A NOVA VIDA ARMINDO ARAÚJO

Por a 4 Fevereiro 2020 11:48

Por Ricardo Araújo

FOTOGRAFIA: ZOOM Motorsport/António Silva

Cumprem-se 20 anos desde a estreia oficial, num agora longínquo Rali de Montelongo ao volante de um Renault Clio preparado por amigos e que usava pneus usados com defeito. Armindo Araújo abriu o livro sobre uma carreira que inclui cinco títulos nacionais absolutos, dois títulos mundiais e inúmeros momentos para mais tarde recordar. Pelo meio, o mais consagrado piloto português de ralis falou de (quase) tudo: a paixão pelas motos de Enduro que quase o levou ao Dakar, os títulos conquistados a pulso em todas as categorias por onde passou, os bastidores das quatro equipas oficiais que representou (Citroën, Mitsubishi, Mini e Hyundai), as lutas no PWRC com jovens lobos como Tänak, Mikkelsen ou Paddon, a passagem atribulada pelo WRC, a rutura com a Motorsport Italia, a vida durante o interregno de quase seis anos, o regresso vitorioso com a Hyundai, e o desafio de perseguir o sexto título com a jovem e ambiciosa The Racing Factory. Armindo Araújo sem filtros, olhos nos olhos.

São 8h48 e chegamos ao local combinado. Ribeiros, zona de Fafe. Estamos em solo sagrado dos ralis em Portugal, a região a que milhares de fanáticos religiosos chamam “Catedral”. Hoje, porém, o frio, o nevoeiro e a chuva molha-tolos remetem-nos para uma qualquer florestal em Inglaterra. Só alguns carros estacionados, uma autocaravana e o crepitar ao longe das pistolas pneumáticas denunciam a presença de um carro de ralis.

Armindo Araújo e a sua pequena equipa de colaboradores (e amigos) mais próximos esperam dentro da autocaranava. Esperam que o tempo dê tréguas e que a mecânica fique pronta.

Cumprimentos da praxe, rasga-se o sorriso paciente de quem sabe, melhor do que ninguém, que num teste de pré-época é normal acordar às 7h00 para só começar a andar às 11h30 (como foi o caso). Contudo, é impossível ignorar a ironia de Armindo Araújo estar preparar a fase mais recente da sua carreira a poucos quilómetros do local onde fez o primeiro rali da sua vida, há 20 anos. É uma espécie de versão 6.0 de alguém que, ninguém o esconde, nasceu em berço de ouro, mas que nem por isso deixou de subir a pulso a escada do desporto que o apaixona desde que foi ver um rali que passava ao lado da casa dos pais. Alguém que depois foi campeão nacional de Promoção, vencedor do Troféu Saxo, bicampeão nacional absoluto com um Kit-Car (Citroën), bicampeão nacional absoluto com um Grupo N (Mitsubishi), bicampeão do Mundo de Produção, que chegou ao WRC, que regressou ao ativo após uma paragem de quase seis anos e foi campeão (com Luís Ramalho) à primeira tentativa, com um tipo de carro (R5) que desconhecia e com uma marca (Hyundai) que se estreava de forma oficial no CPR.

Alguém que se tornou uma figura pública até junto do público mais generalista e menos conhecedor dos ralis, um pouco como acontece com Miguel Oliveira no motociclismo ou Tiago Monteiro na velocidade. Apesar de trabalhar como jornalista nesta área há quase duas décadas, só esporadicamente tive contactos pessoais com Armindo Araújo. Foi apenas em agosto de 2019 que pude ver, por dentro, porque é que o piloto de Santo Tirso chegou ao pináculo deste desporto.

Convidado pela organização do TitansRX para participar na prova desse campeonato internacional de Ralicross em Montalegre, Armindo Araújo mostrou a sua classe dentro e fora do carro. Na apresentação oficial pré-evento, num dia chuvoso em Vigo (Espanha), chegou ao local combinado quando os próprios organizadores ainda nem tinha montado a cerimónia. Profissional, disponível, sociável, foi um mimo de Relações Públicas para uma organização inexperiente e sedenta do ‘buzz’ mediático.

