Circuito do Monsanto/Montes Claros: dias de Glória em Lisboa

Por a 3 Fevereiro 2024 13:11

Não é de todo estranho que as primeiras provas automobilísticas disputadas em Portugal estivessem associadas à cidade de Lisboa e arredores. Afinal de contas, num país pouco urbanizado e economicamente polarizado entre Porto e Lisboa, com grande vantagem desta por ser a capital política, este cenário era o mais plausível. No entanto, depois da II Guerra, foi no Norte que os circuitos voltaram em força, e só em 1953 a capital teve o seu circuito, Monsanto, que ficaria para sempre gravado na história.

Os alvores do século XX trouxeram a competição automóvel a Portugal, com algum atraso relativamente aos seus congéneres europeus, situação mais do que compreensível devido à periferia do nosso país, mas também à crise económica quase permanente vivida nas últimas décadas da Monarquia e na falta de rede viária que tornasse possível as competições entre cidades, como era então moda na Europa, desde o Paris-Rouen em 1894. Foi em 1902, sob a égide do recém-fundado Real Automóvel Club de Portugal, que se realizou a primeira competição, o Figueira da Foz-Lisboa, vencida por Giuseppe Bordino, ao volante do Fiat do Infante D. Afonso. Depois disso, as competições automóveis foram pontuais e organizadas maioritariamente nos arredores de Lisboa, destacando-se a Rampa da Pimenteira, disputada em 1910 na estrada da Cruz das Oliveiras, junto à Serra de Monsanto. Ironicamente, com a Revolução de 5 de Outubro de 1910, esta foi a última prova organizada sob a égide do Real Club.

CAMINHO ATÉ MONSANTO

A instabilidade gerada pelo golpe republicano e pela cisão intra partidária do Partido Republicano Português pouco depois da implantação do novo regime travou naturalmente o desporto automóvel, desde sempre associado às elites e à prosperidade económica. Além disso, Lisboa, como epicentro político do país, estava varrida por vagas de agitação política e social, por isso a primeira prova automobilística após a Revolução disputou-se em 1912, no Porto. A Lisboa, a competição regressou apenas em 1913 para nova edição da Rampa da Pimenteira, que não se traduziu num grande sucesso. Depois, veio a I Guerra Mundial e mais um intenso período de agitação sócio política e de crise económica, que marcou quase todos os anos 20, assistindo-se mesmo assim à terceira e última edição da Rampa da Pimenteira em 1922 – que marcou a primeira vez que um Bugatti competiu em Portugal – e da Rampa da Estrada da Cruz das Oliveiras nesse mesmo ano. Lentamente, a competição foi-se alargando, embora mais centrada em rampas e quilómetros lançados do que em circuitos, e este foi o panorama que se manteve até ao golpe militar de 28 de Maio de 1926. A gradual estabilização política e económica, que resultaria na aprovação da Constituição de 1933 que marca o início do Estado Novo, permitiu também que se estabelecessem condições que fomentaram um rapidíssimo crescimento do automobilismo nacional e crescente diversificação das disciplinas, entrando-se de vez na era dos circuitos urbanos. Se bem que esta série pretenda analisar apenas os circuitos do pós-guerra, não deixa de ser interessante referir que na região de Lisboa se disputaram diversas provas, como o Circuito do Campo Grande, do Parque Eduardo VII e, depois, o Circuito do Estoril, em torno do parque daquela estância turística. No entanto, esta era de ouro dos circuitos improvisados foi de curta duração, travada pela ainda frágil economia, problemas organizativos e, em última instância, pela II Guerra Mundial.

O automobilismo nacional só arranca de novo no final da década de 40, com o regresso de Vila Real, e depois em 1950 com o novo circuito da Boavista e também Vila do Conde. Ironicamente, Lisboa teve que esperar até 1953 para ter o seu circuito, na zona de Monsanto. A Serra de Monsanto, sobranceira ao Alto da Ajuda, foi um espaço profundamente reabilitado nos primeiros tempos do Estado Novo pelo dinâmico Ministro das Obras Públicas Duarte Pacheco, que decidiu reflorestar o alto de Monsanto e tornar aquela zona verde numa imagem de marca da moderna Lisboa, com vários miradouros e parques de merendas, à imagem do Bois de Boulogne parisiense. E, após três edições na Boavista, o ACP decidiu traçar nos arruamentos entre Monsanto, a Cruz das Oliveiras e a Ajuda um circuito que pudesse receber o Grande Prémio de Portugal, sendo inaugurado em 1953 no G.P. Jubileu do ACP, numa prova que atraiu inúmeros corredores internacionais, destacando-se a equipa de fábrica da Lancia – com Bonetto, Taruffi e González – e o Jaguar de Stirling Moss, além dos melhores pilotos nacionais, alguns deles conduzindo potentes Ferrari.

