Fórmula 1: O ‘grosso casino’ que foi a Ferrari em 2019
Recordo-me de um antigo responsável de imprensa da Lancia Martini World Rally Team que, com a sua voz grossa e grave como só um italiano consegue ter, dizia “grosso casino” quando a “caldeirada” era grande na equipa. Muitos anos depois, faço minhas as palavras do italiano após ver o que está a acontecer com a Ferrari… “grosso casino”!
Foi rotundo o falhanço da Ferrari e dos seus pilotos. A saída de Maurizio Arrivabene e a promoção de Mattia Binotto a líder técnico e desportivo – recuperando uma forma de estar dos anos 60 com Mauro Forghieri – fez muito mal à Scuderia e a maré negativa da Ferrari desaguou na perda dos dois títulos, ficar fora do pódio do campeonato de pilotos e ficar em segundo dos construtores porque Vettel e Leclerc conseguiram ser mais consistentes, mesmo assim, que Verstappen e Gasly/Albon.
Quando o piloto principal tropeça nos atacadores vezes demais e o mais jovem mostra talento mas é fustigado pelo vento do azar e castigado pela sua irreverência e inexperiência, fica difícil a uma equipa enleada nas suas próprias indecisões lutar pelo que quer que seja. E com Binotto a dizer que, afinal, o erro vem de 2018 e do carro que fizeram em 2019, algo vai mal pelo reino da casa de Maranello.
Dizia o Tiririca “que pior não fica” e pelo visto em Interlagos o palhaço brasileiro tinha razão, pois na Ferrari pior que isto não deve ser possível, depois da auto eliminação de Sebastian Vettel e Charles Leclerc devido a uma colisão. Estava a assistir à prova e quando vi o embate entre os dois veio-me à memória o tempo de Jean Todt na Ferrari. Isto aconteceria? Nunca! O pequeno Napoleão, hoje presidente da FIA, não daria veleidades a ninguém e se alguém colocasse em causa a sua liderança e a de Michael Schumacher, era colocado no seu lugar e, caso fosse necessário, no ano seguinte era-lhe apresentada a porta de saída.
Mas, nessa época, os italianos mandavam pouco na Ferrari: Todt é francês, Ross Brawn é britânico, Rory Byrne, também, e os principais responsáveis abaixo da cadeia de comando mesclavam estrangeiros com italianos. Até 2006, a Ferrari foi muito competitiva, mas os italianos começaram a dominar, novamente, a Scuderia e com as saídas de Rory Byrne, Jean Todt e Ross Brawn a Ferrari nunca mais voltou às vitórias, sendo Kimi Räikkönen o último piloto a conquistar um título de pilotos para a equipa de Maranello, que ainda levou para casa o cetro de construtores de 2008. Passaram pelo comando da Ferrari homens como Stefano Domenicali, Maurizio Arrivabene e hoje temos Mattia Binotto, um competente engenheiro que tem de vestir a pele de patrão da mítica equipa italiana. Uma estratégia antiga de Louis Camilieri, o novo CEO da Ferrari, que lembrou os tempos idos de Mauro Forghieri, engenheiro tão ou mais brilhante que Binotto, mas muito mais político que o atual responsável da Scuderia Ferrari. E, por isso mesmo, a Ferrari tem navegado em mar revolto com uma embarcação que anda a meter água por todo o lado e transbordou no Brasil com o desentendimento entre Vettel e Leclerc.
INCIDENTE NORMAL
O que é mais curioso nisto tudo, é que o incidente entre Vettel e Leclerc não foi nada de extraordinário. Perguntem a Toto Wolff o que ele passou em 2016 entre Lewis Hamilton e Nico Rosberg, as dores de cabeça que teve com dois galos a lutarem pelo mesmo poleiro. Lembram as diabruras de Max Verstappen e Daniel Ricciardo? A questão empolou porque estamos a falar da Ferrari, porque estamos a falar de uma equipa que se cansou de dar tiros nos pés ao longo de 2019, porque estava em jogo o terceiro
lugar do campeonato de pilotos, enfim, porque é a Ferrari, a equipa que faz parte dos alicerces da Fórmula 1.
O que aconteceu foi uma deriva de Vettel e um toque em Leclerc, que teve repercussão gigantesca devido à eliminação de ambos os pilotos. Mas, a verdade, é que foi um incidente normal. O que fica deste incidente é poeira que o tempo soprará para a nuvem da memória.
O QUE VAI FAZER A FERRARI COM VETTEL?