Sem experiência prévia no carro (de 530cv) e numa pista que desconhecia, foi evoluindo de forma metódica até se bater de igual para igual com figuras como os irmãos Hansen, Topi Heikkinen, Craig Breen, Tom Coronel, entre outros.

No final, despediu-se com um sorriso e ouviu de todos que a porta ficou aberta para regressar.

O Armindo Araújo que encontro nessa manhã ‘britânica’ em Fafe é o mesmo que conheci em Montalegre: frontal, prático, determinado, olhos nos olhos, sem politiquices, com a confiança e o à vontade de quem já viu quase tudo (de bom e de mau) neste desporto. A tarefa pela frente não é fácil. Há, no mínimo, mais quatro campeões nacionais que perseguem o mesmo objetivo de Armindo Araújo: Ricardo Teodósio, Bruno Magalhães, José Pedro Fontes e Pedro Meireles.

O campeonato do ano passado foi decidido por 4,06 pontos. Em 2017 foram 0,4 pontos. Mas isso são apenas números e passado. Aos 42 anos, o que realmente faz correr o sangue nas veias de Armindo Araújo é o desafio e o futuro. O desafio de vencer já o próximo rali. O desafio de cimentar o seu recorde de títulos na mais importante e popular competição do automobilismo nacional. E o desafio de o fazer com uma jovem e ambiciosa equipa que não olhou a meios para se dotar dos recursos técnicos, logísticos e humanos. Vinte anos depois, o futuro já começou.

Depois de um regresso à competição e de dois anos na Hyundai, como surgiu esta nova fase e este projeto com a The Racing Factory?

Os dois anos que passei na Hyundai foram ótimos. Tínhamos o objetivo claro de darmos o título à marca em Portugal e conseguimos. Ganhámos seis ralis, fizemos vários pódios e penso que demos um enorme retorno de marketing à Hyundai. Mas foi um ciclo que se fechou naturalmente. No final de 2019, quando decidi não continuar na Hyundai, não tinha qualquer projeto definido. Foi nessa altura que o Aloísio Monteiro me contactou e disse que queria conversar comigo.

Tivemos um jantar onde ele me falou dos objetivos, da expectativa, do sonho que ele tinha para a Racing Factory. Mostrou-me a empresa, a estrutura e convidou-me a pensar numa possível parceria. Eu queria, obviamente, um projeto de qualidade, com um carro competitivo que me permitisse vencer, mas também queria mais autonomia. Queria recuperar a autonomia que sempre tive nos meus projetos desde o segundo ano no PWRC, desde 2008. Autonomia para trabalhar o marketing da forma que os meus patrocinadores pedem, autonomia para tomar decisões de estratégia comercial e técnica. Eu coordeno a parte técnica com a Racing Factory e a parte comercial com os meus patrocinadores. Ao longo destes anos, percebi que este é o modelo que me deixa mais relaxado e confortável, quando tenho este domínio sobre a minha estrutura. Como sabes, tenho uma equipa que me acompanha desde os tempos do Mundial nas áreas do marketing, da comunicação, das redes sociais, do design, etc.

Foi então uma aposta mútua. Tu confias na The Racing Factory para te dar todas as condições para lutares pelo título e teres a autonomia de que precisas, e a equipa confia em ti para os levares a um patamar desportivo e de exposição superior.

Sim, daí este um bom alinhamento de ideias, de objetivos, de estratégia entre mim e o Aloísio. Foi relativamente fácil montarmos este projeto porque temos aquilo que o outro precisa. Além de piloto, sou um embaixador da The Racing Factory.

