Superleague Formula: quando fomos à bola

Por a 15 Dezembro 2022 15:29

O automobilismo e o futebol têm em comum serem dois desportos que cativam paixões com a mesma subtileza que movimentam milhões. Contudo, as tentativas de os emparelhar falharam redondamente.

Aqueles que seguiram as corridas de GT nos finais de 1990 lembrar-se-ão com certeza dos Lister Storm com as cores do Newcastle United. Os fãs de Fórmula 1 mais atentos irão recordar os logótipos do Chelsea nos Sauber e do Queens Park Rangers nos Lotus. E até não é preciso ir tão longe Basta olhar para os circuitos nacionais e encontramos os emblemas do Benfica, Sporting, Nacional ou SC Braga. A associação aos clubes de futebol, nos países em que este é o desporto rei, é uma aposta comercial ganha e foi quase sem surpresa que há duas décadas houve alguém que avançou com a ideia arrojada de colocar frente-a-frente em autódromos, em vez de estádios de futebol, alguns dos maiores clubes de futebol do planeta.

Falsa partida

Estávamos a dobrar o século quando o empresário inglês Colin Sullivan, que fez fortuna no ramo do imobiliário, e que um dia sonhou em comprar o circuito de Silverstone, traçou um campeonato para vinte e quatro monolugares iguais, cada um ostentando as cores de famosos clubes de futebol da Europa e América do Sul. Assim nasceu no papel a Premier 1 GrandPrix.

Foram encomendados estudos de mercado que revelaram que havia muito potencial no conceito, com base nos sucessos de audiência da Liga dos Campeões e do mundial de Fórmula 1. Nenhum clube, segundo os mentores da ideia, iria gastar um tostão, nem na remuneração dos pilotos. Acreditavam os fundadores que o campeonato iria resplandecer à custa das transmissões televisivas.

Com o aval de Max Mosley e a desconfiança de Bernie Ecclestone, a Premier 1 conseguiu finalmente a aprovação do Conselho Mundial da FIA em 2001, chegando mesmo a ter um calendário firmado com uma corrida marcada para o Autódromo do Estoril em Julho de 2002. No final de 2001 ficou patente que o campeonato precisava de mais tempo para arrancar, até porque a Dallara, que iria construir os monolugares, foi substituída pela Reynard nessa tarefa.

Apesar das dificuldades que começaram a surgir, o Reynard GP01, equipado com um motor 3-litros Judd V10, chegou a ver a luz do dia. A aparência muito próxima ao Benetton B197 fez espalhar o rumor que Adrian Reynard teria usado os moldes do carro de F1 da equipa italo-inglesa. Entretanto, Feyenoord, Chelsea, Lyon, Lazio, Roma, Leeds e o Sport Lisboa e Benfica comprometiam-se com o campeonato.

Seara Cardoso, então vice-presidente do Sport Lisboa e Benfica, contava que “por um contrato de três anos” iria receber “cinco milhões de dólares (cerca 4.2 milhões de euros ao câmbio actual).” A exploração da marca Benfica ficava a cargo dos organizadores do campeonato e o clube lisboeta teria 70% do espaço publicitário dos dois carros que o ex-dirigente do Benfica previa que iriam render “mais um milhão e meio de dólares”. Um monolugar com as cores encarnadas foi apresentado aos adeptos no Estádio da Luz e Pedro Lamy dado como certo como piloto da equipa.

Com o arrastar do tempo foi perceptível que o campeonato ia ter dificuldades em arrancar em 2002 e nem os rumores que davam conta da possibilidade de Mark Blundell, Nigel Mansell e Damon Hill se juntarem nas grelhas de partida a Johnny Herbert, que iria conduzir para o Chelsea, afastaram o pessimismo.

Os sucessivos atrasos, a falência da Reynard, a recusa da maioria dos clubes em alinhar na ideia, entre eles os grandes espanhóis, como Real Madrid e Barcelona que se sentiram mais atraídos pela Fórmula Super Nissan V6 que ia ganhando o seu espaço na cena internacional,ditaram o final previsível.

Dadas as incertezas em redor do arranque da Premier 1 GrandPrix, o Sport Lisboa e Benfica seguiu as pisadas dos clubes espanhóis assinou no final de 2002 um acordo com a equipa espanhola Racing Engineering, cedendo as suas cores ao monolugar que o francês Frank Montagny Conduziu título das World Series by Nissan no ano seguinte.

