Aventura acima do Dakar

Por a 25 Janeiro 2012 12:27

Quando aterrámos em Lima, íamos preparados para tudo. Mesmo tudo! Nunca tínhamos estado no Peru e todas as indicações que nos haviam dado faziam-nos desconfiar. Ainda bem, porque quando estamos preparados para o pior e nos sai o melhor, é uma alegria. Foi o caso. De tal modo que mudámos radicalmente os nossos planos e convertemos a tradicional expedição pelos cenários do próximo Rali Dakar numa exploração das novidades que a prova traz. E pelos ‘arredores’, percorrendo alguns milhares de quilómetros ao volante de um Kia Sorento 4WD através de ambientes tão distintos como as pistas do deserto na costa do Pacífico, com impressionantes cordões de dunas, os caminhos do Andes, subindo frequentemente acima das nuvens, e os trilhos da Amazónia, rodeados por um arvoredo impenetrável.

Deserto, areia e o pacífico

Aventura acima do Dakar

Adicionar o Peru ao programa do Dakar renova profundamente os atrativos da prova, quebrando uma certa rotina instalada após três anos decorridos no mesmo formato. Mas o mais interessante não é oferecer um novo país e ponto de chegada ao rali. É, acima de tudo, poder garantir maior competitividade e interesse desportivo à fase final, coisa que nos anos anteriores não foi fácil, pois o retorno a Buenos Aires implicava um desfecho mais suave, devido às características do terreno. Desta feita, não serão as retas intermináveis das pampas, mas sim o deserto, areia e o oceano Pacífico a marcar o final da prova…

Como dizia São Tomé, “ver para crer”. Há muitos anos que o fazemos, partindo antes do Dakar em busca dos cenários que cada edição reserva. E se a regra é manter o percurso secreto até ao momento em que os concorrentes avançam, a necessidade de assegurar a maior segurança obriga a organização a alertar com alguma antecedência as comunidades locais para a passagem do rali. Portanto, com um pouco de paciência e muitas perguntas, assim que apanhamos a ponta da meada torna-se fácil desenrolar o resto.

Quando partimos de Lima, fomos diretos a Pisco, pequena cidade que se tornou famosa pelos seus vinhedos, que dão origem a uma aguardente que é um símbolo peruano. Precisamente o Pisco. A última etapa do rali ligou Pisco a Lima, com as últimas dunas da prova, que foram uma tormenta. Bem mais desafiante e, sobretudo, linda, foi a penúltima etapa, entre Nazca e Pisco. Neste caso, os concorrentes tiveram pela frente um setor seletivo de 275 km cheio de armadilhas.

‘Perdemos’ dois dias neste setor, explorando pistas e passagens de areia no meio do deserto, parte dos quais junto à maior reserva natural costeira do Peru, onde nos encantámos a espreitar colónias de leões marinhos e pinguins de Humbolt nas falésias, ou simplesmente a conversar com um velho casal, numa pequena aldeia de pescadores, na ponta da Baia da Independência, onde é raro aparecer algum estrangeiro, especialmente um que consiga comunicar com eles. Também nós durante algumas horas não vimos ninguém, o que é simultaneamente excitante e tranquilizante.

Aventura acima do Dakar

Por um lado, a sensação de risco, de estarmos entregues a nós mesmos num ambiente como o deserto, rodeados por enormes dunas, faz disparar doses imensas de adrenalina; ao contrário das equipas ao rali, nestas circunstâncias, se algo nos acontece, não contamos com um fortíssimo plano de segurança. Por outro, o silêncio, a imensidão dos grandes espaços e, claro, a própria beleza do deserto, transmite-nos uma enorme sensação de tranquilidade, que nos fez passar horas e horas a deambular por estas paragens, delimitadas pela famosa Carretera Panamericana, a mítica estrada traçada desde o Alasca à Terra do Fogo, e pelo oceano Pacífico.

Não desafiámos a sorte que esteve reservada aos concorrentes do rali. Enquanto esses foram atirados às dunas, enormes, nós fomos mais criteriosos a escolher o terreno que levámos o Kia Sorento a pisar, pois embora se tratasse da versão 4WD, ainda para mais com caixa de velocidades automática, mais eficaz nas situações de todo-o-terreno extremo, optámos por nos divertirmos com a navegação, pura navegação no deserto, imaginando inúmeras rotas possíveis. Todas com saída, ainda que algumas tenham parecido labirintos.

