Porque não há um ‘Miguel Oliveira’ na F1?

Por a 27 Agosto 2020 10:07

Para orgulho de todos nós, no passado fim-de-semana, Miguel Oliveira conquistou o maior feito do desporto motorizado português – vencer um Grande Prémio de MotoGP. Pela primeira vez, um piloto luso subiu ao degrau mais alto de uma corrida da categoria máxima da sua disciplina. Na Fórmula 1 o máximo que pudemos celebrar foi um pódio em circunstâncias muito especiais… Mas será por falta de talento nas quatro rodas?

Muitos esperavam que Oliveira oferecesse o resultado com que nos brindou no Grande Prémio da Estíria, mas foram muitos os surpreendidos com a subida ao degrau mais alto do pódio do português, que se espera não ser o culminar de uma carreira, mas antes a ascensão a um patamar que o poderá levar a feitos ainda maiores – Campeão Mundial, por exemplo.

Este sucesso do piloto da KTM Tech 3 é um dos mais recentes eventos que tem deixado o desporto motorizado português em alta – vamos receber um Grande Prémio de Fórmula 1, um Grande Prémio de MotoGP, António Félix da Costa sagrou-se Campeão da Fórmula E e Miguel Oliveira venceu um Grande Prémio de MotoGP.

Curiosamente, Portugal tem mais tradição nas quatro rodas que nas duas, tendo sido inúmeros os pilotos de automobilismo, sobretudo de pista, a tentar a sua sorte fora de portas, ao passo que no motociclismo, para além de Miguel Oliveira, tivemos Miguel Praia e pouco mais, sendo, por isso, o feito do jovem do Pragal ainda maior, uma vez que foi ele quem teve de desbravar caminho até chegar ao topo.

Se existe maior tradição no automobilismo, qual o motivo para que Portugal tenha tido apenas um pódio no Campeonato Mundial de Fórmula 1 e mesmo esse em circunstâncias muito especiais?

Bem, falta de talento não é, Pedro Lamy, Álvaro Parente e António Félix da Costa mostraram mais que competência para singrar no exigente mundo da categoria máxima do desporto automóvel, digladiando-se e batendo até pilotos com provas dadas no mundo dos Grandes Prémios, portanto, a questão terá de ser outra.

Antes de mais, a estrutura de acesso ao MotoGP é muito mais clara, apesar do recente esforço para criar um caminho efetivo para ascender à Fórmula 1.

Nas duas rodas, depois dos campeonatos nacionais para alcançar o topo do motociclismo a estrada é evidente – Moto3, Moto2 e, então, MotoGP. Nas quatro rodas, o caminho é muito menos esclarecido…

Presentemente, em Portugal não existe sequer uma categoria que albergue os jovens pilotos oriundos do karting, tendo que, se quiserem realizar uma carreira que os leve até às portas da Fórmula 1, deixar o país ainda com tenra idade.

A partir daí existe uma multiplicidade enorme de categorias e campeonatos desde à Fórmula 4, com diversos campeonatos nacionais, até à Fórmula Renault 2.0, existindo ainda a Fórmula Regional – a sucessora da antiga Fórmula 3.

Paralelamente, existe ainda a atual Fórmula 3, que acompanha o circo da Fórmula 1, desembocando na Fórmula 2, sucessora da GP2, que continua a ser a antecâmara dos Grandes Prémios.

Esta é uma das dificuldades que os pilotos das quatro rodas têm relativamente aos das duas, estando estes desde tenra idade sob o olhar atento das equipas de MotoGP, ao passo que os jovens aspirantes do automobilismo para ter o mesmo nível de atenção têm de rumar de imediato à Fórmula 3. Mas com dinheiro tudo se consegue e aqui existe outra diferença abissal entre as duas categorias.

Segundo o que pudemos apurar, uma temporada de Moto3 custa algo que ronda os 250 mil euros, ao passo que uma de Moto2 não ultrapassará os 500 mil.

Se partirmos do princípio que Miguel Oliveira teve de pagar todas as temporadas nas categorias de acesso à MotoGP, algo que não é um facto, chegaríamos a um valor de cerca de 2,5 milhões de euros – militou quatro épocas na Moto3 e três na Moto2 – valores elevados sem dúvida, mas que não estarão fora do alcance de algumas empresas portuguesas.

No mundo do automobilismo os valores são assustadoramente distintos…

Uma temporada na Fórmula 4 não custa menos de 200 mil euros, com tudo a correr bem. Repare que ainda nem sequer chegámos ao circo que acompanha a Fórmula 1 (Fórmula 3 e Fórmula 2) e um piloto de quatro rodas já paga quase tanto como o seu congénere das duas rodas que está a competir numa competição de acesso à MotoGP.

Vamos supor que, para sedimentar bem o seu salto do mundo dos karts para os automóveis, o nosso piloto das quatros rodas passa duas temporadas na Fórmula 4 – só aqui, já temos 400 mil euros.

Vamos agora dar o salto para a Fórmula 3 e esperar que o nosso jovem lobo dê nas vistas frente aos olheiros das equipas de Fórmula 1.

