Miguel Vilar: o homem que fez um “pit-stop que durou oito anos…”


Falar com Miguel Vilar sempre foi um exercício de emoções. Retirado após um grave acidente de que é um raro sobrevivente, voltou há precisamente 20 anos, em 2005, às competições, oito anos depois do seu grave acidente.

Já lá vão 12 anos que falámos com ele pela última vez, em 2013, quando Miguel Vilar regressou de novo à competição no Vinhos Ervideira Rali TT, ao lado de Maria Madalena. Um colega nosso, viu-o este fim de semana no Circuito do Estoril, e já que não tivemos oportunidade de falar de novo com ele, aproveitamos para recordar duas conversas que com ele tivemos ao longo do tempo. Que a próxima seja mais cedo do que tarde…

Miguel Vilar é para nós um exemplo de vida, ouvir as suas histórias faz-nos pensar de imediato que os nossos problemas não são nada ao pé do que passou. Hoje, continua a comungar uma filosofia chamada Vida, onde o futuro é aqui e agora. Nunca é demais recordar a sua história e a sua brava luta…

Quando corria contra Hakkinen e Coulthard

Miguel Vilar foi um destacado navegador e piloto, nos anos 80 e 90, competindo na Fórmula Ford e mesmo no Europeu de Fórmula Opel, onde correu contra Mika Hakkinen, David Coulthard e Heinz Harald Frentzen, entre outros. Um grave acidente em 1997 quase lhe roubou a vida, quando uma enorme pedra atravessou o parabrisas do carro que conduzia, e o atingiu na cabeça.

Após um mês em coma, a que se seguiram vários anos de longa luta pelo seu restabelecimento, foi considerado um caso raro, devido à boa recuperação que levou a cabo, face às gravíssimas lesões que lhe foram infligidas. Nunca parou de lutar, e em 2011, atravessou os EUA de costa a costa, de bicicleta, para visitar António Damásio, o neurologista português que o tratou.

Há 20 anos, era presença assídua ao comando de karts, e quando conversámos com ele em 2013 tinha aceite um convite de Maria Madalena, que o desafiou a navegá-la no Ervideira: “Tinha a vitória assegurada na classe mais de 55 com 64 por centro de incapacidade“, brincou. Mais a sério, dizia: “Tenho licença desportiva há 40 anos, e esta é uma forma de regressar ao convívio com amigos de longa data. Para quem andava de enfermaria em enfermaria há 15 anos, não estava nada mau…“.

O vencedor do GP da vida

Esta é a pequena história de vida possível de se fazer do menino de Cascais, que andava sempre ‘teso’ e que queria ser piloto de F1 desde os 12 anos de idade.

Mas que não conseguiu.

Conseguiu, isso sim, ganhar o maior GP que nunca pensou ter que disputar: o GP da Vida.

Miguel Vilar (Cascais, 30 de Agosto de 1956):

O menino que que sempre quis ser piloto de F1

As histórias de encantar começam todas por “Era uma Vez…” Esta, que não é de encantar mas apenas para contar, não é exceção. Só que, em vez de um príncipe, está um rapaz de famílias remediadas (“Os meus pais nunca tiveram um carro na vida. Não eram ricos”), que por acaso vivia em Cascais, então terra de “meninos queques, que brincavam com os Dinky Toys no passeio em frente de casa a imaginarem que eram pilotos”. Que, também por acaso, tinha “um tio, o José Vilar, que era dono do cinema São José, o que me dava muito jeito para ver filmes

sem pagar, numa altura em que a TV era a preto e branco, acabava à meia-noite com o Hino Nacional e transmitia os GP [de F1] de vez em quando e quase sempre com o anúncio de que ‘O programa segue dentro de momentos’… e nunca mais seguia!

Um dia, tinha eu 12 anos, fui ver o filme Grand Prix com o Yves Montand e o James Gardner. Marcou-me! Decidi nesse mesmo dia aquilo que queira ser: piloto de F1”. “Claro que nunca fui! Por três motivos: não tinha talento, não era um virtuoso. Se o [Pedro] Lamy chegava a uma pista e em dez minutos aprendia-a toda, eu precisava de mais de três horas de muito trabalho para conseguir o mesmo. Não tinha dinheiro, vivia em Portugal, longe de tudo. Mas ainda hoje tenho o mesmo sonho: sempre quis ser piloto de F1”.

Desistir é que não!

Mas, embora desde sempre sabendo que isso de ser piloto de F1 era mesmo só e apenas um sonho de menino, nunca desistiu. A mesma resiliência que, na fase mais crítica da sua vida, aquela em que teve que lutar por ela, lhe permitiu continuar a viver onde todos os outros teriam desistido: “A minha força de querer foi o que me ajudou”, confessa, com emoção. E a firmeza de estar certo.