TRAÇADO RÁPIDO

O traçado de Monsanto caracterizou-se sempre por ser extremamente rápido, mas muito técnico, devido às várias mudanças de altitude, curvas de média velocidade e com várias variações de camber, não sendo mesmo assim tão rápido quanto o da Boavista. A linha de meta estava situada logo a seguir à escola da Ajuda, na Estrada de Queluz, e era uma longa e rápida descida em direção ao nó de Algés, onde os pilotos entravam num troço de autoestrada, então denominada do Estádio Nacional, e que ligava Cascais ao Jamor (atualmente parte integrante da A5, constituído por uma longa reta em ligeira subida de cerca de 1200 metros, antes de saírem para a Estrada do Alvito numa sequência de direita/esquerda muito rápida e atravessarem a rotunda do Alvito até ao Miradouro da Escarpa (próximo do local onde se havia disputado a Rampa da Pimenteira), numa direita rápida, que apertava subitamente na viragem da Cruz das Oliveiras ou da Pimenteira. Os pilotos continuavam então a atravessar a zona arborizada pela Estrada de Montes Claros até uma sequência de curvas extremamente técnicas, perto da Escola de Equitação e do Miradouro do Moinho do Penedo, até à esquerda de Montes Claros para entrar na Estrada dos Marcos e em nova esquerda rápida até à apertada direita da Escola da Ajuda, que levava de novo à meta, totalizando 5.439 Km.

Esta descrição, aliada a um mapa da zona, facilmente convencem o leitor que se tratava de uma pista que fazia jus a alguns dos melhores traçados internacionais pelo seu nível técnico, e logo em 1953 a prova ficou marcada por dois acidentes – Froilán González despistou-se violentamente na curva da Pimenteira e não pode alinhar na prova, ficando esse ponto conhecido como a Curva do González! Já na prova, vencida por Bonetto, foi a vez de Fernando de Mascarenhas, Marquês de Fronteira, se despistar na Estrada dos Marcos e, para evitar a multidão, conseguiu desviar o Ferrari contra uma moradia junto à Escola da Ajuda, ficando apenas com ferimentos ligeiros, o que deu origem à célebre frase “Entradas à Fangio, saídas à Mascarenhas”!

ALTERNAR COM A BOAVISTA

Depois do sucesso desta edição, o ACP, com efeito imediato, decidiu alternar entre a Boavista e Monsanto a designação de Grande Prémio de Portugal, que coube então a este último já em 1954. Na sequência do habitual nos primeiros GP de Portugal, a lista de inscritos voltou a contar com uma reputada presença internacional, destacando-se a Scuderia Ferrari, que corria pela primeira vez de forma oficial em território nacional, com González e Hawthorn! Estavam também presentes diversos Ferrari privados, entregues a pilotos nacionais e internacionais, e alguns Jaguar e Gordini semi-oficiais. González desforrou-se do acidente da época anterior para conseguir uma magnífica vitória, na frente de Hawthorn e Masten Gregory. Com o título de G.P. de Lisboa, os automóveis voltaram a Monsanto em 1955 para uma prova novamente muito disputada, destacando-se as presenças de Masten Gregory (Ferrari), Emanuel de Graffenried (Maserati), Duncan Hamilton e Peter Whitehead (Jaguar), vencida pelo Ferrari do americano. A partir de 1956, para evitar o contínuo prejuízo associado à organização dos eventos, não seriam mais organizados em simultâneo pelo ACP provas em Lisboa e no Porto, não se disputando nesse ano G.P. de Portugal. O ACP estava já focado em trazer a F1 a território nacional, daí a necessidade de poupanças, e daqui para a frente a Boavista iria receber a principal prova de estrada portuguesa nos anos pares, e Monsanto nos anos ímpares.

