Gran Premio de la America del Sur de 1948: Tragédia na prova mais dura do mundo

Por a 16 Dezembro 2022 10:43

Em 1948, o Automóvil Club Argentino organizou o Gran Premio América del Sur, uma das corridas mais longas da história: 15.000 quilómetros, começando em Buenos Aires, passando pela Bolívia, Peru, Equador e Colômbia até Caracas, e regressando à capital pelo Peru, Santiago e através dos Andes. Dos 141 pilotos que começaram a corrida, apenas 26 conseguiram completá-la, numa aventura que incluiria acidentes, mortes (incluindo a do co-piloto de Juan Manuel Fangio, incidentes políticos controversos, e muita bravura.

Faltavam ainda uns bons meses para o nascimento de Thierry Sabine quando arrancou uma das mais épicas provas de Turismo Carretera da história, fazendo o Dakar dos dias de hoje, com roadbooks, GPS, helicópteros de segurança, equipas médicas, bivouacs, mecânicos e tudo o mais parecer um evento fácil. Diria mesmo mais, até o Safari dos anos 60 seria menos duro que a brutalidade que representou o Gran Premio de la America del Sur de 1948.

A situação económica da América do Sul no pós-II Guerra estabilizou rapidamente, e em 1945/1946 as competições oficiais foram de imediato retomadas, resolvido o grande problema que era a falta de peças para as viaturas de competição. E, com a economia mundial a sair a todo custo de um modelo totalmente dirigido para o esforço bélico para retornar a uma economia de consumo, havia carros americanos em condições de serem exportados para a América do Sul, revitalizando assim o parque automóvel já de si muito rico (graças à improvisação) daquele mercado.

Em 1948 estas condições já eram mais do que evidentes, e os organizadores dos diferentes países coordenaram esforços para a mais ambiciosa prova daquele tipo que havia sido feita, e provavelmente a mais dura do mundo até então (se excluirmos o Paris-Pequim de 1907, que havia sido mais uma expedição do que uma verdadeira corrida, tal a sua dureza).

A prova consistia num percurso que ligava Buenos Aires, na Argentina, até Caracas, na costa venezuelana!!!!! Pelo meio, a prova passava pela Bolívia, Peru, Equador e Colômbia, por estradas verdadeiramente desastrosas – não havia cá asfalto a não ser nas cidades – e que, muitas vezes, se tornavam verdadeiras picadas de alta montanha em plenos Andes, rondando os 3000 metros de altitude. Isto tudo com sedans americanos ou veículos especiais, nada de jipes de tração total, regulação de pressão dos pneus e outros gadgets usados no Dakar atual, que visita alguns destes países, e cujo sonho da ASO é precisamente fazer uma edição de Norte a Sul daquele continente.

Ao todo, seriam cerca de 9500 quilómetros de competição em estrada aberta, sendo os resultados obtidos pela soma total dos tempos das 14 etapas, entrecortadas por cinco dias de (suposto) descanso. Habituados a provas de 3000/4000 quilómetros, não houve falta de concorrentes para esta epopeia e à partida de Buenos Aires alinhavam 141 pilotos, na sua esmagadora maioria privados que, com ajuda de familiares e amigos, lá conseguiam obter o valor necessário para disputar a prova e, com sorte, mais peças de reserva e alguns contactos com garagens distantes. Só as equipas apoiadas por concessionários poderiam contar com alguma assistência, mas mesmo assim os pilotos estavam entregues a si mesmos.

Entre os principais favoritos estavam os irmãos Oscar e Juan Gálvez, Juan Manuel Fangio, Domingo Marimón (pai do futuro piloto da Maserati Onofre Marimón, e grande amigo de Fangio), Eusébio Marcilla, Pablo Gulle e o uruguaio Héctor Supicci Sedes, entre outros. Quanto a marcas, apesar dos modelos locais e da multitude de sedans americanos representando quase todos os fabricantes do ramo, a luta iria certamente continuar a ser um feudo entre a Ford e a Chevrolet, tal como era habitual neste tipo de provas há cerca de uma década.

