Sintra – Património mundial

Por a 14 Outubro 2011 12:42

Walter Röhrl acabara de imobilizar o Audi Sport Quattro E2 junto ao marco da estrada que assinala o quilómetro 1 da Estrada Nacional 9-1. Enquanto aguardava a contagem decrescente para a partida, conferia a colocação dos cintos de segurança, enquanto o seu navegador, Christian Geistdörfer, antevia os metros iniciais do troço com a ajuda do caderno de notas. Passavam alguns minutos das nove da manhã e a classificativa da Lagoa Azul abriria as hostes da edição de 1986 do Rali de Portugal. Quando o comissário levantou a bandeira, o carro número 3 arrancou, sentindo-se no estremecimento do asfalto, a força dos seus 500 cavalos. Em poucos segundos, supera os 100 Km/h e após negociar a primeira direita, a dupla de pilotos depara-se com o mar de gente que povoa o troço. Milhares de espetadores, contornam a estrada que liga a Lagoa Azul à Malveira da Serra, muitos deles em cima do alcatrão, incitando ou fotografando os seus ídolos.

Röhrl conduz o melhor que sabe no meio da multidão. Apesar das dores de costas que o incomodam há dias, domina a rebeldia do Quattro com movimentos bruscos no volante e rápidas passagens de caixa, enquanto os pedais assistem a um verdadeiro bailado, ora travando com o pé esquerdo, ora com o direito, mas sempre em aceleração simultânea. Depois da curva da água e do cruzamento do Rio da Mula, o alemão inicia a subida, apanhando um valente susto quando um dos espetadores decide atravessar o troço a escassos metros do Audi. Röhrl consegue evitar o contacto com o inconsciente adepto e dois minutos e quinze segundos depois da partida, chega ao fim da classificativa. Durante a curta ligação até ao início do troço da Peninha, piloto e navegador aproveitam para descomprimir e não escondem um certo alívio por terem concluído a primeira passagem pela Lagoa Azul sem tocar nos espetadores. Nesta altura, desconheciam por completo que aquela tinha sido a última vez que haviam percorrido os cinco quilómetros da Lagoa Azul em competição…

Minutos depois, nesse mesmo troço, o trágico acidente de Joaquim Santos e Miguel Oliveira, afastaria definitivamente o Rali de Portugal da Serra de Sintra. Era a triste despedida de um local que muito contribuiu para o prestígio da nossa prova e, se a fama do “melhor rali do mundo” transpôs fronteiras, muito ficou a dever às particulares características de locais tão díspares como Arganil, Fafe e, obviamente, Sintra.

O maciço granítico situado a poucos quilómetros de Lisboa, tem uma longa tradição no desporto motorizado em Portugal e, ainda antes do Rali TAP ver a luz do dia, já as sinuosas estradas que recortam a serra, punham à prova pilotos e máquinas. Local de mitos e lendas, o rochedo que suporta o Palácio da Pena e o Castelo dos Mouros, emprestava à competição algum do seu misticismo, contribuindo para que eventos igualmente emblemáticos como o Rali das Camélias ou a Rampa da Pena ganhassem enorme relevância no panorama nacional.

Os anos do “TAP”

Logo na primeira edição, em 1967, o vencedor do Rallye Internacional TAP, viria a ser decidido em Sintra. A última madrugada, contou com duas passagens pela Prova de Classificação “Alto da Mula” e Jean Pierre Nicolas, que até aí vinha dominando os acontecimentos, atrasou-se com problemas na caixa de velocidades do Renault 8 Gordini. O francês forçou o andamento para recuperar o tempo perdido e saiu de estrada, entregando a vitória a outro Gordini, tripulado pelos portugueses Carpinteiro Albino e Silva Pereira.

Nas décadas que se seguiram, o Rali de Portugal visitou assiduamente aquelas paragens. Em 1972, surge pela primeira vez a designação “Peninha” a dar nome a um dos troços e em 74, estreou mais um ex-libris: a mítica classificativa de “Sintra”, ligando o Pé da Serra a São Pedro ao longo de 10,5Km que terminavam no arrepiante percurso “entre-muros”, habitualmente utilizado na Rampa da Pena.