Claro que Sebastian Vettel é um alvo fácil apesar dos seus quatro títulos consecutivos com a Red Bull. O alemão teria um lugar no “Hall of Fame” da Fórmula 1, mas a imagem que perdurará na mente de todos são os demasiados erros que comete e a incapacidade de resistir à pressão. O que sucedeu no Brasil pode ser visto de vários prismas, mas a conclusão é quase sempre a mesma: uma situação idiota, desapontante, inevitável, incompreensível. E não me custa nada pensar que no muro das boxes Mattia Binotto, mantendo aquela “poker face” habitual nele, tenha pensado “que estupidez” e que dentro dos carros os pilotos tenham considerado que a culpa era do outro. Equipas de Fórmula 1 com dois pilotos de topo quase nunca deram certo e sempre que temos dois “machos alfa” ambos lutam pela vitória e as coisas acabam sempre mal.
É verdade que das discussões e das quezílias foram surgindo resultados, mas desde a luta entre Lewis Hamilton e Fernando Alonso que não tínhamos um duo de pilotos que fizesse tanta faísca como Sebastian Vettel e Charles Leclerc.
E não menciono Hamilton e Alonso ao acaso, recuando até 2007. De um lado estava o espanhol, já muito experiente e confortável com o título mundial debaixo do braço, exigindo toda a atenção da equipa. No canto oposto estava um jovem com sangue na guelra, protegido desde há muito pela McLaren e impressionante na rapidez e na maturidade. Em 2019, temos de um lado um campeão muito experiente que necessita da equipa agrupada em seu redor, do outro um jovem leão carregado de qualidade e classe, que já deu mostras de até poder bater Hamilton.
Na época, em 2007, cedeu Alonso, hoje ainda não sabemos, mas, pelos sinais, Vettel pode conhecer o mesmo destino do espanhol. E digo isto porquê? Nenhum dos pilotos ganha com esta guerra entre os dois e o duplo abandono no Brasil teve como consequência um atraso significativo na luta pelo terceiro lugar do campeonato.
Mattia Binotto, oportunista, agarrou-se à espuma do caso e veio dizer que era a oportunidade de tratar deste assunto de uma vez por todas. Mas não poderia ter sido tudo evitado? Claro que sim!
ORDENS DE EQUIPA?
Analisando de forma fria o que se passou em Interlagos, estamos perante algo que poderia ter sido evitado. A ideia imediata é pensar que Mattia Binotto poderia ter dito a Vettel para deixar passar Leclerc, que estava na luta pelo terceiro lugar do campeonato. Mas desde a primeira corrida da temporada que Binotto tem dado ordens e todos recordam como o monegasco recebeu ordens para não atacar o alemão, como mais tarde foi o contrário, e como a Ferrari perdeu corridas na tentativa de deixar o jogo igual entre os seus dois pilotos. Portanto, o que sucedeu em Interlagos foi um acidente de corrida. Mas tem um óbvio culpado parido pela efervescência que tem estado a fermentar há muitas corridas. A minha opinião até pode ser polémica, mas é assim que vejo o que aconteceu no Brasil: depois de Vettel perceber que Leclerc estava mais rápido, começou a pedir mais motor, mas foi incapaz de evitar a ultrapassagem no final da reta da meta a cinco voltas do final. Acredito que dentro do capacete, Vettel tenha ficado verde de raiva por perder a posição para Leclerc. Livre de ordens, tudo fez para ficar perto do SF90 do monegasco e usar o DRS para recuperar a posição. A partir daqui, o incidente era inevitável: Vettel quis intimidar Leclerc e a coisa correu muito mal. Uma vez mais, a reposta óbvia a esta situação é dizer que seria facilmente ultrapassável com ordens de equipa favorecendo Leclerc, o melhor posicionado no campeonato. Mas Binotto não gosta de ordens de equipa e, sobretudo, lembra-se muito bem das ferozes críticas que a Ferrari sofreu nos anos em que beneficiou Schumacher, e das muitas críticas que foram apontadas a si por tentar gerir as provas dos seus dois pilotos. Agora, foi duramente criticado porque não deu ordens aos seus pilotos. É a famosa ideia “preso por ter cão e por não ter”.
VETTEL É UM PROBLEMA PARA A FERRARI
O alemão tem o mérito de ter reunido a Red Bull em seu redor e conquistado quatro títulos mundiais, mas Sebastian Vettel tem uma enorme dificuldade em lidar com a pressão. Olhemos para o seu historial neste particular e recordamos incidentes com Hamilton em Monza, com Verstappen no Japão, o toque lateral com Hamilton no Azerbaijão e, recordo, ainda, a única vez que Helmut Marko “puxou as orelhas” a Vettel, num incidente tão ou mais idiota que o do Brasil, quando acertou sem necessidade no carro do seu companheiro de equipa, Mark Webber.