“O primeiro rali que fiz como pendura foi com o Fernando [Gaspar, que vivia na casa em frente]. Ainda nem carta [de condução] tinha”. Depois, não houve dique que o parasse: “Nessa altura, tinha um grupo de amigos, onde estava uma miúda americana que eu namorava.

Eram todos da Escola Americana e, depois das aulas, íamos beber uns copos à Carruagem, em Cascais e ouvir umas serenatas de um miúdo que andava sempre com uma guitarra às costas e que se chamava Bryan Adams, antes de largarmos para a GM [na Avenida Marechal Gomes da Costa, em Lisboa], onde estavam os carros de ralis, da equipa Tofa/GM, que eram ali preparados pelo ‘mestre’ Raimundo. Um

dia, [anos mais tarde] estávamos lá a ver os carros, eu e o Fernando [Gaspar] e aparece o MêQuêPê, que tinha acabado de ser terceiro no Rali de Portugal [de 1976]. Já me conhecia de vista, chegou-se ao pé de mim e começou a falar comigo. Então, perguntou-me se não queria fazer um rali com ele como pendura. Claro que disse que sim”.

Foi o início de uma ligação que durou vários anos e se traduziu em sete vitórias em ralis do Campeonato Nacional, entre 1976 e 1979. Mas foram anos duros: “Isso é que eram ralis! [Com o ‘MêQuêPê’] fazia 50 passagens por cada troço do Rali de Portugal, com um Opel City.

O rali tinha nessa altura [1976, 1977] 45 troços e chegávamos a fazer mais de 30 mil quilómetros num fim-de-semana, sempre a chocalhar dentro do carro sem descanso. Lembro-me que, uma vez, partimos um triângulo da suspensão por duas vezes e foram duas vezes que viemos de Ponte de Lima à GM [Lisboa] para o reparar, regressando depois. E na madrugada de domingo quando chegávamos a Algés, onde ele morava, deixava-me na estação e se quisesse ir para casa tinha que apanhar o comboio”.

Mais tarde, foi Campeão Nacional de Ralis (Navegadores no Gr.N) ao lado de Manuel Mello Breyner, com um Audi 80 [quattro], “um ‘tanque’ que não andava nada mas aguentava tudo” e venceu o Nacional de Iniciados “com o Pedro Mello Breyner, num Opel Kadett GT/E de Gr.2 do [João] Anjos”. Disse, a propósito: “Nunca fui campeão com o

‘MêQuêPê’, porque ele era um ‘duro’ e nunca quis inscrever-se no campeonato!” Depois, tornou-se piloto.

Hélio Rodrigues, In Memoriam (texto de 2013)

Da Fórmula Ford aos Troféus

Sem esquecer a diáspora lá fora Um belo dia, ‘descobriu’ que, para chegar à F1, tinha que se sentar por trás de um volante. Então, arranjou um patrocínio e comprou um kart: “Fiz uma coisa chamada Categoria Verde. Correu pessimamente, só fazia asneiras”.

Logo a seguir, uma surpresa: “Trabalhava na secção de compras de uma multinacional alemã, a Hoechst, rival da Bayer. A minha tarefa era basicamente fazer listas de ofertas aos clientes.

Por isso, pelo Natal, eles ofereciam-me sempre prendas – e sempre garrafas de vinho. Ora, como eu não bebo, um dia chateei-me e disse-lhes que, se quisessem dar-me alguma coisa, que me dessem algo de que eu gostasse.

Então, ofereceram-me um curso de pilotagem de F3 na escola francesa Avia-La Chatre. Custava 100 contos. E não me saí mal: apesar de mal chegar com os pés aos pedais, fui um dos seis ou sete finalistas, em mais de 500 tipos!

No ano anterior tinha ganho o [Éric] van de Poele, que depois chegou à F1. Nesse ano, o miúdo que ganhou meteu-se no carro para ir até casa e morreu no caminho, num acidente. Então, repescaram o segundo classificado, o [Éric] Hélary”. Mais tarde, essa escola veio ao [Autódromo do] Estoril e trouxe um F1. Tornei-me monitor deles e foi a única vez que andei de F1 – era um Lola verde, que tinha sido do [Ivan] Capelli.”

Depois, em 1985, fez uma corrida de FF1600, em Portugal, com o carro que era do PêQuêpê e foi nono. Em 1986 e 1987, fez todo o campeonato nacional com as cores da Nescafé.

Então, “em 1988 fui ver uma corrida do [António] Simões a Inglaterra e ele apresentou-me ao [Dan] Partel, [o criador da Fórmula Opel]. Fiquei deslumbrado e só queria fazer aquilo.

Consegui meia dúzia de tostões, uns 2000 contos, na Nescafé e que passassem as corridas no [programa] Rotações na RTP.

Fiz esse ano com uma equipa chamada Crystal Racing e o seguinte com uma equipa de um alemão, que era concessionária da Nissan e vivia ao pé de Hockenheim.