FANGIO NO ALVITO

Deste modo, o VI Grande Prémio de Portugal disputou-se em Monsanto em 1957, atraindo novamente uma lista de inscritos de luxo, na qual se destacavam os Maserati de Juan Manuel Fangio, Paco Godia e Carlos Menditeguy, e os Ferrari de Masten Gregory e Phil Hill. Fangio fez a pole-position e dominou por completo a prova, inscrevendo assim uma corrida nacional no seu já longo palmarés. E, em 1958, o ACP cumpria finalmente o sonho de centenas de entusiastas e trazia a F1 a Portugal, ao circuito da Boavista, numa prova vencida por Stirling Moss. No ano seguinte, coube ao circuito lisboeta receber o segundo G.P. de Portugal de F1, e assistiu-se mais uma vez a uma magnífica disputa. Num ano marcado pela transição da predominância dos motores dianteiros, personificados pelos monolugares da Scuderia; para os motores traseiros dos ‘garagistas’ britânicos, liderados pelos Cooper, a prova foi dominada desde o início pelos pequenos carros de Surbiton, com Moss a fazer a pole no Cooper-Climax de Rob Walker, seguido dos carros oficiais de Jack Brabham e Masten Gregory. Tal como na Boavista no ano anterior, Moss dominou a prova de uma forma avassaladora, seguido dos restantes Cooper, sendo Dan Gurney o único Ferrari a dar luta aos carros de motor traseiro, ficando célebres as suas fotografias na parte mais alta do circuito, com a maravilhosa paisagem do Estuário do Tejo como pano de fundo. Moss venceu, seguido de Gregory e Gurney. Esta corrida marcou também a estreia de um piloto português nas lides da F1, a jovem esperança Mário de Araújo ‘Nicha’ Cabral, inscrito pela Scuderia Centro-Sud num Cooper T51-Maserati. Sem experiência com carros de tal potência, Nicha fez uma prova discreta nos últimos lugares, mas acabaria por ficar envolvido num incidente que poderia ter tido consequências nas contas finais do campeonato, já que o líder deste, Jack Brabham, se atrapalhou na dobragem ao jovem português e acabaria por bater na Estrada do Alvito… apesar de rumores de um toque entre ambos, devido à menor agilidade do piloto português, é atualmente aceite que um erro de pilotagem do australiano terá sido a causa do acidente…

Embora a F1 tenha voltado em 1960, o ACP deparou-se com graves prejuízos associados à organização de tal evento, assim como a concorrência de mercados mais fortes e, para 1961, optou por não se candidatar de novo a receber eventos internacionais. Além disso, tanto a Boavista como Monsanto acarretavam inúmeros problemas logísticos, além dos referidos gastos. Se no caso da Boavista era o corte parcial da Estrada da Circunvalação e da Avenida da Boavista, em Monsanto era o troço de autoestrada que se tornava responsável por vários constrangimentos de tráfego urbano que levaram o ACP a optar por abandonar a pista. Assim, apenas de âmbito nacional, o GP do ACP de 1961 disputou-se num insípido traçado no aeródromo de Alverca, enquanto os diversos dirigentes procuravam uma solução para reavivar o cenário português de provas de circuito.

NOVA VERSÃO

Se em 1962 se improvisou no Porto um pequeno traçado em Lordelo do Ouro, os lisboetas não quiseram ficar atrás e, impulsionados pelo prestigiado Clube 100 à Hora, conseguiram uma solução de recurso – impossível na Boavista – que minimizava o impacto no tráfego urbano, usando apenas parte do circuito de Monsanto. Esta versão seria conhecida por Montes Claros. O traçado partia do coração do parque, junto ao Miradouro do Penedo, subindo pela ondulada Estrada do Penedo até regressar ao traçado inicial na rotunda do Alvito, virando à direita na Cruz das Oliveiras para descer pela Estrada de Montes Claros, mantendo as curvas extremamente traiçoeiras dos Moinhos e da Escola de Equitação. Porém, ao chegar ao Miradouro de Montes Claros, em vez de descerem para entrar na Estrada dos Marcos, os pilotos descreviam uma apertada curva á direita que os levava de novo à Estrada do Penedo e à reta da meta. Contabilizando 2.729 Km de perímetro, o circuito de Montes Claros ou “pequeno Monsanto” viria a ser utilizado até ao início da década de 70, mas apenas em provas de âmbito nacional, mas era muito aclamado pelos melhores volantes portugueses pelo seu nível técnico.