Vendo as contas a aumentar, o desinteresse dos clubes e sem soluções à vista, em 2003, Sullivan pôs um travão a um projecto que alegou ter-lhe custado mais de 100 milhões de dólares. Morreu o projecto, mas não morreu a ideia.

Pegou à segunda

Apenas dois anos depois, em 2005, o espanhol Alex Andreu, especialista em marketing desportivo, e o inglês Robin Webb, ex-director de operações da Premier 1, anunciaram a Superleague Formula. Graças a 50 milhões de euros de investimento de fundos privados, o cocktail era exactamente o mesmo e envolvia monolugares, clubes de futebol e muito dinheiro a circular. “Queremos ser para a Fórmula 1 como o mundial de SuperBikes está para o MotoGP”, diziam.

Usando as instalações de Leafield, que mais tarde foi a casa da Caterham F1 Team, aElan Technologies construiu o chassis Panoz GB09 e a Menard Competition Technologies alugava às equipas por 130,000 euros a temporada os sonoros motores 4.2 litros V12 de 750cv que um dia tinham servido os Jaguar em Le Mans.

O modelo de negócio era simples. Com um milhão de euros de prémios monetários, a organização tratava dos patrocínios aos concorrentes, ficando com 45% de qualquer patrocínio que entrasse nas equipas. Mas também existiam lugares à venda e pela módica quantia de 450,000 euros era possível segurar um volante para a época completa nos dois anos iniciais.

Na primeira temporada, em 2008, alinharam dezoito clubes, entre eles o AC Milan, Flamengo ou PSV Eindhoven, e teve seis eventos, incluindo um no Autódromo do Estoril. O Futebol Clube do Porto foi o único clube nacional à partida e o monolugar, assistido pela equipa inglesa Alan Docking Racing, foi conduzido por Tristan Gommendy. O francês venceu a segunda corrida em Valência, posicionando o monolugar azul e branco no sétimo posto do campeonato. Com três vitórias, o ceptro de campeão ficou para os chineses Beijing Guoan, cujo carro preparado pela Zakspeed e conduzido pelo italiano Davide Rigon foi o grande dominador.

A organização da Superleague Formula ainda convidou nesse ano o Sport Lisboa e Benfica para a prova do Autódromo do Estoril, com o intento de mobilizar a massa adepta do clube das águias para tentar encher o Circuito do Estoril, mas os benfiquistas recusaram a chamada.

Em 2009 chegou a Sonangol e com a poderosa petrolífera estatal angolana os prémios monetários subiram a cinco milhões de dólares por temporada; um milhão só para o campeão.

Gommendy manteve a ligação ao FCP, enquanto o Sporting Clube de Portugal aderiu ao leque de clubes presentes.O portuense Pedro Petiz foi o piloto escolhido para guiar o carro dos leões que foi entregue à alemã Zakspeed.

Num ano em que o Liverpool se sagrou campeão, pelas mãos do espanhol AdriánVallés, o FCP foi quinto classificado. O momento alto da temporada dos dragões foi no Autódromo do Estoril, quando Álvaro Parente foi chamado a substituirGommendy, vencendo a segunda corrida no seu fim-de-semana de estreia na categoria. Apesar da sua limitada experiência em monolugares, Petiz não desiludiu e terminou no 12º posto do campeonato, tendo surpreendido ao triunfar na segunda corrida do fim-de-semana de Monza.

Em 2010 a organização voltou a subir a parada e aumentou o número de eventos para doze, dois deles na China, apesar da prova realizada num circuito citadino improvisado nos arredores Pequim não ter contado para o campeonato porque a pista falhou a homologação FIA. O Autódromo do Estoril saiu do calendário, tendo o Autódromo Internacional do Algarve acolhido a ronda nacional.

A exibição no autódromo de Parente, cuja a carreira era então gerida por uma subsidiária da Gestifute do super empresário do futebol Jorge Mendes, valeu-lhe um contrato para a temporada de 2010 com o clube do coração. O FCP terminou no sétimo lugar, vencendo em Nurburgring e Ordos, onde Parente, por falta de visto, foi substituído à última hora por Earl Bamber que estava no circuito chinês para fazer comentários televisivos.