E um embaixador da Galp, da Meo, empresas importantes que já estão contigo há vários anos…

Estou com a Galp desde 2005 e estou com a Meo, na altura TMN, desde 2002. A Câmara Municipal de Santo Tirso, por exemplo, está comigo desde a minha primeira corrida, há 20 anos. Isto também demonstra aquilo que a minha carreira e a minha estrutura têm dado a estes parceiros e o nível de confiança em que funcionamos. Este crédito existe porque eu só apresento projetos aos meus parceiros em que acredite verdadeiramente. E eu não estava confortável com o que estava a acontecer nos últimos anos a esse nível. Decidi voltar a dar maior visibilidade a esta equipa Armindo Araújo, para ter uma conexão mais forte com os meus parceiros e para não ter uma marca no meio que pudesse determinar ou influenciar esta relação, por muito positiva que tenha sido a minha ligação com a Hyundai. É importante perceber que as equipas oficiais, hoje em dia, funcionam num modelo completamente diferente do que aconteceu comigo na Citroën ou na Mitsubishi, por exemplo. Na Citroën e na Mitsubishi eu era um funcionário da marca, tinha um ordenado para correr, tinha obrigações a cumprir. Era um emprego, um emprego de sonho e algo que eu sempre quis para a minha vida. Mas a minha preocupação era conduzir. Ponto.

O que aconteceu nos meus três últimos anos na Mitsubishi, inclusive quando fomos campeões do Mundo, era diferente: eu já era um piloto-gestor.

O projeto Mini no primeiro ano era um projeto Team Armindo Araújo. No segundo ano já não era assim: eu só levava uma participação financeira e toda a gestão era feita pela equipa italiana e pela Mini, com os resultados que se conhecem. Enquanto fui eu a gerir tudo, correu sobre rodas, por isso o segundo ano foi uma grande lição para a minha vida e para a minha carreira. Depois estive seis anos afastado porque passámos por uma crise financeira grande em Portugal, o financiamento aos projetos não existia e eu não queria pôr em causa a minha carreira com algo onde eu não sentisse que tinhas as condições mínimas para correr e obter resultados, para dignificar os meus parceiros. Foi então que decidi dizer-lhes que ia fazer uma pausa, momentânea ou definitiva.

O primeiro ano na Mini e agora na Hyundai já foi o modelo moderno das equipas oficiais: o piloto é o gestor do seu projeto. Tem que contribuir com uma grande parte do orçamento, tem de arranjar uma estrutura técnica, arranjar um carro, e a marca é mais um sponsor, um parceiro que, obviamente, quer retirar o maior proveito possível do projeto. Claro que o facto de ser uma marca automóvel impede que tenhamos total liberdade. O piloto tem, como é normal, que seguir os interesses comerciais da marca. Eu prefiro ter a gestão total, mas só tenho que agradecer à Hyundai porque, se calhar, se não fosse a marca eu hoje não estaria a correr. Foi benéfico para ambas as partes.

Mesmo nestes moldes de equipa oficial, achas que é importante para os ralis em Portugal ter a Hyundai no CPR?

Claro que sim. Porque a máquina de marketing de uma marca é muito importante e faz muito pelo desporto. A Hyundai fez um grande investimento de marketing direto nas provas, na relação com a Comunicação Social, com os adeptos.

Isso beneficia até as outras equipas do campeonato e os projetos totalmente privados?

É sempre uma vantagem. O aparecimento da Hyundai foi muito bom para todos e eu gostava que muitas outras marcas surgissem, desde que tenham este envolvimento, esta paixão. Até porque é um excelente negócio para uma marca.

Desde que criem aquilo que no mundo do marketing se chama engagement…

Exatamente. É precisamente isso que eu me esforço por fazer nos meus projetos. Estes parceiros grandes não podem investir de uma forma tímida, ou seja, darem o sponsor e depois desligarem-se do projeto. É preciso ativar o seu patrocínio. Podemos fazer o paralelismo com o futebol, onde as grandes marcas patrocinam os clubes mas depois também compram o seu camarote no estádio, levam os seus convidados, criam toda uma relação e uma experiência com o próprio desporto.

É isso que a Galp faz com ações de condução defensiva, com ações de prevenção rodoviária, com palestras motivacionais, com a imagem de determinação e superação que os ralis têm. Decidi seguir este caminho sozinho com o projeto Armindo Araújo porque só faz sentido que os meus parceiros tenham aqui uma verdadeira ferramenta de marketing para as suas marcas e as suas empresas. O era do autocolante no carro já passou há muito tempo. Tem que ser um bom negócio e isso só é possível com o engagement de que falas.

