Do pó da pobreza ao ouro do deserto: a metamorfose social do Rali Dakar
O Rali Dakar, outrora a última grande aventura romântica do automobilismo, transformou-se num espelho das dinâmicas geopolíticas e económicas do mundo moderno. Ao longo de quase meio século, a prova migrou da África Subsariana, onde a sua opulência chocava com a miséria extrema, para a América do Sul, onde se tornou um evento de massas financiado por governos, culminando agora na Arábia Saudita, onde a ostentação é a norma e o dinheiro jorra, literalmente, do chão. Esta não é uma análise de uma corrida, mas do meio social de três realidades distintas por onde passou.
FOTOS AIFA e Arquivo AutoSport
África: o “brinquedo de ricos” no quintal da pobreza (1979-2007)
Durante 29 anos, o “Paris-Dakar” foi o símbolo máximo do contraste neocolonial. A prova, idealizada por Thierry Sabine, vendia o sonho da aventura pura, mas a realidade social era frequentemente brutal.
Carlos Sousa contou, uma vez, uma história ao AutoSport, que nos ficou sempre na memória.
África era, como ainda é, um continente de contrastes, em que milhares de crianças cercavam todos os dias os acampamentos. Vigiadas pelas polícias locais, esperavam pacientemente pelas sobras: um pedaço de pão ou um resto de refrigerante. Se fosse em Marrocos, era um “cadeaux”. Aos que passam, suplicavam por uma moeda, uma caneta.
Carlos Sousa, por exemplo, não esquece o dia em que estava a alguns minutos de partir para mais uma etapa no Mali – um dos países mais pobres do mundo. “Estava triste, furioso mesmo, porque a etapa anterior nos tinha corrido mal. Só pensava que tinha deitado tudo a perder e que já não conseguia lutar pelos lugares cimeiros.”
Foi então que alguém bateu no vidro da Strakar e lhe perguntou: “Mas porque é que estás triste?” Carlos Sousa encolheu os ombros e a custo lá respondeu: “Sei lá, correu-nos mal, perdemos…”.
O homem, na casa dos 30 anos, replicou então, de olhos fixos no piloto: “Estás a ver-me a mim? Não sei se tenho almoço para hoje, nem sequer sei se tenho jantar. A nossa maior alegria é ter aqui a caravana do Dakar, o que vamos comer a seguir não sei…”.
E afastou-se, deixando a Carlos Sousa uma das mais importantes lições que teve num Dakar.
O choque visual e moral
A imagem icónica do Dakar africano não era apenas a de um carro a saltar dunas, mas a de protótipos de centenas de milhar de euros a rasgar aldeias no Mali, Níger, Senegal ou Mauritânia, cobertos de publicidade, enquanto crianças descalças e sem acesso a eletricidade ou água potável observavam na berma.
O Vaticano chegou a ser uma voz crítica contundente. O jornal da Santa Sé, ‘L’Osservatore Romano’, chegou a classificar a prova – então, o Paris-Dakar – em diversas ocasiões, como uma “exibição vulgar de poder e riqueza” num continente flagelado pela fome. A crítica central residia na imoralidade de gastar somas astronómicas numa corrida que atravessava zonas onde a esperança média de vida era confrangedora.
A ‘ajuda’ como justificação
Para mitigar a imagem de “colonizadores de fim de semana”, a organização (ASO) implementou ações humanitárias, como a instalação de bombas de água (iniciativa de Thierry Sabine) e a entrega de material escolar e medicamentos, por onde passavam. Contudo, para muitos críticos e intelectuais africanos, estas ações eram “paliativos” que serviam para limpar a consciência ocidental, sem resolver os problemas estruturais que a própria presença da corrida sublinhava. A caravana passava, a poeira assentava, e a pobreza permanecia intacta.
América do Sul: paixão popular e tensões políticas (2009-2019)
‘Expulso’ de África por alegadas ameaças terroristas em 2008, o Dakar encontrou na América do Sul um cenário social radicalmente diferente. Deixou de ser uma aventura solitária no deserto para se tornar um evento de estádio a céu aberto.
