Rali de Portugal 1969: 50 anos depois, fizemos o mesmo percurso

Por a 10 Março 2023 13:02
Pelos caminhos do Rallye TAP, 50 anos depois da vitória de Francisco Romãozinho em 1969

A ideia surgira há algum tempo e foi amadurecendo. Como forma de assinalar a vitória de Francisco Romãozinho e João Canas Mendes no Rali de Portugal de 1969, o Autosport pegou no roadBook cedido pelo mestre Manuel Coentro, e, em quatro dias, percorreu os trilhos enfrentados pelos audaciosos concorrentes do Rallye Internacional TAP de 1969, uma prova marcada por péssimas condições meteorológicas, que viria a consagrar a dupla portuguesa ao volante de um Citroën DS21, após a célebre desclassificação de Tony Fall e Henry Liddon.

Percorrer o itinerário de um “velho” Rallye TAP, ainda que em toada de passeio, é uma verdadeira aventura que, acima de tudo, valoriza o esforço e a ousadia daqueles que, há meio século, o palmilharam em frenético ritmo de competição. O primeiro dos desafios consistiu em traçar o percurso desenhado há cinquenta anos no mapa atual das estradas portuguesas. Com a ajuda do roadbook oficial da prova e recorrendo a cartas militares e mapas das estradas da época, foi possível decalcar perto de dois mil quilómetros no Google Earth e transferi-los para o smartphone, sendo que, em alguns casos, as velhinhas estradas nacionais haviam dado lugar a autoestradas e itinerários complementares. O percurso comum da terceira edição do TAP teve início em Espanha mas, como a etapa que ligou a cidade de San Sébastian ao Casal do Marco não teve grande história para contar, optámos por iniciar a aventura naquela que seria a segunda etapa do rali e, assim, numa chuvosa manhã de sábado, apresentámo-nos no Parque Eduardo VII, em Lisboa, o primeiro dos 85 Controlos que teríamos pela frente.

1º Dia: Lisboa – Pampilhosa da Serra

Oito horas da manhã. Para trás, ficava o topo do Parque Eduardo VII. A Serra de Sintra era a primeira dificuldade do dia. O caminho para lá chegar incluía passagem pela A5 até à saída para a EN117, a subida dos Cabos d’Ávila e, já na zona da Amadora, o atual IC19 até ao Cacém, onde derivámos para a Estalagem do Rio e a célebre Casa dos Vasos, seguindo, depois, para a estrada de Albarraque. Dois controlos horários, fáceis de cumprir, compunham a ligação até São Pedro de Sintra, onde os concorrentes subiam ao palácio e posteriormente desciam pela Rampa da Pena até à vila. Hoje em dia, é impossível recriar esse trajeto dado que o sentido do trânsito é o inverso ao que foi percorrido na época, forçando-nos a atalhar caminho, retomando o percurso de 1969 no Largo do Vítor, em plena Vila Património Mundial da Humanidade. Nas traiçoeiras curvas da Serra de Sintra, percorremos os quatro Controlos que os concorrentes, naquele ano, tiveram de cumprir à média de 60 km/h. Palácio da Pena, Regaleira, Seteais, Monserrate e o Penedo faziam parte desta sequência diabólica que compunha a primeira grande dificuldade do rali. Seguimos depois em direção a Montejunto, passando pela Várzea de Sintra, Cheleiros, Mafra, Gradil e Torres Vedras antes de chegar a Vila Verde dos Francos onde começava a subida à Serra de Montejunto. Até chegar a São Salvador, junto à EN1, eram três os Controlos a percorrer e aqui tivemos o primeiro contacto com os famosos quilómetros ‘roubados’. Para o leitor que não está familiarizado com esta expressão muito utilizada na época, quando um organizador submetia a sua prova às autoridades a fim de ser aprovada, esta tinha de estar de acordo com os limites de velocidade impostos pelo código da estrada para que a realização da prova fosse autorizada. Uma forma de contornar esse ‘problema’ e tornar a prova mais competitiva seria apresentar uma quilometragem menor nalgumas secções do rali de modo a que, no papel, a média respeitasse os limites legais, mas, na realidade, os concorrentes teriam de andar muito mais depressa do que a média indicada se não quisessem penalizar dado que o percurso era mais extenso do que o roadbook apresentava. Do primeiro Controlo, após Vila Verde dos Francos, até ao cruzamento das antenas distavam 5,7 quilómetros, quando a organização indicava 4,6. E do controlo entre o cruzamento do planalto e a EN1 distavam 5,9 quilómetros quando o roadbook da prova mencionava apenas 4,5. Esta zona, entre o cruzamento do planalto e a EN1 é, hoje em dia, o único pedaço de estrada que se mantém em terra batida pois tudo o resto já está alcatroado e foi amplamente utilizado de 1983 a 1994 pelo conhecido troço de Montejunto. Uma referência ainda para o mau piso da descida final para São Salvador. De todas as estradas de terra que fizemos nesta aventura, esta foi a que apresentou as piores condições.