Até agora fizeste cerca de 135 quilómetros com o Skoda. Quais são as primeiras impressões?

Fizemos estes primeiros quilómetros em condições extremas de mau tempo, com muita lama e água. Mas percebi que o carro é muito ágil, dá muita informação ao piloto, é fácil e previsível. Como o motor tem um excelente binário, o carro trabalha muito bem em baixas rotações, o que permite um estilo de pilotagem diferente daquele a que eu estava habituado. Digamos que há uma maior naturalidade a guiar o carro. Tivemos aqui o Rui Soares, engenheiro que já está comigo há alguns anos e que vai trabalhar em conjunto com o Adriano, engenheiro da Racing Factory, e tivemos o apoio de um engenheiro da Skoda Motorsport. Fiquei contente ao saber que o meu feedback do carro logo após os primeiros quilómetros vai muito na linha daquilo que a Skoda já tinha dos pilotos oficiais, até de coisas menos naturais que senti. Se fosse um feedback completamente diferente era mau sinal, porque não conseguiríamos aproveitar a informação e a base de afinações que a Skoda Motorsport já tem.

Como é que antevês o CPR para 2020?

Talvez devido ao sistema de pontuação, os últimos campeonatos têm sido equilibrados. E o Ricardo Teodósio, Bruno Magalhães, José Pedro Fontes e Pedro Meireles já conhecem bem os seus carros e as suas equipas. Este ano temos uma situação da qual eu discordo totalmente que é o facto de os pilotos continuarem a escolher sete pontuações em oito ralis que disputam, quando agora o calendário tem mais uma prova do que em 2019, ou seja, tem 10 ralis.

Isto faz com que os candidatos se dispersem ainda mais, porque em 2019 a regra de pontuações era a mesma mas havia só nove ralis. Com esta dispersão há maior possibilidade de os principais pilotos estarem menos tempo em competição direta uns com os outros, o que, na minha opinião, prejudica o espetáculo e faz depender a luta do título mais da estratégia do que da performance.

Todos os pilotos deveriam correr uns contra os outros em todos os momentos, em todas as provas. Isso é que demonstra quem é o campeão, isso é que é bom para o desporto. Quanto aos nossos adversários diretos, penso que estarão todos novamente muito fortes. O Ricardo (Teodósio) vem de um título, tem um carro de última geração que já conhece muito bem, tem dois anos de Skoda, conhece todas as afinações e é um fortíssimo candidato. O Zè Pedro (Fontes) é um piloto muito experiente e o Citroën tem tido uma evolução fantástica nos últimos tempos. O facto de a marca ter saído do WRC até beneficia os R5, porque o foco de desenvolvimento agora é esse e veja-se o que se passou no Rali de Monte Carlo, onde os Citroën R5 dominaram a prova. O Bruno Magalhães vai manter-se na Hyundai e isso é uma vantagem, desconheço nesta altura se existirá algum outro carro na equipa. O Pedro Meireles é muito experiente, tem um excelente carro e também é sempre um piloto a ter em conta.

Esta será a tua terceira época após um interregno de quase seis anos. Como era o teu dia-a-dia nesse período em que estavas completamente desligado dos ralis e do desporto automóvel? Sei que te dedicaste aos negócios da tua família no setor têxtil, mas não te custou cortares por completo os laços com este meio?