Só tinha um carro, que era também o de demonstração para os jornalistas e levava-o num pequeno camião, onde só lá cabia ele e montes de caixas com latas de cerveja”.

Entre os seus adversários dessa altura, lembra-se de Mika Hakkinen e Allan McNish, com quem “ia às pizzas em Inglaterra, com o meu R5 GT Turbo, porque não tínhamos dinheiro para mais, apesar de eles serem pilotos das Marlboro”.

Desfeito esse sonho regressou a Portugal: “Fiz a equipa Best Racing e, em 1991 e 1992, fiz o campeonato de FF1800. Depois, fiz o [Troféu Renault] Clio em 1993, o [Troféu Toyota] Carina E em 1994 e, nos dois anos seguintes, o [Troféu VW] Golf GTI”. Até que, no início de 1997, a sua vida mudou de forma radical. O sonho passou a ser outro.

Correr em ‘Brandesastre’

Era uma vez os três da vida airada, o Cócó, o Ranheta e o Facada. Esta é a estória das nossas infâncias. Mas a de Miguel Vilar tem outros intervenientes: os três da vida airada eram outros: “Entre o meu grupo de amigos de Cascais, havia o saudoso Tomaz de Mello Breyner e o irmão Pedro. Eram netos do Ricardo Espírito Santo [fundador do BES] e eram donos da Quinta do Peru, onde hoje fica a quinta do Conde, [então] um enorme e vazio descampado.

Nenhum de nós tinha carta [de condução], mas era frequente pedirmos ‘emprestada’ a carrinha lá de casa, que era uma VW Variant. E lá íamos a assapar, rumo à Quinta do Peru, onde tínhamos feito um circuito de terra a que demos o nome de ‘Brandesastre’ . Passávamos lá horas, todos dentro do carro, em longas derrapagens controladas, que até fariam corar de vergonha os Vatanens e os Alens dessa altura, com o Tomaz ao volante. O único problema então era saber quem tinha dinheiro para pagar a Ponte [25 de Abril], pois éramos uns tesos e nem tínhamos os 25 tostões que custava a portagem”.

As bicicletas, um prazer solitário

As bicicletas sempre fizeram parte da vida de Miguel Vilar, em especial a partir de 2010: “Fui até ao Algarve de bicicleta. Fiz a estrada vicentina e o bichinho ficou”. Mais tarde, percorreu a América de bicicleta, “desde Jacksonville, na Florida, até Los Angeles. Terminei a viagem na porta principal do mesmo local onde, em 1984, o Carlos Lopes conquistou aquela maravilhosa e emocionante Medalha de Ouro nos Jogos Olímpicos – no Los Angeles Memorial Coliseum. Ainda lhe pedi para ser ele a dar-me a bandeirada de chegada, mas não foi possível, era muito longe”.

Desta viagem “de 4000 quilómetros, com pouco mais de 2000 euros no bolso”, recorda a solidão, os Estados Unidos mais profundos, “onde o Alentejo é a ’24 de Julho’ às quatro da manhã! Aí, no Mississipi, na Louisiana, no Novo México, as pessoas vivem tão mal, tão longe, que nem sequer sabem onde fica a Europa. Nem nunca ouviram falar”. Depois, “foi a viagem entre o Cabo da Roca e o Cabo Norte”. Uma outra realidade, choques ainda mais vibrantes: “Todos nós já ouvimos falar da Finlândia, o famoso país dos Mil Lagos.

Pois aquilo não tem mil lagos, tem um milhão de lagos! É só lagos e mais lagos, floresta e mais floresta. E renas! Se nos Estados Unidos ainda é fácil encontrar uma povoação de 100 em 100 quilómetros, na Finlândia não. Vês uma placa que diz, por exemplo, ’Cascais, 3 km’. Vais andando e esse ‘Cascais’ é só uma casa! É que muitos de nós desconhecemos que a Noruega, a Suécia e a Finlândia, todos juntos, pouco mais têm que a população de Portugal! E são dez vezes maiores”.

Mas dessa viagem ficou uma estória diferente, saudosa: “Na Suécia, fiquei uma noite num pequeno hotel, no meio do nada. Gente simpática, um grande banho quente… e centenas de fotografias nas paredes, de corridas de F1. Estavam lá o [Niki] Lauda, o [John] Watson, o Ronnie [Peterson], o [Mario] Andretti. Tudo autografado.

Estavam lá todos. Não percebia nada daquilo e só pensava que o dono devia gostar muito, mas mesmo muito de F1. No dia seguinte voltei à estrada e, após muito pedalar, a seguir a uma curva à direita, lá estava a placa: Anderstorp, a pista onde se realizava o GP da Suécia [entre 1973 e 1978], percebi tudo: aquele pequeno hotel era onde ficavam todos os pilotos de F1! Claro que entrei e fui dar uma volta à pista, de bicicleta”.

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