Ou seja, Vettel não consegue ganhar nada numa equipa sempre efervescente e mostra fragilidades que o deixam exposto ao talento de Leclerc, despoletando situações como a sucedida no Brasil, que acabam a deixar à mostra o pior de Vettel. E todos os erros até agora cometidos deixam claro que o alemão não tem estofo mental para ganhar com
a Ferrari. Nem sequer para ser o primeiro piloto da casa de Maranello.
Sebastian Vettel acredita que sendo quatro vezes campeão de Fórmula 1 é maior que a Ferrari e este ano deu provas de não gostar muito de respeitar ordens de equipa, agindo muitas vezes no seu próprio interesse e não pensando na estrutura que representa. O que sucedeu no Brasil é uma ilustração clara daquilo que acabo de dizer.
Mas quem conhece a Fórmula 1 sabe que isso não é surpresa nenhuma, pois na Red Bull o alemão já era assim: frio, cruel e egocentrista, ajudado por Helmut Marko, que lhe deu todo o apoio da equipa. A grande diferença é que o alemão era mais jovem e muito protegido pela Red Bull, o carro era muito melhor que os restantes e ele não tinha nenhuma concorrência. Se recordarem de forma clara, Vettel esmagava os adversários, mas raramente andava em luta com eles.
A Ferrari é muito diferente e o alemão é, agora, um fardo para a equipa italiana. Nunca Vettel teve o conforto de ser, sem discussão, o primeiro piloto, desde que chegou a Maranello. Tentou a carta da sedução, aprendendo italiano, mas tal não foi suficiente mesmo com um Kimi Räikkönen que se estava a marimbar para Vettel, a Ferrari ou o que fosse. Mas, lá está, quando o finlandês se empenhava e pressionava, Vettel falhava clamorosamente, como se percebeu em 2018 quando a Ferrari e Vettel perderam um título que era deles. Contas feitas, Sebastian Vettel tem como calcanhar de Aquiles a sua incapacidade de ganhar um duelo face a pilotos da sua igualha como Lewis Hamilton (Monza 2018 foi uma idiotice), Max Verstappen (desentendimento no Japão foi desnecessário) e Ricciardo e, agora, contra Leclerc que lhe tem, literalmente, “moído” o juízo
com pole positions e vitórias arrancadas no braço, como a de Monza face a Lewis Hamilton.
Sendo claro que na luta roda com roda, Sebastian Vettel é fraco e psicologicamente não tem o arcaboiço necessário, numa equipa, também ela, esquizofrénica, que não lhe dá a prioridade absoluta, o alemão é, agora, um problema para a Ferrari.
Porque digo isto? Primeiro, porque Charles Leclerc já deu mostras de ser forte na luta roda com roda e também psicologicamente, tendo apenas que amadurecer mais um pouco e ser menos duro consigo mesmo. Depois, porque mantendo Leclerc na equipa, Vettel verá a “pedra no sapato” transformar- se num “pedregulho no sapato”.
Finalmente, o seu raio de ação será cada vez mais pequeno e a influência para determinar o rumo como o carro será feito diminuta. Finalmente, Lewis Hamilton está a negociar a extensão de contrato com a Mercedes e parir um novo contrato não está a ser fácil.
As exigências financeiras só a Ferrari consegue satisfazer e o britânico, por muitas juras de amor que faça à Mercedes, sabe que conquistar um título com a Ferrari seria dar ao seu palmarés uma chancela que o deixará no topo dos melhores pilotos de sempre da Fórmula 1.
E não tenho dúvidas que não rubricando um contrato com a Mercedes, a Ferrari não quererá saber de Vettel ou Leclerc, dará tudo a Hamilton.
Enfim, o que aconteceu no Brasil deixa claro que Vettel e Leclerc não têm aquilo que é necessário para oferecer o mesmo que Hamilton e Bottas, por exemplo, oferecem à Mercedes. Não faço a mínima ideia do que Mattia Binotto disse a Sebastian Vettel e a Charles Leclerc, mas o italiano tem de deixar-se de tibiezas e de “paninhos quentes” e decidir quem deverá ser o rival de Hamilton em 2020. Porque se tudo ficar como até agora, Vettel vai voltar a errar, vai voltar a desprezar ordens de equipa e a temporada de 2020 começa, já, com o pé esquerdo.
Até porque a relação entre o alemão e o monegasco está a descer a níveis pouco recomendáveis. Portanto, a pressão está toda nas costas de Binotto e, sobretudo, de Vettel, já que Leclerc sabe que é um protegido da casa de Maranello. Hamilton está ali ao virar da esquina e ou o alemão faz alguma coisa, ou o seu futuro na Ferrari acaba em 2020. Quanto à Ferrari, Mattia Binotto tem que se desfazer dos punhos de renda e indicar quem será o líder da equipa em 2020. Se assim não for, tenho de recordar uma vez mais o italiano que citei no início: a Ferrari será um “grosso casino”!
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