O que antecedeu essa paragem foi uma fase difícil para mim e agora posso contar tudo o que aconteceu. Primeiro é preciso compreender que eu construí uma carreira desde miúdo para ser piloto. Temos o sonho de subir todos os degraus, de ser piloto oficial, de chegarmos ao WRC, de ser campeão do Mundo do WRC, é o sonho de qualquer miúdo que começa neste desporto. E eu, felizmente, estava a subir todos esses degraus, o meu sonho de carreira estava a ser cumprido, ano após ano. Em 2007 eu vou para o Mundial com a Mitsubishi como piloto oficial. A estrutura técnica portuguesa vai para o PWRC e tínhamos um contrato a dois anos. Eu faço a primeira época mas no final desse ano, em dezembro de 2007, a Mitsubishi Portugal informa-me que não conseguiria montar o projeto para 2008. Portanto, a minha carreira poderia ter terminado ali. Foi nessa altura que comecei a trabalhar os meus próprios projetos como piloto e gestor. Eu prometi à Mitsubishi que, se eles me dessem o apoio que pudessem, eu assumiria a responsabilidade da Mitsubishi. Fui à TMN, à Galp, à Câmara Municipal, financiei-me para completar o projeto, com a Mitsubishi incluída, e depois fui contratar os serviços técnicos da Ralliart Italia. Faço a época de 2008 com a Ralliart Italia mas as coisas não correm bem porque a equipa tinha uma parceria com uma marca de suspensões que eu não achava que fosse a melhor, e tinha um engenheiro que eu não achava que fosse o indicado. Eu era muito rápido em algumas provas e noutras não. No final do ano eu disse que iria sair da equipa e arranjar outra estrutura para 2009.

Foi aí que a Ralliart Italia me coloca como prioridade da equipa e abandona o programa no Campeonato de Itália com o Paolo Andreucci para se dedicar apenas ao PWRC. Perguntam-me o que eu queria mudar, e foi aí que eu disse que queria correr com as suspensões Reiger e que queria o engenheiro do Paolo Andreucci. A partir do momento em que eu passei a correr com as suspensões Reiger e com o engenheiro que eu queria, o Alex Segala, fomos campeões do Mundo. Ou seja, eu sabia o que me faltava, mas havia contratos comerciais que não podiam ser quebrados.

Curiosamente, no ano passado o Sébastien Ogier também exigiu à Citroën que lhe dessem as suspensões Reiger. Ou seja, é fundamental que a equipa e a marca confiem no piloto…

É crucial para se ter sucesso. Convém lembrar que nesses dois anos em que fomos campeões do Mundo de Produção nós lutámos com pilotos como o Tänak, Mikkelsen, Paddon, Hanninen, Flodin, Al- Attiyah, Prokop, Toshi Arai, etc. Alguns deles eram meus companheiros na Mitsubishi porque vinham do Pirelli Star Driver, como o Tänak. Ele era muito jovem e rápido mas não era consistente, cometia muitos erros. As provas do Mundial são três dias, é preciso lutar com todas as armas, eu ganhei-lhe alguns ralis, ele ganhou-me outros. O mesmo aconteceu com o Paddon, que também vinha do Pirelli Star Driver.

Mas como em 2009 fizemos um excelente campeonato, dentro do pódio o ano todo, a Mitsubishi Japão pediu-nos para lançarmos o Evo X. A Ralliart Itália começa a desenvolver o Evo X e eu faço muitos testes, praticamente mudo-me para Itália e torno-me piloto de desenvolvimento, além de fazer o Mundial.

Essa fase em Itália foi importante para ti em termos técnicos?

Foi muito bom, ganhei muita experiência em Itália nessa fase do PWRC. Colocaram-me à disposição muita informação, um leque muito abrangente de opções técnicas, trabalhei com vários engenheiros. Por exemplo, o desenvolvimento do Evo X R4 foi feito em Itália e o engenheiro com quem eu trabalhei para fazer a homologação do carro foi o Andrea Adamo (atual diretor da Hyundai Motorsport).

Depois de termos sido campeões do Mundo duas vezes, havia vontade de mudar. É aí que surge o projeto com um Mini completamente privado. A Motorsport Italia compra um Mini WRC, eu apresento o projeto aos meus parceiros e conseguimos que a Mini nos autorizasse a estrear o carro no Rali de Portugal, uma versão ainda inferior, com todas as fragilidades do carro. Lembro-me que quando eu testei o carro pela primeira vez, aqui em Portugal, partimos o motor após poucos quilómetros. Montámos outro motor para a prova e, contra todas as expectativas, no sábado à tarde estávamos em 7.º da geral quando partimos outro motor, por causa de uma configuração errada na admissão de ar, entrava mais terra do que ar para o motor.