A partir de Montejunto e até à Pampilhosa da Serra, onde terminaríamos o dia, a recriação do rali traduziu-se num passeio sem grandes dificuldades. Depois de “picar o ponto” no quartel militar de Abrantes, onde há cinquenta anos, havia um Controlo Horário, as coisas animaram um pouco após a passagem em Belver, já que uma sequência de curvas e contracurvas bastante agradável de conduzir se assumia como um dos trechos mais interessantes deste primeiro dia, embora menos desafiante, acreditamos, do que em 1969, quando era feito ainda em terra. Ao jornal Motor, o vencedor Francisco Romãozinho relatou, na época, as peripécias vividas neste percurso. A primeira, logo no inicio, quando um concorrente atrasado se atravessou à sua frente no Controlo, atrasando a sua partida. E, com a ânsia de recuperar o tempo perdido, Romãozinho fez ainda um pião, o que o levou a penalizar 39 segundos no final dos 4,9 quilómetros reais e não os 3,9 referidos no roadbook. Após esta pequena dificuldade, nova ligação se impunha até ao início do troço de Proença-a-Nova. Pouca gente saberá que, à entrada desta vila, já se cumpriu um troço do Rali TAP e que, ainda hoje, é parcialmente usado pela Baja do Pinhal, do Campeonato Nacional de Todo-Terreno. Com uma distância de cinco quilómetros, o percurso está hoje completamente asfaltado. Depois de um início muito encadeado, a subir, o troço terminava à entrada da vila junto a um telheiro que, curiosamente, se mantivera de pé até há bem pouco tempo, não resistindo, contudo, à passagem do tempo. Há cinquentas anos, Tony Fall, num Lancia Fulvia HF 1600, começava aqui a marcar posição, vencendo a Prova Especial com menos dois segundos que o sueco Jan Henriksson num Opel Kadett Rallye, e menos onze segundos que o piloto português José Lampreia, num Datsun 1600 SSS.

Restava-nos uma longa ligação de 126 quilómetros até Pampilhosa da Serra, com passagem por Castelo Branco, onde se encontrava o último Controlo do dia. Para encerrar a jornada, impunha-se uma visita ao Museu do Rally, em Fajão, onde dezenas de fotografias recordam a passagem, ao longo de décadas, do Rali de Portugal pela região de Arganil e Pampilhosa da Serra. A exposição conta ainda com um fato de competição que pertencera a Carlos Sainz, oferecido pelo espanhol como gesto de amizade, quando passava semanas a treinar na Serra do Açor. Uma visita a Fajão não estaria completa sem uma escapadinha ao Restaurante ‘O Pascoal’, sucessor do mítico ‘Juiz de Fajão’ onde tanta gente que o rali trazia àquelas paragens matou a fome e a sede…

