MEMÓRIA, João Vassalo: O Motorista de Sua Santidade


Na hora da sua despedida das ‘corridas’, em 2001, não resistimos a confrontar João Vassalo com dois dos seus amores assumidos, ainda que um bem mais recente do que o outro. Se de um lado está o todo-o-terreno, mais duro que puro e onde o cronómetro é o inimigo declarado, do outro está o golfe, jogado a passo lento, sem ruídos de motor à volta, apenas com a natureza como pano de fundo. Dois amores que em nada são iguais e que, talvez por isso, nem o próprio piloto/jogador sabe de qual gosta mais. E entretanto já lá vão 20 anos. Um piloto que deixou muitas saudades no Todo-o-Terreno.

Os dois amores de João Vassalo

Após o segundo lugar que conquistou em Castelo Branco 2001, João Vassalo despediu-se da modalidade que o notabilizou e, em última análise, tornou num dos mais conceituados pilotos de todo-o-terreno em Portugal, nomeadamente, durante os oito anos de ligação à equipa oficial da Mitsubishi, marca com a qual arrecadou três títulos absolutos: em 1994, 1996 e, finalmente, em 2000, isto, para além de vários “vices”, o último dos quais conquistado este ano!

Este é, pois, o adeus definitivo de um campeão, humilde como poucos, e que se tornou, em pouco tempo, no mais rápido piloto português ao volante de um Pajero – o carro, afinal, que ficará para sempre associado à sua imagem!

Mas vamos então à conversa, ao longo dos 18 buracos do Clube de Golfe da Penha Longa, num demorado passeio em que os temas variaram entre as bajas, os “putter”, as botas de competição, os ferros compridos, os prólogos e os “swings”…. Enfim, entre estes dois amores de Vassalo que, definitivamente, em nada são iguais! Excepção feita, claro está, à vontade de vencer… sempre!

Uma mão cheia de histórias

Tratando-se de um piloto que quase completou década e meia de ligação ao TT de competição, não é de estranhar que a sua gaveta das memórias esteja repleta de boas recordações, algumas delas bem curiosas….

Por exemplo, lembra Vassalo, “em 1997, na prova de Portalegre, perdi a hipótese de ganhar o título absoluto, quando o meu carro parou a 50 metros da meta, numa subida. Tinha mais de 12 minutos de vantagem sobre o segundo classificado! O mais caricato é que não me lembrei que tinha um gancho mesmo ali à mão… com um cabo de 250 metros! Pura e simplesmente, esqueci-me e, nesse ano, ganhou o Santinho Mendes”.

Uma história dramática, sem dúvida. Mas existem outras, mais felizes para o piloto, “como aquela que se passou em 1994, também em Portalegre, quando festejei o meu primeiro título. A dada altura, encontrei o Carlos Sousa e o Francisco Esperto, ambos ‘atascados’, lado a lado, sendo que era com eles que eu estava a discutir o título! De pronto, tirei o Carlos dali e ‘ofereci-lhe’ o campeonato. Mas como ele tem um grande coração, também resolveu tirar o Esperto daquela situação. Este comprometeu-se a seguir atrás do Sousa, até final. Mas, a 30 quilómetros do fim, depois de ter tido um furo, ele passou-me. Pensei que estava tudo perdido, mas mudei o pneu em tempo recorde e ainda consegui superá-lo antes de meta. Foi, sem dúvida, um dos momentos que mais gozo me deu em toda a carreira”.

A difícil adaptação à Strakar

Mas tudo isto faz já parte do passado. Agora, como o próprio refere, “chegou a altura de virar mais esta página na minha vida!” Mas parece que sai um pouco amargurado, é verdade? “Não, pelo contrário, saio contente e, sobretudo, com a sensação de dever cumprido. Como costumo dizer, saio ‘de barriga cheia’. Afinal, sempre foram três títulos absolutos, o que me parece ser uma bonita soma”…

Curiosamente, três títulos conseguidos sempre ao volante do Pajero. Após o início deste ano, concretizou-se a passagem para a Mitsubishi Strakar e… tudo foi diferente. “De facto, penso que não houve uma relação de empatia entre mim e este carro. Após a primeira prova, tive uma sucessão de três azares, um deles quando estava a treinar para a ‘Telecel 1000’. Enfim, foram pequenos incidentes – ou toques! – que se podem explicar por uma razão simples: andava a guiar a Strakar da mesma forma que o Pajero e, no fundo, são dois carros bem diferentes no modo como se conduzem. Esse terá sido o meu grande problema. Depois… bem, depois passei a conduzir com algum receio, ainda com o trauma do que tinha acontecido antes. Mas, apesar de todas estas dificuldades, o certo é que garanti mesmo o vice-campeonato”.

A paixão pelo golfe

Apesar de não ser caso único entre pilotos nacionais, o certo é que João Vassalo deixou-se contagiar por este desporto, desde há dois anos a esta data. Como refere, “foi uma paixão que surgiu de repente, um pouco por influência do Diogo Castro Santos. Um dia, quando estávamos os dois a beber café, ele convenceu-me a ir dar umas ‘tacadas’… E desde esse dia, não mais parei! Passei a ser cliente assíduo e batia mais de 300 bolas por dia, num ‘driving-range’ junto à minha casa, em Sintra. Tornei-me sócio de um clube e, agora, todos os domingos de manhã, vou religiosamente fazer o meu jogo, até à hora do almoço”.