Depois de muito deserto, chegámos a Nazca, uma referência no mapa do Peru, que não se deve à povoação, mas sim às linhas desenhadas num planalto alguns quilómetros a norte, enormes desenhos que só se vêm do céu e que ninguém sabe verdadeiramente explicar, admitindo todas as teorias, como a de serem sinais para os extraterrestres. E estão desenhados há vários séculos… Ali, de costas para o deserto, olhámos para os Andes. O rali não foi até lá. Nós fomos.

Lima doce ou amarga?

Depois de três edições concentrado na Argentina e no Chile, começando e terminando sempre em Buenos Aires, o próximo Rali Dakar alargou o seu raio de ação a um terceiro país sul americano, acrescentando o carimbo do Peru ao passaporte dos 465 participantes que a 1 de janeiro de 2012 alinharam à partida. O arranque foi uma das novidades, ao deslocar-se para Mar del Plata, cidade costeira 400 km ao sul da capital argentina, mas verdadeiramente inédito foi o final, com quatro etapas no Perú, onde foram percorridos os derradeiros 1833 km. A contagem esgotou-se na Plaza de Armas, bem no centro de Lima, imponente e carregado de história, onde em 1821 foi declarada a independência, e cujos edifícios monumentais mereceram a atenção da Unesco, que declarou esta parte da capital peruana Património da Humanidade.

Aventura acima do Dakar

África ou América do Sul?

Quanto melhor conhecemos as paragens sul americanas por onde o Rali Dakar se desenvolve desde há quatro anos, mais somos forçados a concordar que a saída de África fez perder, determinantemente, a essência de aventura de que esta prova foi tão forte. Para recuperar essa aventura perdida há que ir sozinho, de preferência antes do rali, como fizemos e contamos-lhe as aventuras que vivemos à margem dos cenários do rali, por lugares onde a prova jamais poderá ir, devido a uma limitação incontornável: a altitude das passagens pelos Andes e pelo altiplano, os grandes planaltos no cimo da mais extensa cadeia montanhosa, que percorre toda a América do Sul, desde a Terra do Fogo até à selva de Darién, no limite territorial entre a Colômbia e o Panamá.

Falta de ar

É comum dizer-se que ficamos com falta de ar perante paisagens fantásticas. Nesta expedição pudemos sentir isso tantas vezes que lhes perdemos a conta… Em 17 dias, estivemos mais de metade do tempo acima dos 3000 metros de altitude, em paragens onde já nada respira bem: nem nós, nem as máquinas, que chegam a perder mais de metade do rendimento dos seus motores. Uma e outras coisas tornam impossível levar uma competição como o Rali Dakar tão alto, sob o risco de boa parte dos participantes e das suas viaturas colapsarem. Isso seria uma loucura, mas para nós foi isso mesmo…

Começámos a viagem ao nível do mar, com altitude zero, e subimos até aos 4768, onde raras vezes nos cruzámos com qualquer outro veículo, para além de não termos visto praticamente ninguém. Somente alguns pastores, com os seus rebanhos de ovelhas, alpacas, vicunhas e lamas, normalmente acompanhados por uns burros, vacas e um par de cães, que não eram para brincadeiras; um destes cães conseguiu acompanhar o Kia Sorento durante 500 metros a 50 km/h (!!!) numa pista a cerca de 4600 metros de altitude, onde nenhum de nós conseguiria sequer dar 50 passos sem cair para o lado.

Nestas pistas de grande altitude sentimos um isolamento ainda maior do que nas do deserto, próximo da costa do Pacífico. Uma destas jornadas foi particularmente marcante, aquela em que alcançámos o ponto mais elevado: Ligávamos Cuzco a Arequipa e conduzíamos há já algumas horas, por caminhos muito isolados numa quota sempre acima dos 4000 metros de altitude quando se desencadeou uma tempestade; olhávamos para um lado e os vales estavam todos iluminados pelo sol, enquanto que do lado contrário o céu estava coberto de nuvens negras; era para esse lado que nos dirigíamos e não tardou muito a que entrássemos dentro da tormenta, desfilando por entre imagens dignas do filme mais assustador, onde não faltavam constantes relâmpagos, seguidos por sonoros trovões, que ecoavam entre as montanhas como se fossem poderosas bombas a explodir. A chuva estava à nossa frente, pois começámos a percorrer caminhos molhados sem que, no entanto, caísse uma gota. Notava-se que tinha arrefecido. O termómetro do Kia indicava valores cada vez mais próximos do zero. De repente, começou a chover… pedras de gelo! Com tanta intensidade que tivemos medo que os vidros não aguentassem o impacto. O que seguiu foi ainda mais surpreendente: nevou!