Turini à portuguesa

O local ganhava fama no itinerário do Rali de Portugal e as suas curvas encadeadas atraíam cada vez mais espetadores. Na berma da estrada, no cimo de um dos muitos pedregulhos ou sobre os muros que serpenteiam na imensidão verde da serra, os entusiastas apreciavam os dotes de condução dos concorrentes.

A forma como aquelas classificativas eram acarinhadas por pilotos, espetadores e fotógrafos, incentivou a equipa de César Torres a introduzir, em 1976, uma importante alteração na estrutura do então já denominado “Vinho do Porto”: a inclusão de uma terceira etapa totalmente disputada na Serra de Sintra, ao longo de uma madrugada, ao melhor estilo da noite do Turini no Rali Monte Carlo. Continuando a abrir as hostilidades, Sintra voltava assim a receber os sobreviventes para uma última noite que se pretendia emocionante e decisiva para o desfecho da prova. A jornada incluía várias passagens pelas classificativas de Alcabideche (4,2Km), estreada no ano anterior e utilizada até 1977, Lagoa Azul (5Km), Peninha (6,5Km, já totalmente asfaltados), e Sintra (10,5Km).

A “noite de Sintra” rapidamente se tornou num dos momentos mais aguardados do ano pela gente dos automóveis. Milhares e milhares de populares começavam a subir a serra durante a tarde, com o farnel às costas, escolhendo o melhor local para ver e aplaudir Alen, Munari, Waldegård, Mikkola, Meqepê, Torres e companhia. O número de espetadores aumentava de ano para ano e o seu comportamento começava a preocupar a organização.

Em 1981, os espetadores que se deslocaram à Peninha, assistiram a uma cena insólita: Após bater numa pedra, o Fiat 131 Abarth de Markku Alen perdeu a roda dianteira direita e o finlandês fez os quilómetros finais em marcha-atrás, vindo ainda a vencer o rali. Este seria o último ano em que as estrelas do Mundial ali mediram forças durante a noite. Se a colocação dos espectadores, àquela hora, era mais difícil de controlar, do ponto de vista desportivo, a ideia não tivera o sucesso esperado já que apenas em 1978, ano do épico duelo Alen-Mikkola, o vencedor fora ali decidido. Habitualmente, os concorrentes chegavam à última etapa com as posições consolidadas, limitando-se a cumprir calendário. Acolhendo a competição em dois momentos, a abrir e a fechar o rali, Sintra constituía ainda uma operação logística onerosa e César Torres decide, em 1982, concentrar as passagens na abertura do Rali de Portugal, proporcionando o primeiro contacto entre o público os pilotos que percorreriam agora a fundo, as várias rondas pelas classificativas durante a manhã e início da tarde da etapa inicial.

Dia de romaria

O espetáculo saiu a ganhar e o público não ficou indiferente, convertendo a primeira etapa num autêntico dia de romaria à serra. De carro, comboio ou autocarro, todos os caminhos iam dar a Sntra. Nas escolas da proximidade não havia aulas, para que os jovens participassem na festa e, em família ou entre amigos, milhares de espetadores espalhavam as merendas ao longo de duas dezenas de quilómetros, aguardando, com a telefonia encostada ao ouvido, o festival proporcionado pelos melhores pilotos do mundo, pelos ídolos nacionais e por aqueles amadores que, com um carro já cansado, recorriam à ajuda de amigos para não faltar à festa do automobilismo em Portugal.

Vivia-se a época de ouro dos “super-rápidos” carros do Grupo B. Com 300, 400 ou mesmo 500 cv, modelos como o Lancia 037, Audi Quattro, ou Peugeot 205 Turbo 16, tornavam os ralis ainda mais excitantes e os seus pilotos, Markku Alen, Walter Röhrl, Stig Blomqvist, Michéle Mouton, Ari Vatanen ou Timo Salonen atingiam níveis de popularidade nunca antes vistos, o mesmo se passando com a estrela em ascensão Henri Toivonen que, numa diabólica manhã de Março em 1984, pulverizou todos os recordes de Sintra até destruir o Lancia contra um muro.