Mas mostrámos logo ali um bom nível de performance. Nesse ano tínhamos um programa limitado de provas com o Mini e tentámos escolher os ralis que não fossem tão duros para o carro, gerindo o nosso programa privado com dificuldades mas sempre com a preocupação de passar uma boa imagem dos nossos sponsors.

O grande problema surge no segundo ano da Mini, em 2012, quando eu ia montar um projeto similar ao do ano anterior, de sete ou oito provas com o Mini privado. Há o problema entre a Prodrive e a Mini, que se separam, mas como a Mini tinha obrigações com a FIA decide falar com a minha equipa para que eu complete o campeonato, em cima das provas que já ia fazer. Aí dá-se o maior erro da minha carreira. Eu passo de gestor do meu projeto a piloto que levava dinheiro para a equipa sem ter qualquer outra intervenção no projeto, porque era tudo gerido entre os italianos e a Mini. Ao perdermos esse controlo, as coisas passaram a ser geridas por terceiros. Deu no que deu. Em termos de imagem, a Mini e a Motorsport Italia tinham de dizer que éramos uma equipa oficial, como a Ford ou a Citroën, quando na realidade desportiva estávamos abaixo da época anterior como privados!

Tínhamos muitas tendas bonitas, fatos bonitos, chapéus bonitos… e nunca testávamos! Nunca havia desenvolvimentos porque estávamos dependentes do que a Prodrive nos dava e a Prodrive estava chateada com a Mini. Ou seja, era uma receita catastrófica.

Entrámos em rutura com a equipa porque não concordávamos com a forma como o projeto estava a ser estruturado e a comunicação que estava a ser feita. Porque era impossível eu aceitar que as suspensões nos saíssem pelo topo dos amortecedores numa reta, obrigando-nos a parar na berma, e depois o comunicado da Mini/Motorsport Italia dizia que o piloto teve uma saída de estrada! Se eu ainda aguentei algumas destas situações, a partir de determinada altura entrámos em rota de colisão e eu comecei a publicar fotografias do que realmente acontecia nos troços, para provar o que eu dizia. Optei por não seguir esse caminho de mentira, porque não é a minha postura na vida, e a Mini optou por não prosseguir com o projeto, porque realmente aquilo nunca teve pernas para andar. E esse desfecho acabou por demonstrar que aquilo que eu fazia antes, o modelo onde eu geria os meus projetos, se calhar era até mais válido do que aquilo que eles fizeram. Mas foi uma grande lição para mim.

A última prova que eu faço com a Mini foi o Rali da Finlândia de 2012 e nesse fim de semana eu tenho uma reunião com a Citroën onde o (Yves) Matton me oferece o terceiro carro da Citroën, desde que eu garantisse um determinado budget. O problema é que eu não tinha esse budget.

Já anteriormente o Malcolm (Wilson) me tinha oferecido o carro da Stobart mas também não consegui chegar a esse valor. A realidade era essa: salvo raríssima exceções, esses terceiros carros tinham de ser pagos em parte pelos pilotos. Tive algumas portas abertas no WRC, mas, na prática, a Mini foi o projeto possível. Eu não era assim tão idiota para achar que o caminho da Mini era melhor do que um lugar na Citroën ou na Ford. Foi apenas uma questão financeira.

E é depois disso que te desligas por completo dos ralis, ao ponto de nem sequer veres ralis como espectador. Não te custou esse afastamento total?

Se calhar, como gosto tanto disto foi uma espécie de defesa. Não encontrei um projeto aliciante em Portugal ou no estrangeiro, que realmente me convencesse. No dia em que decidi que não teria projeto desportivo, também decidi que não iria ficar refém dessa decisão. A partir daí nunca mais fui ver um rali, nunca mais comprei um jornal de desporto automóvel, virei completamente o foco para outro lado, para os negócios da minha família e para novos negócios que criei. Pude viajar de moto, que era uma coisa que eu queria ter feito antes, fui para Marrocos, fiz uma volta à Europa de moto. Até que no final de 2017 surge a hipótese Hyundai e deu-se um clique. No dia a seguir estava a falar com a Galp, estava a falar com a Câmara, com o Nuno (Castro), o Miguel (Rodrigues), com os meus engenheiros. Parecia que nem tinha estado afastado durante aqueles cinco ou seis anos. Voltou tudo a andar.