O Sporting continuou mas sem Petiz. A decisão de trocar de pilotos não coube ao clube de Alvalade, mas sim à empresa UAU, especializada na concepção, produção e gestão de espectáculos e eventos, que fazia a promoção da etapa portuguesa da competição. Petiz não foi capaz de reunir os patrocínios para manter o volante e os espanhóis Borja Garcia, Andy Soucek, Maximo Cortés e Vallés revezaram-se entre si na condução do monolugar verde e branco ao longo do ano, para terminarem num modesto 15º lugar.

O Anderlecht, que garantiu os serviços de Davide Rigon e da equipa belga Azerti Motorsport, venceu o campeonato.

Em 2011 deu-se o ponto de viragem. Já sem Andreu ao leme e sem os petro-dólares angolanos, o campeonato sofreu um abanão e nunca mais se recompôs. Os clubes portugueses desapareceram, como desapareceu a prova lusa e o interesse no campeonato. A organização, aproveitando o fim do A1GP, ainda abriu a fórmula da competição a países, mas não resultou. Realizaram-se provas em Assen e Zolder, com pouca adesão, e logo depois o campeonato acabou. Robin Webb ainda prometeu um novo pacote aliciante para 2012, mas não passou daí. Nas quatro temporadas realizadas, 57 pilotos de dezoito nacionalidades, sete deles ex-pilotos de Fórmula 1, como Sébastien Bourdais ou António Pizzonia, passaram pelo campeonato.

Boas recordações

Quem assistiu ao vivo às corridas da Superleague Formula certamente se recordará do estrompido dos motores V12 saído dos escapes dos coloridos chassis Panoz. Estes, à “moda antiga”, não tinham controlo de tracção, launch control ou qualquer ajuda electrónica e o facto dos carros terem sido desenhados com uma forte componente aerodinâmica inferior permitia que rodassem muito próximos uns dos outros, o que era favorável ao espectáculo em pista.

“Era um carro muito potente e tinha boa aderência, muito embora tivesse uma concepção já bastante antiga, sobretudo, quando comparado com um GP2, que era o outro monolugar que pilotava na altura”, relembra Parente, que recorda que “a organização não conseguia garantir a igualdade entre todos os carros e havia alguns mais velhos, o que criava grandes diferenças de performance entre os pilotos que não eram inteiramente justificadas.”

Ligeiros problemas técnicos começaram a fazer-se sentir a partir da segunda temporada, mas essencialmente “o carro era muito robusto e,no geral, fácil de trabalhar para os mecânicos”, rememora Francisco Freitas, o engenheiro de dados que ajudou Rigon na caminhada ao título de 2010, onde o actual piloto de GT da Ferrari totalizou um recorde de 1.8 milhões de euros em prémios monetários para ele e para a equipa.

A maior parte dos monolugares desapareceram do radar, mas dois destes PanozDP09 ainda podem ser hoje vistos a competir no centro da Europa no campeonato de monolugares BOSS (Big Open Single Seaters) GP. “Em termos de afinação era um carro relativamente complexo, mas a partir do momento em que chegámos a um setup base que sabíamos ser competitivo, eram poucas as alterações que fazíamos de pista para pista”, salienta o actual engenheiro da Van Amersfoort Racing.

O campeonato que usava o lema “The Beautiful Race: Futebol a 300 km/h” conseguiu ir reunindo algumas equipas conhecidas de monolugares, e não só, como a Zakspeed,Scuderia Coloni,Team Astromega, DriveX, Emilio de Villota Motorsport ou a Euro International. As equipas portuguesas ASM Team e Ocean Racing Technology terão avaliado participação a certa altura, mas nem uma, nemout avançaram.”O nível era bastante alto, tanto desportivamente, como em termos técnicos. Havia uma mistura muito interessante de pilotos, assim como de engenheiros e mecânicos com muita experiência”, recorda o engenheiro português hoje radicado na Holanda.

Aliás, o bom ambiente do paddock é evocado com saudades por todos aqueles que se enfrentaram em pista durante as quatro temporadas que durou o campeonato, ou que ajudaram a montar a festa que eram estes fins-de-semana de corridas.

“A atmosfera era fantástica. Apesar de ser uma competição nova, com um formato diferente de tudo aquilo a que se estava habituado, havia equipas com muito profissionalismo. O maior problema era o facto de não serem assim tantas equipas como isso, o que fazia com que cada uma dela tivesse a seu cargo vários carros. O que dificulta sempre o trabalho e leva a discussões de favoritismos”, conta Miguel Fonseca, que foi assessor de imprensa e um dois portugueses que passaram pela estrutura organizativa do campeonato.