Foi uma sorte enorme termos conseguido manter um ritmo que permitiu adiantar-nos à tempestade. Quando chegámos a uma pista principal e começámos a descer gradualmente até Arequipa, sentimo-nos estranhamente contentes por encontrar trânsito e rolar no pó dos camiões e autocarros que cruzámos. Havia passado algumas horas em que quase nem falámos, sempre à espera do que a próxima curva nos revelaria, com alguma ansiedade. Por vezes, sentíamos o Sorento a escorregar, já nos limites da aderência dos pneus, completamente cobertos por uma camada de lama. Claro que o rali nunca poderia andar por estas paragens no cimo dos Andes…

Descer à Amazónia

Aventura acima do Dakar

Nem tão pouco nos parece que o rali possa alguma vez descer até à Amazónia. Nós, sim, pudemos e isso implicou duas jornadas de viagem que jamais esqueceremos. Foi numa das diversas rondas que fizemos a partir de Cuzco. Começámos por rolar num estradão de montanha rápido, bem recortado e de excelente piso, com precipícios nada recomendáveis para quem sofra de vertigens. Imaginámos conduzir ali com um WRC. Seria preciso também um coração muito forte… Andávamos acima das nuvens e de repente entrámos nelas. Quando saímos, parecia estarmos num conto de fadas, pois a paisagem tinha mudado radicalmente: o ambiente castanho e árido que nos envolvia deu lugar a um verde luxuriante, com floresta densa.

Entrávamos na selva e a pista, sempre com terra húmida, serpenteava pelas encostas, descendo cada vez mais ao encontro do rio Alto Madre de Dios – que integra a bacia hidrográfica do Amazonas. Sempre acompanhado por precipícios, alguns tão profundos que nem víamos o fundo, o caminho parecia interminável. Sabíamos que esta incursão até à Amazónia peruana implicava correr dois riscos: o de cruzar-nos com camiões em sentido contrário, sem que houvesse espaço para ambos, e o de ocorrer uma derrocada, que deixasse a pista interrompida.

Se em condições normais os pesados já são prioritários, neste caso ainda o são mais, pois a regra ali é que o veículo que vai a descer (ou o mais leve, se for a subir) é que tem de fazer marcha atrás, encostando-se ao abismo para dar passagem ao que se cruza. Quanto às derrocadas, são frequentes durante a temporada das chuvas, desde dezembro; há um ano, numa situação destas, a zona de Pilcopata, para onde nos deslocámos, ficou isolada durante 25 dias, o que queria dizer que só sairíamos de lá quando o Rali Dakar estivesse a terminar.

Em face disto, não temos dúvidas que a sorte nos acompanhou. Praticamente não nos cruzámos com nenhum veículo e só em duas ocasiões tivemos de recuar uns metros, poucos. E uma sessão de fotos sobre uma ponte rodeada pela selva atrasou-nos o suficiente para não sermos apanhados por um desprendimento de terras que em minutos abriu como que um corta-fogo na montanha. O ruído da terra a deslizar montanha abaixo, arrastando um troço de floresta, perdurará para sempre na nossa memória… Isso ocorreu a dois quilómetros do ponto onde está sempre de plantão uma máquina para acudir a estas coisas, pelo que numa hora o caminho ficou desimpedido e lá seguimos.

Depois de tudo isto, quando no último dia em todo-o-terreno, já no deserto, próximo de Pisco, nos vimos envolvidos numa tempestade de areia que nos fez conduzir algum tempo às cegas, até nos rimos. E o GPS não nos deixou cair ao mar…

Aventura a três

Para esta aventura a três, juntámos um Kia Sorento 4WD com zero quilómetros e um par de especialistas em combinar o todo-o-terreno com viagens pelos lugares mais recônditos: Alexandre Correia, 47 anos, 31 deles vividos como jornalista (em 1982 já estava na AutoSport) e Paulo Calisto, 40 anos, metade dos quais a fotografar (em 1990 já estava na Volante), sobretudo estas expedições. Neste caso, o ‘iniciado’ foi mesmo o Sorento, que foi sujeito às praxes mais dolorosas, mas que se aguentou como um veterano. De tal modo que Alexandre e Paulo não têm memória de uma viagem como esta, em que nem um pneu furado tiveram de mudar. Mas rezaram muito por isso. Ai se rezaram…

Texto: Alexandre Correia, Peru

Fotos: Paulo Calisto

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