Mas durante aquela pausa na minha carreira eu ia para a empresa todos dias, estava com os clientes, com os funcionários da empresa… Nem senti os efeitos de estar afastado daquilo que tinha sido a minha vida durante 11 ou 12 anos. Seria muito pior se vivesse as emoções dos ralis em seco, ir ver ralis e não estar lá dentro. Tive centenas de convites para fazer ralis, tive centenas de convites para fazer testes, convites para isto e aquilo, mas para mim simplesmente não fazia sentido.

A tua estreia absoluta nos automóveis foi há 20 anos. O que recordas desse Rali de Montelongo, com 22 anos, num Renault Clio 16V e com um amigo pessoal (Pedro Queirós) como navegador?

Eu tinha acabado de ganhar o Troféu KTM de Enduro e como prémio fui à fábrica da KTM na Áustria, em Mattighoffen. Estava a dar os primeiros passos para fazer o Dakar nas motos. O Rali de Santo Tirso passava ao lado da casa dos meus pais e eu fui ver o rali com o Pedro Queirós. Quando passavam os carros eu dizia, meio a sério meio a brincar, “acho que conseguia fazer melhor”. Claro que eu já fazia corridas de motos mas a ideia ficou-me na cabeça e uns dias depois liguei ao Pedro e perguntei-lhe se ele queria entrar comigo na aventura de fazer um rali. Tanto eu como ele não tínhamos qualquer noção do que era um rali. Falámos com uns amigos, um deles alugou-me o carro, outro preparou-me o carro durante a noite, arranjámos uns pneus usados, fomos treinar com o meu carro do dia-a-dia, e chegámos ao rali e por pouco não ganhávamos, fomos segundos à geral. Da parte da manhã liderávamos o rali mas como partíamos tão lá atrás e demorávamos a passar nos troços, pouca gente sabia que estávamos na frente!

As coisas correram muito bem, não tive nenhum acidente, nenhum percalço. E isso foi fundamental porque se eu tivesse tido algum acidente ou problema, provavelmente nunca mais teria feito qualquer rali na minha vida. Alugámos outro carro e ganhámos logo o rali seguinte, em Castelo Branco, depois disso a equipa ajudou-me e fomos campeões da Promoção no ano de estreia. Obviamente que com o sucesso que eu estava a ter nos carros, abortei a minha carreira nas motos, onde fui sempre amador, não cheguei a profissional.

Esse background nas motos e no Enduro auxiliou a rápida adaptação aos carros e aos ralis?

Muito. Porque vários dos troços de rali que eu faço hoje em dia, eu fazia de moto na minha adolescência e juventude. Por exemplo, aprendi a conduzir na Serra da Cabreira, passei a minha infância e adolescência a andar de moto e de carro nessa zona, até porque temos uma casa de férias no Gerês e eu conhecia muito bem os troços da Cabreira. As motos são muito mais agressivas, obrigam-nos a ter uma leitura de terreno muito rápida, não temos notas, vamos sozinhos, temos que nos defender de tudo e resolver tudo sozinhos. Essa endurance das motos foi importantíssima. Quando nos meus primeiros ralis um colega vinha dizer-me que este ou aquele troço eram muito perigosos, os meus parâmetros de avaliação eram completamente desajustados. Porque quando eu passava num troço de moto a fundo, braço com braço com outro colega, sem rollbar, sem cintos, sem nada… para mim o perigo nos automóveis era uma coisa distante. Condições de aderência que outros achavam impraticáveis, era o normal nas provas de Enduro. Não vou dizer que os ralis eram mais fáceis, mas não foram um choque tão grande quando comecei.

Podes contar algum episódio ou momento de bastidores que te tenha marcado ao longo destes 20 anos?