Crónica de uma morte anunciada

O conceito do campeonato resumia-se a oferecer aos clubes de futebol uma nova plataforma de promoção e, por outro lado, permitir a novos patrocinadores associarem-se a esses clubes via automobilismo. Mas assim que o patrocinador principal desapareceu, todo o campeonato se desmoronou como um castelo de cartas.

“Em 2011 sabíamos que a situação do campeonato era muito complicada. Houve muita incerteza durante todo o inverno e só as duas primeiras provas é que estavam confirmadas. Notava-se mais apreensão tanto na nossa equipa como nas outras”, lembra Freitas que reconhece que “o campeonato nunca conseguiu gerar interesse suficiente por parte dos clubes ou patrocinadores que permitisse sustentar os custos. Em 2010, com o apoio da Sonangol, deu para fazer muita coisa, mas a partir do momento em que essa situação mudou não foi possível continuar por não existirem pilotos ou patrocinadores dispostos a pagar os valores necessários”.

Fonseca, agora assessor de imprensa do ACP Motorsport, recorda que a organização do campeonato “tinha pessoas muito competentes e profissionais, mas também tinha várias pessoas que não entendiam muito de desporto automóvel. Algumas tinham passados fantásticos em termos de marketing e organização de eventos desportivos, mas não do sector automóvel e isso depois notava-se. Principalmente porque não ouviam com facilidade quem vinha do meio e tinha experiência e queriam levar avante as suas ideias.”

Logo no final da primeira temporada a organização viu-se obrigada a alterar a sua composição de accionistas e a fazer cortes na área operacional, justificando as medidas com o clima económico conturbado vivido na altura. Contudo, dizia-se em surdina pelo paddock que o orçamento para os dois primeiros anos foi gasto logo no início, o que deixou o campeonato em situação debilitada nos anos subsequentes. A terceira temporada o campeonato terá sido já realizada sobre a tutela de um mediador de recuperação de empresas, o que, para Fonseca, tornou tudo “muito mais complicado.

As despesas eram todas contabilizadas ao cêntimo. Mesmo assim não funcionou porque depois havia outras áreas por onde era óbvio que o dinheiro ia fugindo”, o que se agravou quando “ao cabo de alguns meses dessa terceira temporada, houve pessoas importantes que se fartaram, bateram com a porta e foram-se embora. Houve ainda outras que foram postas na rua”, recorda o director de comunicação.

No final de 2012 ainda houve uma pequena esperança que o campeonato ressuscitasse. O patrão da Azerti Motorsport, WimCoekelbergsterá chegado a um acordo com a organização espanhola para ficar com o controlo dos carros e os direitos do campeonato. Um stock de motores V12 seria adquirido à Menard e entregue a um preparador europeu. Terá existido interesse por parte de promotores de eventos do Médio Oriente e da América do Sul mas, na hora da verdade,a vontade acabou por não se materializar.

Para Fonseca, a Superleague Formula “não funcionou pela forma como começou e pela forma como foi gerido”, lamentando o destino final de um projecto que “tinha tudo para correr bem, principalmente com uma boa comunicação. Coisa que também não aconteceu no início. Quando fui para lá como press officer não se aproveitava de todo as redes sociais, nem os conteúdos de vídeo. As corridas acabavam e pronto, não se fazia mais nada até à jornada seguinte. E nem se produziam conteúdos dedicados para cada país ou equipa. Isso foram coisas que só se começaram a fazer no terceiro ano, mas por essa altura já era tarde. Já se falava muito de alterações de calendário, incertezas para o ano seguinte e tudo isso.”

O desenlace do campeonato ainda hoje entristece Parente, pois o rápido piloto portuense “gostava muito do conceito. O Futebol Clube do Porto é o meu clube do coração desde sempre e claro que foi uma grande honra para mim envergar as suas cores…”

Ao longo de três anos e meio a Superleague Formula chegou a outros públicos e abriu novos horizontes, mas nem mesmo movendo massas e paixões, o futebol foi por si suficiente para salvar um conceito que não foi suficientemente forte nas fundações básicas do automobilismo.

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1 ano atrás

Gostei mais da master series, com os reformados da F1, com o Fittipaldi e o Mansell.

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