Seja como for, desenganem-se os que pensam que Vassalo vai abandonar o todo-o-terreno para se dedicar ao golfe… “Nada disso, vou apenas dedicar mais tempo a este desporto, em que sou apenas um amador médio, enquanto no TT era um profissional de topo. São duas modalidades em tudo diferentes, não se podem comparar, mas a paixão é a mesma”.

Mas vejo que domina já alguns movimentos. “Sim, alguns. Afinal, já participei em alguns torneios por esse Mundo fora, e com algum sucesso, como nos Estados Unidos e na Costa Rica. Mas, ao contrário do todo-o-terreno, o golfe tem algumas particularidades. Por exemplo, hoje podemos estar a jogar muito bem e amanhã falhamos as bolas todas, sem razão aparente. Enfim, é um jogo que de fora parece muito fácil, mas que no fundo tem uma enorme dificuldade. E é isso que me atrai neste jogo, esta procura incessante pela perfeição. É claro que já não tenho idade para me tornar profissional, mas tudo farei para ser, pelo menos, um bom amador!”.

Profissional ou amador, o certo é que João Vassalo nutre uma enorme paixão por estes dois desportos. Percebe-se isso quando fala destes seus… dois amores. E é isso, afinal, que o torna único. Sem dúvida, vai deixar muitas saudades neste meio. Até breve, João.

Imagem de marca no campeonato

Desde há dois anos, o habitual penso no nariz passou a ser uma das imagens de marca de Vassalo no Campeonato Nacional de Todo-o-Terreno. Trata-se de uma espécie de mola, como alguns jogadores de futebol usam agora, que, segundo diz, “permite-me respirar um pouco melhor, dá-me mais fôlego durante as provas. E acreditem que, desde que deixei de fazer o meu habitual ‘jogging’ diário, bem que precisava de um auxílio extra”. No entanto, só há muito pouco tempo é que passou a usar este penso milagroso da forma mais correcta: “Foi o Filipe Campos que me alertou para isso, após um cunhado dele que é médico me ter visto na televisão. Pelos vistos, eu usava o penso muito acima no nariz e o seu efeito era quase nulo. Agora uso-o mais abaixo e, de facto, percebi de imediato as diferenças, pois passei a respirar muito melhor. Mas não é por isso que se ganham campeonatos”, ironizou, não fosse a moda pegar na caravana!

Teste para o exército iraquiano

As curiosidades da vida profissional de Vassalo são quase ilimitadas. Com efeito, ainda antes de ser piloto de competição, chegou também a fazer demonstrações para vários exércitos, um pouco por todo o mundo, quando ainda trabalhava para a UMM. “Por exemplo, cheguei a estar no Iraque, três meses antes de ter início a guerra no Golfo, para ali fazer uma demonstração de um veículo montado com um canhão sem recuo”, recorda. “Outro aspecto curioso é que estive hospedado precisamente no mesmo hotel onde, depois, esteve o repórter da CNN a relatar os bombardeamentos, em directo para todo o mundo”. Mas não só. João Vassalo chegou também a deslocar-se a outros países, como a Irlanda e a Jordânia, sempre com o mesmo intuito: “tentar convencer os exércitos locais que o nosso veículo era melhor que os outros da concorrência”. Mas descansem os mais pacifistas… “não andei aos tiros a ninguém!”.

Motorista de Sua Santidade

Ter a possibilidade de conversar 15 minutos com o Papa João Paulo II é algo de que muito poucos se podem orgulhar! Mas aconteceu a João Vassalo que, pasme-se, chegou a ser o motorista de Sua Santidade, durante a sua visita a Angola, em 1991. Na altura, Vassalo era piloto de testes da UMM e foi ele o escolhido para guiar o “Papamóvel”, um veículo construído pela marca portuguesa, após encomenda do governo angolano. “Como não era fácil de guiar, pois era um carro extremamente pesado e desequilibrado, a UMM encarregou-me desta tarefa. Foi, sem dúvida, uma honra que jamais esquecerei”. Pelo meio, um pequeno susto, “quando o Papa quase caiu, após um arranque mais brusco – valeu, na altura, um bispo a ampará-lo. De resto, ainda consegui conversar um pouco com ele… Disse-me que já sabia tudo sobre mim, enfim, que eu era católico e praticante. No final, deu-me um terço e umas medalhinhas que ainda hoje guardo”.

Quem é quem?

João Vassalo nasceu em Lisboa, há 67 anos. Estreou-se na competição em 1998, ao volante de um UMM de motor aspirado e correndo a solo, nos primórdios do TT em Portugal. Foi durante largos anos o piloto de ensaios do construtor português, acumulando, ainda, um lugar na equipa oficial. Com o fim desta formação, passou para o Troféu UMM, tendo vencido a última edição desta competição monomarca, em 1993. No ano seguinte, inicia uma proveitosa ligação com a Mitsubishi, conseguindo, logo nesse ano, o seu primeiro de três títulos absolutos com a marca dos três diamantes. Ao todo, colecionou 23 vitórias em termos absolutos, podendo orgulhar-se de, nos últimos oito anos antes de ter terminado a carreira, só por uma vez não ter terminado no pódio do campeonato. 2001 não foi exceção e Vassalo despediu-se da modalidade com mais um ‘vice’. Foi o adeus do Campeão.

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