É sempre difícil porque foram tantos, mas lembro-me, por exemplo, de chegar à gala anual de entrega de prémios da Citroën Sport, em Paris, e quando entro no auditório vejo que a imagem que estava projetada no palco era uma fotografia do meu Saxo Kit-Car na Serra da Cabreira atrás de dois cavalos! Num troço na Cabreira entrámos numa zona entre muros e apanhámos dois cavalos que estavam perdidos e que correram à nossa frente durante vários metros. A Citroën escolheu essa foto para mostrar naquela gala onde estavam milhares de pessoas de todo o mundo, para fazer a ligação com entre o Citroën 2CV e as corridas.

Outro episódio foi no Rali da Austrália de 2009, quando fomos campeões do Mundo pela primeira vez. Andámos o rali todo a lutar com um set-up errado e a tentar recuperar tempo. No penúltimo troço fizemos um pião numa direita sobre um topo e estivemos para ‘ficar’ numa árvore. Felizmente conseguimos voltar à estrada e à entrada para o último troço estávamos no quinto lugar, quando precisávamos de ser quartos para garantir o título. Lembro-me que esse último troço começava numa descida e antes do arranque estávamos logo atrás do Toshi Arai e reparo que ele tem a marcha atrás engrenada. Ele não se apercebe e quando liga o motor noto que o carro dele dá um grande solavanco. Entretanto mete primeira e arranca para o troço e pouco depois arrancámos nós; cinco quilómetros depois vejo o Arai parado, depois vim a saber que a caixa tinha partido. Acabámos o rali no quarto lugar e fomos campeões do Mundo, na penúltima prova do campeonato. Às vezes também é preciso a estrelinha da sorte.

Há pouco falaste de pilotos lançados pelo Pirelli Star Driver, como Tanak, Mikkelsen, Paddon e outros. Em Portugal, nota-se que há pouco jovens pilotos a surgirem nos ralis e ainda menos aqueles que têm reais condições de fazer carreira. Com toda a experiência que acumulaste em Portugal e no Mundial, vês-te um dia no papel de mentor de um projeto de formação e lançamento de jovens pilotos?

Acredito que se a Racing Factory levar avante a sua ideologia, talvez um dia eu possa ser conselheiro da equipa numa estrutura deste género. Sei que o Aloísio Monteiro tem esse objetivo para o futuro. Por outro lado, parece-me improvável eu trabalhar diretamente com um pai ou um investidor num jovem piloto, porque noto que de uma forma geral os pais acham sempre que os seus filhos são os melhores do mundo e vão logo ser campeões.

É um problema quando se acha que o dinheiro compra tudo e que o piloto não precisa de trabalhar a sério e subir os patamares todos.

Mas essa mentalidade não existia quando começaste?

A diferença é que eu nunca pedi um euro ao meu pai para fazer corridas. Eu tive que subir os patamares todos a pulso, tive que ganhar em todas as categorias. No início da minha carreira tudo tinha que correr muito bem e isso obrigou-me a dar valor ao pouco que tinha e a maximizar o que tinha. Na Promoção, eu fui ao primeiro rali em Fafe com um carro que estava parado numa oficina há anos, com pneus usados e com defeito que me foram dados porque iam para o lixo, o carro foi arranjado à noite por um amigo meu eletricista, fui com fatos emprestados, capacetes emprestados, os pais de amigos meus deram-nos o dinheiro para pagar as despesas.

Fui construindo a minha carreira assim e nunca tive o meu pai a investir dinheiro nas minhas corridas, ele não me comprou o melhor carro do plantel quando eu não tinha as bases de evolução. Isso é como acharmos que o nosso filho é muito inteligente e por isso não precisa de fazer a primária e o ciclo, vamos metê-lo já direto na faculdade.

Até podemos achar que o nosso filho vai ser médico mas não vamos metê-lo na Faculdade de Medicina aos seis anos. O problema é esta cultura que existe, principalmente no sul da Europa. Se calhar os melhores pilotos que tivemos do norte da Europa, da Suécia, Finlândia ou Noruega, começaram a aprender nos lagos gelados e nas florestas com carros de 500 euros. E foi lá que andaram anos e anos a desenvolver as suas capacidades. Antes do dinheiro, é preciso ter a mentalidade certa.

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