À medida que as reações daquelas autênticas bombas se tornavam mais difíceis de prever e controlar, o público aproximava-se cada vez mais. As imagens da inconsciência corriam mundo, abalando o prestígio do “Vinho do Porto”.

Fim anunciado

Pilotos e comunicação social alertavam há muito: mais cedo ou mais tarde, um acidente com graves consequências iria ensombrar o Rali de Portugal. A euforia descontrolada dos espetadores ameaçava seriamente a segurança da prova e Sintra estava no topo das preocupações. O acidente de Joaquim Santos, naquela enlutada manhã de 5 de Março de 1986, vinha confirmar que as regras de segurança das provas de estrada não haviam evoluído ao ritmo da performance dos seus carros.

Inevitavelmente, Sintra disse nesse dia adeus ao Campeonato do Mundo de Ralis. Receberia ainda, nos anos seguintes, algumas provas de âmbito nacional, mas questões ambientais afastariam definitivamente, no início dos anos 90, as competições daquele lendário local. O palco de tantos dias de festa remetia-se assim ao mais profundo silêncio. No entanto, uma das muitas lendas que caracterizam o local, conta-nos que, à noite, por aqueles lados, quando o vento se cala, ainda é possível ouvir o ecoar dos motores do Lancia Stratos, do Fiat 131 Abarth ou do Ford Escort RS a acelerar, serra acima, perante uma multidão em delírio. Verdade ou loucura? Loucas, eram as noites de Sintra…

O dia de António Rodrigues

Sintra  - Património mundial

Para António Rodrigues, o dia 7 de Março de 1984 terá certamente um lugar especial nas suas memórias. O piloto português, acompanhado por José Cotter, realizou durante a etapa inicial do Rali de Portugal, em plena Serra de Sintra, uma das mais brilhantes actuações da sua carreira. Dias antes da prova, Rodrigues foi levantar o seu novo brinquedo a Alfragide: um Lancia 037. Fez um primeiro teste na Lagoa Azul, ficando logo aí entusiasmado com o potencial do carro. Na primeira passagem pela Lagoa Azul, fez o nono tempo, atrás dos pilotos oficiais e, a partir daí foi ganhando confiança, dando a todos os espetadores presentes, a alegria de ver um português intrometer-se nas disputas dos pilotos de fábrica. Rodrigues chegou a fazer um segundo tempo à geral, terminando a primeira etapa no 7º lugar atrás dos pilotos da Lancia, da Audi e do piloto do Renault 5, Jean Ragnotti. A falta de material levou o piloto a abdicar de disputar as restantes etapas em terra, pondo termo a uma promissora prestação.

Festa estragada

Sintra  - Património mundial

Algumas horas após o terrível acidente da Lagoa Azul, Joaquim Santos estava ainda visivelmente perturbado. “Havia muito público no meio da estrada desde a primeira curva do troço. Éramos nós quem se desviava das pessoas e não contrário!”, confessava o piloto. Naquela manhã que se pretendia de festa, estimou-se que perto de meio milhão de pessoas estariam distribuídos ao longo de pouco mais de duas dezenas de quilómetros de classificativas. Na curva anterior à do acidente, O Ford RS 200 da Diabolique não conseguiu evitar o contacto com alguns espetadores mal colocados e chegou ao fatídico local completamente desgovernado, saindo de estrada. Três vítimas mortais e dezenas de feridos foi o balanço de um acidente que há muito se receava.

Ponto final

À medida que os pilotos de fábrica recebiam a notícia do acidente de Joaquim Santos, reagiam com tom de revolta e a primeira decisão foi unânime: não disputar as restantes passagens pelas classificativas de Sintra, retomando a competição no Norte do país, a partir da segunda etapa. Nesse mesmo dia, os pilotos oficiais reuniram numa sala do Hotel Estoril Sol, e após algumas horas de conversação, foi Henri Toivonen quem leu o comunicado resultante da deliberação concertada: não continuar em prova. César Torres ainda tentou demovê-los, apontando a continuação a partir da segunda etapa como a opção acertada, mas a decisão estava tomada. Era o princípio do fim dos carros do Grupo B…

Os reis das camélias

A ligação da Serra de Sintra aos automóveis vai muito além do Rali de Portugal. Na verdade, as muralhas do Castelo dos Mouros puderam assistir, de um lugar privilegiado, ao desenrolar de muitas outras provas de ralis e velocidade com grande projeção nacional. No capítulo da velocidade, a morfologia do terreno propiciava a realização de rampas. A Rampa da Lagoa Azul ou a emblemática Rampa da Pena, consagraram vários campeões da modalidade.

