões. Esses sim os verdadeiros Deuses.

sr-dr-hhister
sr-dr-hhister
Reply to  Frenando_Afondo™
3 anos atrás

Ó meu caro, cuidado com a blasfémia sff.

Scuderia Fast Turtle
Scuderia Fast Turtle
3 anos atrás

Eu quanto ao halo.

Não gostava do halo mas sempre preferi o halo ao aeroscreen. E se era pela seguranca prontos la aceitei.
O aeroscreen rouba muito da essência do que um monolugar é.

Ao fim de poucas corridas já nem reparava no halo. Os comentadores é que andavam sempre a falar dele e eu já nem reparava.

jcf
jcf
3 anos atrás

As fotografias do acidente de Romain Grosjean são terrivelmente semelhantes às dos acidentes fatais de François Cévert e de Peter Revson, ocorridos quando eu era criança. Acho que na altura levei 1 milhão de pontos negativos quando apareceu o halo e havia aqui mil pessoas a criticar e eu a defender o halo…

mantis
mantis
Reply to  jcf
3 anos atrás

Com a diferença do carro do Cevert e do Revson terem rolado por cima dos rails. Aconteceu algo semelhante ao Regazzoni e ao Koenig que mergulharam por debaixo dos rails…

jcf
jcf
Reply to  mantis
3 anos atrás

E houve outros tanto na F2 como no caso do Clay, mas também com um piloto do campeonato sul-africano de F1. No caso do Koinigg foi mesmo uma tragédia evitável, porque o acidente foi a relativa baixa velocidade. Lembro também de Gerry Birrell, o piloto de testes da Ford (os Capri RS, etc) que morreu em Rouen na F2.

jacinto-18
jacinto-18
3 anos atrás

Boa tarde todos temos falado da evolução da segurança, mas temos que compreender que o circuito do Bahrein é perigoso. Mas como a F1 joga onde há dinheiro esse assunto é tabu. No Sábado estava a ver os treinos e o acidente do Albon foi impressionante. Estes F1 curvam cada vez mais depressa e os circuitos não podem ter raills de proteção como os que vimos neste fim de semana. Isto poderá ter sido um alerta, para não vir mais há memória o acidente de Airton Senna.

macickx
macickx
3 anos atrás

Penso também que o Hans foi importante. Batida de dezenas de G’s num ângulo quase recto, certamente evitou partir o pescoço. Quando vi a bola de fogo e o tempo (mesmo assim pouco) que demorou a ver-se o piloto, eu só procurei saber quem tinha sido. Para mim naquele momento o piloto não tinha sobrevivido.Enganei-me, porque é um facto que a segurança dos F1 melhorou imenso!

sr-dr-hhister
sr-dr-hhister
3 anos atrás

Quanto ao halo, o aeroscreen da Indy é bem melhor. Mais estético e duplamente mais seguro.

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