O espetáculo de massas e o custo público
Na Argentina, Chile, Bolívia e Peru, a pobreza existia, mas o contexto era de economias em desenvolvimento e democracias (com as suas falhas). O contraste social aqui não era o silêncio do deserto, mas o barulho da multidão. O Dakar tornou-se uma festa popular, com muitas centenas de milhar nas ruas e depois nas pistas.
No entanto, a fatura mudou de mãos. Se em África a ASO pagava (ou negociava) para passar, na América do Sul eram os governos que pagavam milhões de dólares para receber a prova, sob a bandeira da promoção turística.
Isto gerou forte contestação social: no Chile e na Bolívia, protestos frequentes questionavam por que razão o dinheiro público financiava uma corrida privada enquanto faltavam recursos para a educação e saúde, ou para resolver crises hídricas. A teoria, que ainda hoje colhe um pouco por todo o lado, continua igual: “todos os que nos visitam a acompanhar a prova, vão deixar cá muito dinheiro, e alguns vão querer voltar para fazer turismo”.
Património e Identidade
A crítica social evoluiu também para a defesa do património. Arqueólogos e ativistas indígenas acusaram repetidamente a prova de destruir geóglifos e sítios arqueológicos no Deserto do Atacama e no Altiplano, colocando o entretenimento ocidental acima da herança cultural local. O Dakar na América do Sul foi vibrante, mas socialmente polarizado. E a ASO soçobrou à pressão e teve de encontrar uma solução.
Arábia Saudita: a ostentação e o “sportswashing” (2020-Presente)
A mudança para a Arábia Saudita em 2020 marcou o corte definitivo com as raízes de “aventura low-cost” ou “festa popular”. O Dakar entrou na era da “Vision 2030”, transformando-se numa peça de xadrez na estratégia de imagem do Reino. Tal como fez com a Fórmula 1, com a Fórmula E e mais recentemente com o Mundial de Ralis.
A riqueza como cenário
Aqui, não há crianças pobres a correr atrás dos carros nas aldeias, nem multidões a exigir fundos para hospitais.
O Dakar corre agora num “vazio dourado”. O deserto saudita é um cenário controlado, onde a pobreza, se existe, é totalmente mantida longe das câmaras.
A ostentação é visível no bivouac (acampamento), que deixou de ser um local de sobrevivência para se assemelhar a uma cidade móvel de alta tecnologia, com confortos que seriam impensáveis em África. É verdade que os anos passaram e os tempos mudaram, mas o conceito de “Dakar Experience” permite agora que competidores que desistem continuem em prova noutra classificação, algo que puristas veem como a transformação da “sobrevivência” em “turismo de luxo”.
O dinheiro que brota do chão
Socialmente, o contraste desapareceu porque o ambiente é artificialmente homogéneo. A Arábia Saudita paga somas incalculáveis para ter a prova, não para atrair turistas de mochila às costas, mas para legitimar a sua abertura ao mundo e diversificar a economia para lá do petróleo.
O termo “sportswashing” (lavagem de imagem através do desporto) é frequentemente associado a esta fase. O Dakar, entre outros, serve para projetar uma imagem de modernidade e abertura, abafando críticas sobre direitos humanos. Onde antes se via a poeira da miséria africana, hoje vê-se o brilho dos petrodólares e projetos futuristas como NEOM e Qiddiya.
O espelho do mundo
O Dakar nunca foi apenas uma corrida.
Em África, foi o reflexo da desigualdade Norte-Sul e do neocolonialismo.
Na América do Sul, foi o reflexo das tensões políticas sobre o uso de dinheiros públicos e identidade cultural.
Na Arábia Saudita, é o reflexo de um mundo onde o capital soberano compra legitimidade e espetáculo, higienizando a experiência até o “sofrimento” se tornar um produto de luxo.
A prova sobreviveu, mas a sua alma social foi transfigurada: de intruso em terras esquecidas a convidado de honra em palácios de areia.
O que diria hoje Thierry Sabine do seu “desafio para os que vão, um sonho para os que ficam”.
Claro que a parte desportiva nada tem a ver com isto tudo. O “outro lado” é só um pequeno ‘reminder’ de uma prova que se tornou em algo que o seu ‘criador’ nunca poderia ter imaginado…
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