2º Dia: Pampilhosa da Serra – Porto

A segunda jornada, ligando Pampilhosa da Serra ao Porto, reservava-nos 9 Controlos distribuídos ao longo de 374 quilómetros de estradas nacionais e municipais, incluindo a antiga e temida florestal que liga Góis a Arganil. A abrir as hostilidades, o troço da Barragem do Cabril ligava a vila da Pampilhosa da Serra à Portela do Vento. Pouco resta dos 33 quilómetros de estrada de terra de então. Ao avançar do alcatrão, resistiu apenas uma pequena parte no piso original, entre o cruzamento para Pescansecos e a aldeia de Sobral Valado. Reza a história que o controlo instalado EN2, 900 metros após o final deste troço, teve de ser anulado por César Torres para evitar as pesadas penalizações devido à lama, à chuva e ao nevoeiro cerrado que se abateram sobre estas estradas serranas. “Porta do Inferno”, era assim que o jornal ‘Motor’ rotulava o controlo entre a Pampilhosa da Serra e a Portela do Vento e que levou a tantos atrasos e contratempos entre os concorrentes. Para se ter uma ideia das dificuldades sentidas pela caravana do rali, a diferença entre o primeiro concorrente a aparecer no controlo de Góis (Richard Bochnicek) e o segundo (Colaço Marques) foi de trinta e cinco minutos!

A ligação entre Góis e Arganil foi, naquele ano, um dos maiores desafios que os concorrentes tiveram pela frente. Embora o roadbook referisse que o controlo distava vinte quilómetros, na realidade registámos 25, que teriam de ser percorridos em vinte minutos. Esta velha ligação pela serra voltará a ser feita, em parte, na edição de 2019 do Rali de Portugal. O percurso começava em Góis, junto ao quartel dos bombeiros, entrando pouco depois numa estrada em terra, rasgada nos rochedos e seguindo pelas cumeadas da serra até ao alto da Aveleira, iniciando a descida em ganchos sucessivos até Lomba, culminando no Controlo de Arganil, montado em frente aos Armazéns Montalto. O percurso é absolutamente extraordinário, com paisagens deslumbrantes e estradas de cortar a respiração. Tony Fall foi quem menos penalizou neste percurso em 1969, gastando mais 4m09s do que os 20 minutos previstos pela organização. O troço era então feito de noite e, enquanto o percorríamos durante a nossa aventura, imaginávamos a dose de loucura necessária para ali andar a fundo, à noite, sob nevoeiro cerrado e quase isolados em termos de comunicações. Outros tempos!

Aproveitámos a paragem em Arganil para visitar o Hotel de Arganil, aquele que, ainda hoje, é o ponto de encontro das equipas quando vão testar nos troços da região. Na companhia do proprietário, Miguel Ventura, percorremos alguns dos corredores do Hotel e, qual máquina do tempo, revisitámos algumas histórias dos ralis vividas em Arganil. A conversa e o almoço estenderam-se no tempo mas, apesar de ter ficado muito por contar, era tempo de seguir caminho em direção ao Porto. A longa ligação em alcatrão até à cidade invicta teve, pelo meio, alguns Controlos e outras tantas armadilhas. Nas imediações de Penalva do Castelo e Sátão, vigorou, uma vez mais, o conceito dos quilómetros ‘roubados’ e aquilo que deveriam ser 4 quilómetros para percorrer em quatro minutos eram, na realidade, seis quilómetros cheios de curvas desenhadas no fundo de um vale. Uma estrada completamente desconhecida e longe da realidade atual do Rali de Portugal mas que, à época, foi percorrida várias vezes pelo então Rallye Internacional TAP. O troço de Aguiar da Beira era outro dos pontos de interesse desta fase da aventura. Tratava-se da versão de um troço que, mais tarde, ficaria conhecido como Lapa e que terminava no espetacular Santuário da Lapa. Esta versão de 69 começava ainda dentro de Aguiar da Beira e o caminho estreito em terra da época, deu lugar a uma estrada de alcatrão larga, incaracterística e muito rápida. O final do segundo dia reservava-nos ainda algumas emoções: após passarmos Lamego, o percurso da prova pendurava-se nas varandas sobre o Douro até Porto Antigo. A primeira parte da descida, até Penajóia, é cheia de curvas onde, do nada, aparecia água a correr pelo alcatrão. Numa estrada já de si difícil, e feita de noite, tivemos inúmeras surpresas devido à água e à mudança repentina de aderência. Em 1969, esta parte do percurso fora percorrida de dia, o que terá certamente aliviado o nível de dificuldade aos 42 concorrentes que chegariam ao Porto. No entanto, dificilmente teriam tido tempo para apreciar a magnífica paisagem, já que os ponteiros do relógio continuavam a rodar. Restavam agora os 69 quilómetros finais até ao Porto, revelando-se um tormento de fazer devido ao trânsito e à passagem pelas povoações, que, com o aproximar da cidade do Porto, iam aparecendo em maior número. Foi com alívio que passámos o quilómetro 1 da EN108, onde, há cinquentas anos, estava instalado o Controlo final da etapa. Em jeito de primeiro balanço, a chagada ao Porto despertara-nos para uma realidade: Em dois dias de condução intensa, havíamos percorrido o mesmo que, em 1969, levara pouco mais de catorze horas em estradas cuja qualidade pouco ou nada tem a ver com as atuais. Uma autêntica loucura!