No que aos ralis diz respeito, a herança é igualmente valiosa. Quem não se lembra do Rali do Sintrense, a contar para o Regional de Ralis – Sul? No entanto, a mais prestigiada das provas disputadas em Sintra e que muito contribuiu para a fama das suas classificativas, terá sido o Rali das Camélias. Nasceu nos anos 50 e, com o surgimento do Campeonato Nacional de Ralis em 1966, passou a integrar assiduamente o seu calendário. 

As características do percurso criavam condições para grandes duelos, com a vitória a sorrir habitualmente àqueles que, pela experiência do terreno, iam buscar o “tal” segundo de diferença cortando de forma mais arrojada esta ou aquela curva do rali. Por este motivo, dizia-se que “as Camélias” era uma prova para especialistas. Ao longo de quatro décadas de história, muitos foram aqueles que fizeram a diferença, passeando a sua classe. Manuel Gião, José Lampreia, Américo Nunes, Mário Figueiredo, Joaquim Santos ou Inverno Amaral são alguns exemplos. No entanto, o grande senhor das “Camélias” dá pelo nome de Mário Silva. Correndo “em casa”, conhecia como ninguém cada metro daqueles troços e sabia onde colocar o carro em cada uma das mil curvas de Sintra. Conquistou quatro vitórias na prova e o título de “Rei das Camélias”…

Reviver o passado

Para os que desejam reviver as longas noites de Sintra ou quem nunca teve oportunidade de o fazer no passado, resta hoje em dia uma oportunidade de ouro para sentir de perto as emoções de ver e ouvir os motores de competição ecoando na serra. O Rally de Portugal Histórico disputa-se desde 2006 e conta, na última etapa, com uma reedição das famosas rondas noturnas pelos troços da Lagoa Azul, Peninha e Sintra.

Rever naqueles locais míticos, alguns dos carros que marcaram a história dos ralis, como o Fulvia, Stratos, Escort, 911, ou 1600 SSS, é sem dúvida uma experiência que vale a pena. De ano para ano, o entusiasmo à volta deste acontecimento tem vindo a crescer e é já uma moldura bem interessante, aquela que resiste ao frio para ver passar nomes como João Mexia, José Grosso ou Rui Bevilacqua, prego a fundo, quebrando o silêncio daquele lugar adormecido.

Para que se perceba um pouco melhor o que “era” Sintra, aqui fica um magnifico relato de uma “noite louca” Rallye de Portugal 78 – A loucura de Sintra

 

 

Caro leitor, esta é uma mensagem importante.
Já não é mais possível o Autosport continuar a disponibilizar todos os seus artigos gratuitamente.
Para que os leitores possam contribuir para a existência e evolução da qualidade do seu site preferido, criámos o Clube Autosport com inúmeras vantagens e descontos que permitirá a cada membro aceder a todos os artigos do site Autosport e ainda recuperar (varias vezes) o custo de ser membro.
Os membros do Clube Autosport receberão um cartão de membro com validade de 1 ano, que apresentarão junto das empresas parceiras como identificação.
Lista de Vantagens:
-Acesso a todos os conteúdos no site Autosport sem ter que ver a publicidade
-Oferta de um carro telecomandado da Shell Motorsport Collection (promoção de lançamento)
-Desconto nos combustíveis Shell
-Acesso a seguros especialmente desenvolvidos pela Vitorinos seguros a preços imbatíveis
-Descontos em oficinas, lojas e serviços auto
-Acesso exclusivo a eventos especialmente organizados para membros
Saiba mais AQUI

últimas Ralis
últimas Autosport
ralis
últimas Automais
ralis
Ativar notificações? Sim Não, obrigado