Uma temporada nesta categoria não custa menos de 800 mil euros, mas poderá ultrapassar um milhão. Mas vamos partir do princípio de que o nosso piloto é um fora de série e ganha o campeonato à primeira e sobe à Fórmula 2.

Para isso terá de encontrar cerca de dois milhões de euros (em patrocínios, claro) para continuar a sua senda ganhadora e bater-se por mais um título. No final do ano tem mais um campeonato no bolso e está a bater à porta da Fórmula 1, mas, entretanto, já gastou, no mínimo, 3,2 milhões de euros em quatro anos. Com tudo a correr na perfeição…

Recorde-se que as sete épocas de Miguel Oliveira nas categorias de promoção tiveram um custo de cerca de 2,5 milhões de euros – uma diferença abissal. Mas o nosso “next big thing” subiu fulgurantemente à Fórmula 1 após quatro anos nos automóveis.

Presentemente, na categoria máxima do desporto automóvel uma temporada custa entre 100 e 400 milhões de euros, é claro que nenhum piloto paga valores destes por um lugar na Fórmula 1, mas são conhecidos os casos de alguns jovens que chegam ao mundo dos Grandes Prémios devido a massivos investimentos da sua família em equipas.

Mas vamos supor que o nosso piloto tinha impressionado uma equipa de Fórmula 1, tendo sido colocado por esta numa estrutura da sua confiança para ver o que realmente vale. Hoje em dia, teria de esperar por um lugar na Mercedes, na Red Bull ou até na Ferrari para pensar em pódios, quanto mais em vitórias.

Do lado do motociclismo, uma equipa que pretenda ter a possibilidade de lutar por vitórias com uma moto-cliente gasta cerca de quinze milhões de euros por temporada – 15% daquilo que uma estrutura de Fórmula 1 despende para sonhar com uma ida aos pontos ocasional.

São valores dispares e difíceis de comportar para o nosso país, que não tem a dimensão, presentemente, para colocar um piloto na categoria máxima do desporto automóvel.

Depois de Tiago Monteiro, estivemos muito perto de ver Álvaro Parente, primeiro, e depois António Félix da Costa no mundo dos Grandes Prémios de Fórmula 1.

O piloto do Porto viu desaparecer os apoios que lhe poderiam permitir alcançar o “Santo Graal”, ao passo que no caso do jovem de Cascais viu a Red Bull colocá-lo de lado para promover Danill Kvyat à Toro Rosso, uma decisão surpreendente, mas que a estrutura austríaca tinha legitimidade para tomar…

Portanto, se existe talento em Portugal para que possamos ter um piloto a vencer um Grande Prémio de Fórmula 1, claro que sim, os dois nomes mencionados são prova disso, mas não existe no nosso país a capacidade financeira para que, a curto/médio prazo, possamos ouvir “A Portuguesa” numa cerimónia de pódio da categoria máxima do automobilismo e essa é a triste realidade.

Mas basta olhar para o que Filipe Albuquerque e António Félix da Costa fizeram e estão a fazer este ano, para perceber que em nada somos diferentes no talento. Resta-nos sonhar e agradecer o Grande Prémio de Portugal que este ano se realiza no Autódromo Internacional do Algarve.

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afmota
afmota
3 anos atrás

Se pudermos fazer uma comparação entre as fileiras Red Bull da F1 e da Motogp, o que podemos concluir é que o Miguel é melhor piloto de motas que o Da Costa é de carros.

Pity
Pity
Reply to  afmota
3 anos atrás

Não tem comparação, são competições muito diferentes, até porque nas motas, penso eu, que não acompanho como o faço com a F1, não há um “Dr. Marko” envolvido… e não estou a culpar o homem de nada, apenas acho que nas motos se preocupam mais com o talento.puro do que com tudo o resto.

afmota
afmota
Reply to  Pity
3 anos atrás

Uma coisa é certa, o Miguel partiu muito abaixo dos outros ao nível económico e chegou muito acima no nível desportivo.
Num mar de tubarões espanhóis e italianos sobreviveu sozinho dependendo apenas do seu talento.

Last edited 3 anos atrás by Andre Mota
Pity
Pity
Reply to  afmota
3 anos atrás

Exacto. Na F1 isso seria muito difícil, para não dizer impossível.

Pity
Pity
3 anos atrás

É um pormenor de somenos importância mas, afinal, o Miguel Oliveira é do Pragal, ou da Charneca? Sempre li que era da Charneca. De qualquer forma, é do Concelho de Almada, o meu Concelho, o que me deixa muito orgulhosa.

r. petersson
r. petersson
Reply to  Pity
3 anos atrás

Excelente artigo. O AFC e o Alvaro Parente e o Albuquerque claro que tinham valor para estarem lá ou terem passado por la. Basta ver quem anda la . Na F1 actualmente tirando o Hamilton Verstappen que são super pilotos temos outros pilotos rapidíssimos como o Norris , sainz , Leclerc , Botas e Pérez, Ocon ,Ricciardo e um dos pilotos da Williams que não me lembro do nome! Não incluo o Vettel porque está em queda e realmente nunca foi um fora de série apesar de todos os títulos mundiais. Os outros são pilotos iguais a centenas deles que… Ler mais »

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