3º Dia: Porto – Alvarenga

O terceiro dia, o mais longo desta aventura, começou ainda noite cerrada, pelas seis horas da manhã. Com o Estádio do Dragão como pano de fundo, partimos em direção à Circunvalação, seguindo depois pela EN 13 até Viana do Castelo onde tínhamos o primeiro controlo do dia. Seguimos então pela Rampa de Santa Luzia até ao santuário sobranceiro a Viana do Castelo atravessando depois a serra rumo a Orbacém. Aqui, disputou-se há cinco décadas a sexta Prova de Classificação do rali, o famoso troço de Orbacém que, durante anos, fez parte do itinerário da prova, sendo uma parte utilizada em 2018 no troço de Caminha. Ao longo dos 12 quilómetros do troço, é notório o contraste entre a “autoestrada” em terra correspondente à parcela utilizada no ano passado e o estado pouco recomendável da outra parte, afastada dos holofotes da competição. Até ao Soajo, tínhamos pela frente duas longas ligações. Na EN 301 tivemos oportunidade de percorrer o antigo troço de Vilar de Mouros, utilizado apenas uma vez pelo Rali de Portugal e incontáveis vezes pelos Ralis James e Sopete. O vale que acompanha o Rio Coura proporciona momentos de prazer ao volante. Chegados à Vila do Soajo, terra de Espigueiros onde, em 1969, estava instalado mais um Controlo, iniciava-se a descida do vale, a travessia do Rio Lima e a subida até à EN203. A estrada de hoje perdeu algum do encanto de outrora, nomeadamente uma ponte em pedra junto a Vilarinho das Quartas, da qual nada resta. O percurso até ao Campo do Gerês foi menos interessante, obrigando a uma paragem em Pico de Regalados para um almoço tardio mas retemperador, como o norte de Portugal tão bem nos sabe oferecer. Foi o combustível necessário para conseguirmos enfrentar o resto do dia.

Vieira do Minho abriu-nos as portas da Serra da Cabreira, onde, há 50 anos se disputou mais uma Prova de Classificação. Pinheiro, Senhora da Orada, Espindo, Zebral e Anjos foram pontos de passagem deste trajeto que terminava junto a um fontanário que ainda existe. Reza a história que Alfredo César Torres anulou um Controlo ali colocado devido ao dilúvio que se abateu sobre o percurso da prova, para permitir aos concorrentes recuperar na ligação seguinte até Paradança. Infelizmente não surtiu o efeito desejado e algumas equipas penalizaram fortemente tal era o atraso que levavam. Chegámos a Rossas quase ao lusco-fusco, avançando sem demora para o início do troço do Marão, onde chegámos já de noite. Se enfrentar a florestal do Marão de noite, com um normal automóvel de estrada era algo que não nos deixava muito confortáveis, a situação piorou quando nos deparámos com um lamaçal incrível. A grande incógnita era se os vinte quilómetros até à Casa do Guarda da Sapinha estariam em idêntico estado. Avançámos com receio e, em algumas ocasiões, andámos mais de lado do que para a frente, tal era a falta de aderência mas, felizmente, os lamaçais desapareceram e foi no Marão que encontrámos o melhor piso de terra destes quatro dias. Já noite cerrada, o que não nos permitiu fotografar, e com um piso excelente, atingimos o gancho da Sapinha e a Casa do Guarda onde, em 1969, a organização tinha instalado mais um controlo que viria a ser igualmente anulado devido às condições do piso e ao tempo que se fazia sentir.