Os pilotos partiram ao final do dia 20 de Outubro da baixa de Buenos Aires, lançando-se na maior aventura das suas carreiras. E, desde cedo, perante as aclamações das multidões, destacaram-se os dois maiores especialistas da categoria – Oscar Gálvez e Juan Manuel Fangio. Acompanhado pelo seu fiel amigo e co-piloto Daniel Urrutia, Fangio queria decerto adicionar esta prova ao seu imenso palmarés, numa altura em que as pistas lhe ocupavam a maior parte do tempo, mas pareceu ser dos primeiros homens da frente a ceder quando teve problemas ainda na primeira etapa. A partir daí, passou a ser Domingo Marimón – profundo conhecedor das estradas, devido à sua profissão de… agente funerário – a pressionar Gálvez, embora no final do percurso na Argentina a metódica preparação de Oscar desse frutos, com uma liderança acrescida, enquanto Fangio se atrasava ainda mais, já que teve que mudar o diferencial do carro, ajudado por espectadores que lhe emprestaram peças dos seus próprios carros.

O mais velho dos Gálvez continuou a ampliar a sua imensa liderança quando os pilotos entraram nos Andes, já em território boliviano, enquanto Fangio se atrasava ainda mais com um semieixo partido e chegavam notícias da morte de uma dupla depois de caírem a um despenhadeiro. Felizmente não chovia nos Andes, o que poderia ter tornado a prova ainda mais dantesca, e apesar de um toque numa pedra, Oscar Gálvez continuava a dominar, na frente de Marimón e do seu irmão Juan. Fangio não passava de quadragésimo quando os pilotos saíram para a etapa que ligava La Paz a Arequipa, já no Peru, com o troço mais alto da prova, rondando os 4600 metros de sinuosas estradas andinas – sem máscaras de oxigénio, como é óbvio. Os irmãos Gálvez dominaram no terreno plano, mas Fangio mostrou toda a sua mestria na estrada de montanha, ultrapassando imensos concorrentes e vencendo a etapa, o que lhe permitiu ganhar inúmeras posições, se bem que a liderança de Oscar estava bem segura quando os pilotos chegaram a Lima.

Para “apimentar a festa”, nessa noite, chegavam rumores de um golpe de estado – de certeza que não foi feito para “aquecer” a corrida – no sul do Peru, assim como tiroteio nos arredores da capital do país, pelo que a organização optou por soar os sinais de alarme e despertar a caravana, que mal havia passado pelas brasas, arrancando em plena noite para cumprir de imediato a etapa que ligava à cidade costeira de Tumbes, ainda no Peru, mas bem a norte da eventual insurreição. A aproximação à costa trazia um novo perigo na figura do nevoeiro noturno vindo do Pacífico que diminuía a visibilidade dos corredores, o que aliado ao cansaço extremo das 66 equipas que ainda resistiam, provocava uma mistura deveras explosiva. E foi aqui que Fangio teve um dos piores dias da sua vida… Na madrugada de 29 de Outubro, pouco depois de Huanchaco, Fangio ficou encandeado pela luz dos seus faróis numa curva à esquerda, saiu da estrada e o carro caiu numa ribanceira, capotando várias vezes até chegar ao fundo. Juan agarrou-se ao volante (nada de cintos, como era habitual naqueles dias) e conseguiu manter-se no carro, mas Daniel Urrutia foi projetado para fora do Chevrolet e ficou gravemente ferido. De perto seguiam-no Oscar Gálvez, que parou prontamente e prestou os primeiros socorros à equipa, mas Fangio insistiu que o seu arquirrival continuasse e, pouco depois, chegou Eusebio Marcilla, que decidiu abandonar mesmo a corrida e levar Fangio e Urrutia ao hospital mais próximo, mas não havia nada a fazer para salvar o pobre Daniel, que morreu pouco depois.

