Rali da Costa do Marfim: quase um cinquentão…

Por a 25 Janeiro 2023 17:14

O mítico rali africano continua bem vivo e está perto de cumprir 50 anos. Quem haveria de dizer que, quando nasceu em 1974, o Rali da Costa do Marfim iria estar bem vivo quase 50 anos mais tarde? Mas é verdade: ele aí está, continua firme e hirto e com muito ainda para dar e vender.

Perdoem o trocadilho, mas esta prova foi sempre a “bête noire” do nosso desporto. Nos anos 80, no auge do desenvolvimento do Mundial de Ralis, o Rali da Costa do Marfim foi a prova preferida para ser odiada por todos. É como se fosse o filho preferido, cujos pais acreditam que ele nunca seria capaz de fazer mal nenhum e por isso lhe dão sempre a chance de continuar na mesma. Isso era assim nos velhos tempos, quando nasceu o rali os franceses estavam então no controlo do automobilismo e a Costa do Marfim era a sua estância de férias favorita.

Nos corredores do poder desportivo, em Paris, sempre se suspeitou das razões porque a Costa do Marfim era toda em tão grande conta no automobilismo. É quase como se o então Presidente da FIA e da FISA Jean-Marie Balestre, tivesse um especial relacionamento com o então Presidente da República da Costa do Marfim, Félix Houphoeut-Boigny. Nenhuma outra explicação parece plausível e, ao mesmo tempo, nenhum outro destino de férias ganhou, para os franceses, tanta importância no calendário do WRC. Marrocos chegou a ter uma importância semelhante, mas nada que pudesse comparar-se à Costa do Marfim, entre 1978 e 1982. O único país africano a estar tanto tempo no calendário do WRC foi o Quénia, que acolhia o Rali Safari. Em dois anos seguidos (2007 e 2008), durante a guerra civil da Costa do Marfim, a prova não se realizou. O que é verdadeiramente notável!

Quénia e Costa do Marfim: os dois opostos

Os ralis Safari, no Quénia e da Costa do Marfim, embora em locais opostos do grande continente africano, tinham muito em comum e outro tanto a separá-los. Ambos eram feitos em estradas abertas ao trânsito local – e que era imenso e caótico, em alguns locais, o que era um perigo durante as secções cronometradas! – mas em tudo o mais eram diferentes. Tanto quanto o podem ser duas realidades coloniais óbvias, os franceses contra os ingleses.

Muito do Rali da Costa do Marfim usava estradas cravadas entre densa vegetação mas, no Safari, a paisagem era mais aberta, mais livre e mudava constantemente.

À sua maneira muito peculiar, ambos eram clássicos. O Quénia era (é) um país onde as pessoas podem aventurar-se, têm muito para ver da vida selvagem e da flora. Na Costa do Marfim, é muito mais seguro ficar dentro de casa. Se é preciso sair, é bom que nunca seja sozinho. Logo ao pé das casas, esvoaçam irritantes enxames de insetos, que não hesitam em nos secar o sangue com picadas. À noite, os subúrbios são espantosamente escuros e nunca param mas, infelizmente, os animais que tornaram o país famoso já não existem – os elefantes, que foram sendo dizimados pelos caçadores furtivos.

O Rali da Costa do Marfim foi o rali que quebrou todas as regras – ao ponto de a autoridade desportiva ter que fazer novas regras, de propósito para a prova. O WRC tinha uma regra que dizia que uma prova tinha que ter no mínimo 50 equipas à partida, ou então seria banido do calendário no ano a seguir. As regras diziam também que o equipamento de segurança nos carros de Grupo N só tinha que estar instalado em estrada aberta.

E o que sucedeu na Costa do Marfim? Carros vulgares, sem qualquer tipo de equipamento próprio da prova, eram obrigados a aparecer na rampa de partida com os autocolantes do rali… e, depois de descerem o palanque, nunca mais eram vistos. Qual a resposta as autoridades a isso? Mudem as regras!

O evento era originalmente conhecido como Rali Bandama, que era o nome do maior rio que atravessava o país. No início, a prova era suportada pelas inscrições da Peugeot e da Mercedes e, depois, pelas maras japonesas, antes de ser obrigatório o seu registo e de terem que disputar todas as etapas do calendário do WRC.