Após uma rápida descida até Amarante começámos a subir para Baião. Tínhamos pela frente o temível Cavalinho! Hoje em dia, poucos se lembram do Cavalinho, um terror para os concorrentes dos ralis das décadas de 60 e 70. A antiga EN101 dera lugar a uma nova versão, com uma cota mais alta e, para comprovar que estávamos perante um local sagrado para os amantes dos ralis, andámos a desenterrar alguns dos marcos quilométricos de pedra ainda existentes no local. Vivíamos um dos pontos altos destes quatro dias de viagem. A subida é extraordinária, curva após curva numa estrada estreita e pendurada na Serra da Aboboreira. Não admira que fosse tão temida e tão castigadora para os que ali competiam. Francisco Romãozinho, o vencedor do TAP de 69, penalizou aqui nove minutos! Depois de passarmos por Baião, Porto Antigo, Cinfães e Castelo de Paiva, eis-nos finalmente chegados a Alvarenga onde o famoso bife de carne arouquesa nos aguardava, fechando, com chave de ouro, um dia exigente e desgastante, quase quinze horas depois de termos deixado a cidade do Porto…

4º Dia: Alvarenga – Estoril

O derradeiro dia desta aventura era composto por longas ligações em alcatrão e por dois polos de interesse: a travessia da Serra do Buçaco e ainda uma nova passagem por Arganil. As hostilidades tinham início precisamente em Alvarenga, com um troço de 16 km. Como curiosidade, refira-se que, se o leitor visitar os famosos Passadiços do Paiva, lembre-se que, quando atravessar uma estrada de alcatrão perto da entrada do Areinho, já aí passou a edição de 1969 do Rali TAP! O Controlo seguinte esperava-nos 80 quilómetros depois, às portas de Oliveira de Frades, seguindo-se, depois, mais 85 quilómetros até ao Luso. Era altura de fazer um pequeno desvio para receber ‘assistência’ na Mealhada e degustar um leitão da Bairrada. Após o merecido repasto, retomámos a aventura enfrentando a Serra do Buçaco. Infelizmente, não nos foi possível descrever as estradas da Mata do Bussaco, já que esta se encontrava encerrada devido aos estragos causados pelo Furacão Leslie. Não nos restou alternativa senão subir a serra pela estrada de alcatrão até à Porta da Cruz Alta, retomando aí o percurso original. Voltámos a encontrar dificuldades mais à frente, numa das estradas de terra que o rali utilizou e decidimos seguir por um caminho alternativo até ao Controlo na Espinheira. Foi neste Controlo que, há 50 anos, Francisco Romãozinho e João Canas Mendes foram fotografados sem a porta do lado do navegador do seu Citroën. Ao Jornal ‘Motor’, Francisco Romãozinho relatou assim o que acontecera na Serra do Buçaco: “E eis-nos em plena serra do Buçaco com o nevoeiro mais denso que tivéramos até aí. Nem olhando para o lado conseguíamos ver as bermas. Felizmente, as notas permitem-nos ir andando depressinha naquela estrada cheia de lama escorregadia. De repente, sinto uma pancada. Batêramos numa pedra saliente na encosta. Peço ao João que apague a luz de cima. Ele dita-me mais duas curvas rápida e depois diz-me: não fui eu que acendi a luz interior. Tu é que, ao bater na rocha, arrancaste a minha porta e a luz acendeu! Fiquei estupefacto mas continuei sem hesitar. Ao fim ao cabo, para usar as palavras do João, “que falta faz a porta?!”.