Domingo Marimón e outros pilotos, grandes amigos de Fangio e Urrutia quiseram de imediato abandonar para irem visitar e apoiar Juan ao hospital, mas Fangio mandou uma mensagem via rádio a todos, pedindo-lhes que continuassem a sua prova. Marimón pensou seriamente em abandonar na ligação entre Guayaquil e Quito, já no Equador, quando ficou irremediavelmente atrasado com um semieixo partido, mas lá continuou. Os irmãos Gálvez aproveitaram as estradas equatorianas e colombianas para aumentarem ainda mais a sua vantagem, enquanto o desgraçado Marimón perdia uma roda em andamento, felizmente sem causar um acidente… Foi apenas questão de ir busca-la ao fundo do precipício, coloca-la no lugar, verificar tudo e arrancar de novo!!! E, quando os pilotos se aproximaram da fronteira venezuelana para a última etapa, Oscar Gálvez tinha ua grande vantagem sobre o seu irmão Juan, praticamente garantindo-lhe a vitória.

Sucede que a última etapa, de cerca de 670 quilómetros, dava um generoso prémio monetário ao seu vencedor, por isso todos queriam salvar a face (e o prejuízo) com a tão apetecida vitória parcial em Caracas. Uma das primeiras vítimas da “febre do ouro” foi Juan Gálvez, que decidiu arrancar prego a fundo, só para se despistar e cair num barranco, felizmente sem ferimentos, aparte o orgulho e um segundo lugar deitado ao lixo.

Oscar chegou lá e tentou rebocar Juan, mas foi preciso consertar o motor antes de o Ford voltar a pegar, mas entretanto as preocupações do mais velho dos Gálvez centravam-se na sua própria embraiagem… De um momento para o outro, a vitória ficava incerta. Foi Victor García o mais rápido na chegada à capital venezuelana, ganhando o prestigiado prémio, mas entretanto a rádio anunciava que Oscar Gálvez estava parado nos arredores da capital, com problemas mecânicos no seu Ford.

O argentino tinha rodado devagar para evitar mais problemas, mas o motor decidira “dar de si” nos últimos quilómetros, e começou a dizer-se que, afinal, Domingo Marimón podia sair dali como vencedor.

O amigo de Fangio riu-se, já que estava a cinco horas de atraso e sabia que Oscar era um dos mais competentes mecânicos do plantel, e de facto o piloto lá conseguiu consertar o motor, e com a ajuda de empurrões e do reboque de alguns carros de espectadores, aproximou-se da linha de chegada, com o motor definitivamente quebrado…

Pois bem, as regras decretavam que os carros tinham que cruzar a meta em andamento pelos seus próprios meios, e o de Gálvez estava em roda livre, entregando assim uma inesperada vitória a Marimon que, após as celebrações, não tardou a fazer-se novamente ao caminho em direção ao Peru para se encontrar com o seu amigo Fangio, na altura um homem completamente destroçado por ter assumido por inteiro as responsabilidades do seu acidente e da morte do seu camarada Daniel Urrutia, desejando apenas regressar a Balcarce e ao seu negócio e esquecer o desporto que tão cruel havia sido. A morte de Urrutia causou tal comoção nos meios desportivos (apesar de morrer nestas provas ser tão comum como no Isle of Man TT nas duas rodas) que a Asociación Corredores de Turismo Carretera tornou o dia 29 de Outubro no Dia do Acompanhante e Co-Piloto do Automobilismo Argentino, comemorando-se até aos dias de hoje. Felizmente que Fangio reconsiderou, e em Janeiro de 1949 estava de novo ao volante, mas pouco mais correria nas provas de Turismo Carretera. O sucesso estava, agora, nas pistas…

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1 Comentário
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joaolima
joaolima
1 ano atrás

Uma verdadeira loucura vista pelo prisma de hoje!

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