Um rali muito especial

Sim, o Rali da Costa do Marfim era um rali à-parte. Foi o único rali internacional em que soube que não existiu ninguém a conseguir chegar ao fim (1972). Um rali com memórias infinitas, mas nenhuma delas tão horrível como as da manhã em que o avião da equipa Toyota caiu, matando Henry Liddon e Nigel Harris (1987). Eu tinha chegado de manhã cedo ao quartel-general da prova, quando o telefone tocou. Era uma chamada do aeroporto e tive que ser eu a alertar os Andersson (que dirigiam a equipa) para o que se pensava que tinha acontecido.

Ou Yamassoukro, essa cidade tão bizarra! Erguida no meio do anda, apenas porque parece que foi aí que nasceu Félix Houphouet-Boigny, o pai da nação. Um sítio onde os crocodilos eram religiosamente alimentados, num lago que existia bem no centro da cidade, por um fiel tratador, que um dia desapareceu sem deixar rasto! Este ano, foi uma vez mais aí a base do rali…

Ou estranhas memórias, como quando a equipa Audi teve que fazer algumas manobras pouco ortodoxas, para continuar a ter um dos seus carros na prova – num sítio longínquo do país, na realidade na “terra de ninguém” entre a Costa do Marfim e o Gana, mas tudo em vão. Era um truque que bem podia ter resultado, mas o facto é que tinha havido um acidente antes do início da prova, que tinha destruído um dos carros oficiais da equipa. Só que o carro que deveria substituí-lo (contra as regras, é claro!) e que estava planeado ser o carro de reserva da equipa, já não estava disponível.

Memórias curiosas? Então, voltemos à Audi. Em 1983, tinham um muito rápido carro de assistência, com três lugares, em que John Buffum levava não apenas um co-piloto como, num banco especial montado na parte de trás do carro, um mecânico muito corajoso. Desta vez, a Mercedes: um dia, fizeram grandes planos, testando um carro com um chassis curto, especialmente homologado para correr na prova no ano seguinte. Mas nunca voltaram à Costa do Marfim, porque outro dos pilotos da equipa foi dizer à administração que não valia a pena, porque o carro não tinha hipóteses e era uma… bosta!

Mas também há memórias felizes. Como quando, no final da prova de 1985, Bjorn Waldegaard e Juha Kankkunen, que tinham terminado, com os seus Toyota, empatados em pontos de penalização (em vez do que se fazia noutras provas, em minutos e segundos) tentaram subir ao mesmo tempo, lado a lado, a rampa para o pódio de chegada.

Ou quando, depois de uma prova particularmente extenuante, Juha Kankkunen se deixou dormir na cerimónia de entrega de prémios e foi acordado de forma bem sonora, com o próprio Jean-Marie Balestre aos berros, mesmo junto aos seus ouvidos.

Rali da Costa do Marfim: tantas histórias esperando por um livro que as conte e desvende ao mundo! Estes ralis feitos nestas partes tão recônditas do mundo! Não se pode simplesmente chegar como espetador e ver o que acontece, é preciso esperar que os organizadores nos convidem, ou então fia-se em casa. Para mim foi um privilégio, sempre que lá estive.

Alain Ambrosino em feito tudo para manter no limbo da lenda esta prova feita no seu país. Mas será que eu gostaria de voltar lá? É que as más memórias são ainda muitas na minha cabeça. Como a daquele ano em que a empresa de “rent-a-car” me cobrou à volta de mil libras a mais que o custo legítimo do aluguer do meu carro. Felizmente para mim, que tinha comigo todos os papéis que podiam provar que estavam errados!

A única companhia aérea que voava para lá era a Air Afrique – que, entretanto, já despareceu. E as confusões com os bilhetes eram o pão nosso de cada dia! Mas, de certa forma, posso dar-me por feliz por ter sobrevivido. Demorou muito tempo até eu ter confiança nas capacidades organizadoras do Campeonato de Ralis africano. Resta-nos esperar que a Costa do Marfim ajude a recuperar alguma dessa confiança, numa área do desporto automóvel que, infelizmente, tanta falta hoje faz neste meio tão competitivo.

Martin Holmes, In Memoriam

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