A odisseia prosseguiu até Arganil onde nos esperava a ligação de Folques a Arganil, com passagem pelo Alqueve, Serra da Deguimbra, Posto de Vigia, Selada das Eiras e Aveleira. Os 19 quilómetros anunciados no roadbook traduziram-se nuns reais 26,5 que, na época, deveriam ter sido cumpridos em 19 minutos rompendo o nevoeiro da Serra do Açor. A ligação de 54 quilómetros até à Lousã foi feita já de noite. Aqui, tivemos pela frente a última classificativa do programa da terceira edição do TAP: o troço da Lousã ou, por outras palavras, a famosa descida do Trevim até Cacilhas. Hoje em dia, o percurso está maioritariamente alcatroado mas a parte inicial ainda está em terra e com um piso pouco recomendável. Foi no início deste troço que, supostamente, e de acordo com as crónicas só mais recentemente divulgadas publicamente, Tony Fall terá trocado de carro, sendo esse o verdadeiro motivo que o levou à desclassificação na chegada ao Estoril. Numa entrevista concedida ao Autosport, o vencedor Francisco Romãozinho relatou este episódio: “Na Serra da Cabreira, ultrapassei um sem número de carros e muitos outros bateram forte, como foi o caso do Tony Fall. Quanto passei por ele na assistência, a frente do Lancia Fulvia estava de tal maneira maltratada que pensei que ele iria desistir. Depois da Cabreira, tínhamos a Senhora da Graça, o Fridão e uma ligação difícil até ao troço de Arouca-Alvarenga. Na altura, fomos informados que a liderança estava a ser decidida entre nós e o Tony Fall, o que era pouco compreensível atendendo ao estado do Lancia na Cabreira e ainda ao facto de não o ter visto durante toda a noite. Percebi finalmente o que se passava quando eu e o meu navegador, João Canas, aguardávamos a hora de partida para o troço da Lousã. Já de dia, aparece o Lancia do britânico, sujo de lama, mas sem quaisquer sinais de ter batido, continuando pela estrada de alcatrão até o perdermos de vista. Minutos depois, o Fulvia regressava e, à nossa frente, estava um carro impecavelmente lavado e com uma forte batida na frente. Obviamente que não era o mesmo carro.”

Após a Lousã, era tempo de rumarmos ao Estoril com passagem em Coimbra e uma longa ligação de 175 quilómetros até Arruda dos Vinhos. Até ao Estoril, e tal como há cinco décadas, o caminho fez-se por Loures, Caneças, Idanha, Cacém e Albarraque até às tão ansiadas Arcadas do Estoril, onde chegámos pelas 22 horas e sem motivos aparentes para sermos desclassificados! Relembramos que, em 1969, chegaram ao Estoril seis concorrentes embora só quatro se encontrassem dentro do limite regulamentar de 45 minutos de penalização: Tony Fall, Francisco Romãozinho, José Lampreia e “Chavan”. O piloto britânico foi desclassificado por ter entrado no Controlo final com a esposa dentro do carro mas, conforme já referimos, a verdadeira razão da desclassificação terá sido a troca de carro na Lousã.

Ao percorrer as estadas do país durante quatro dias, ficámos com a certeza de que os ralis dos anos 60 e inícios dos anos 70 eram para homens de barba rija e, para cumprir os horários impostos pelas organizações, exigia-se uma enorme dose de loucura. Se, na época, tudo parecia normal, visto a esta distância, tudo assume um carácter extraordinário, tanto a nível físico como mental, sem esquecer a mecânica dos carros. Cumprir mais de mil quilómetros, praticamente sem interrupção, em estradas de terra ou de alcatrão de duvidosa qualidade, no meio de povoações, de noite, de dia e contra o relógio, era uma autêntica aventura que, hoje em dia, será, para muitos, difícil de imaginar. Em quatro dias, passámos por sítios fabulosos que só os ralis nos levariam a visitar: Góis, Arganil, Santa Luzia, Gerês, Cabreira, Marão, o Cavalinho, o Buçaco e a Lousã entre tantos outros. Se este texto lhe aguçou o apetite, desafiamo-lo a embarcar numa aventura semelhante na certeza de que, no final, terá muito para contar e relembrar…

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