Se bem que bem adaptado à nova realidade, Montes Claros não tardaria a ser ultrapassado em popularidade pelo circuito de Cascais, que recebeu os GP do ACP entre 1963 e 1966, assistindo-se a uma crescente internacionalização deste. Em 1966, ao mesmo tempo que regressava Vila Real e uma versão ampliada de Lordelo – ambas incluídas no calendário internacional – assistia-se também à divisão do Campeonato Nacional de Condutores em dois: o Campeonato de Velocidade (circuitos e rampas) e o Campeonato de Ralis. Apesar de ter ficado à margem da internacionalização, a integração de Montes Claros no CNV e a articulação com Cascais fez com que alguns dos principais concorrentes deste circuito ficassem por Lisboa mais alguns dias, e a prova de GT e Sport/Protótipos de 1966 ficou marcada por uma grande exibição do promissor piloto da Lotus John Miles, até que o seu Elan 26R quebrou, deixando a prova entregue a Aquiles de Brito. No final desse ano, o ACP decidiu não voltar a organizar provas em circuitos citadinos, devido aos crescentes problemas de segurança, embora apoiasse logisticamente os clubes que os organizassem. Além disso, já estava em curso a compra dos terrenos destinados ao futuro Autódromo do Estoril, o que acabou com o Circuito de Cascais. De um momento para o outro, Monsanto voltou à ribalta, embora contasse agora com o “rival” circuito da Granja do Marquês, traçado na Base Aérea de Sintra.

REGRESSO DE NICHA CABRAL

Ainda assim, a edição de 1967 foi marcante, tanto pela positiva como pela negativa. Se, por um lado, a prova de GT e Sport/Protótipos marcou o regresso de ‘Nicha’ Cabral ao automobilismo depois do pavoroso acidente numa prova de F2 em Rouen em 1965, que efetivamente acabou com as possibilidades do português trilhar uma carreira de alto nível internacional, e o ás português mostrou não ter perdido nenhuma das suas qualidades e estar em forma, conquistando uma grande vitória ao volante de um Porsche 906; o VI Circuito de Montes Claros ficou marcado pela tragédia. O Clube 100 à Hora decidiu organizar pela primeira vez uma prova de F3, denominada Taça Secretariado Nacional de Informação, mas não atraiu grandes nomes aparte o promissor Dave Walker. Walker acabaria por ter problemas e a prova foi dominada pelos portugueses, com Carlos Gaspar a vencer na frente de Joaquim Filipe Nogueira, mas ficou marcada pelo despiste fatal de Tim Cash – um dos eternos membros da fraternidade da F3 nos anos 60 – quando este saiu em frente na Curva González e colidiu de frente com uma árvore. Seria a única tentativa de trazer os F3 a Montes Claros.

ÚLTIMO ANTES DO ESTORIL

O circuito continuou a ser usado nos anos seguintes (de destacar que, durante este período, também se realizaram provas de motos), e a edição de 1968, articulada com Vila Real, permitiu que a prova de GT e Sport/Protótipos voltasse a contar com alguns nomes internacionais, mas a vitória sorriu a Carlos Gaspar, na frente de ‘Nicha’ e John Miles. Daqui em diante os nomes internacionais tornaram-se pontuais. Em 1969 venceu Carlos Santos, em 1970 venceu Jorge de Bagration (este aristocrata era descendente da família real da Geórgia, que se havia exilado em Espanha após a Revolução Russa de 1917), um habitué das pistas portuguesas, que repetiu o triunfo em 1971. Esta edição ficou marcada pela fabulosa luta pelo segundo lugar entre Ernesto Neves (Lotus 62) e Carlos Santos (Porsche 906), vencida pelo primeiro, e que deixou o público de pé. No entanto, com o Autódromo do Estoril finalmente pronto para inauguração em 1972 e os referidos problemas de segurança cada vez mais prementes, a manutenção de Montes Claros não se justificava e 1971 assistiu à despedida deste maravilhoso circuito, que pode ainda ser percorrido nos dias de hoje pelo magnífico cenário do Parque de Monsanto.

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1 Comentário
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joaolima
joaolima
1 ano atrás

Excelente artigo!

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