» Textos: José Luís Abreu c/Martin Holmes

» Fotos: Martin Holmes Rallying e Interslide/P. Maria/P. Pacheco

 

Rali de Portugal 2001: Há 20 anos, o céu abateu-se na terra


O ano de 2001 fica marcado pelos ataques terroristas em Nova Iorque, e em Portugal, pela tragédia decorrente da queda da ponte de Entre-os-Rios, mas no desporto motorizado ninguém esquece o Rali de Portugal 2001, provavelmente a prova mais difícil de dirigir tal o rol de acontecimentos resultantes do (muito) mau tempo que assolou Portugal nessa altura. Está a fazer exatamente agora 20 anos que o céu se abateu sobre a terra…

Não há como esquecer o Rali de Portugal de 2001, o último antes de um longo hiato ‘patrocinado’ por interesses superiores. A FIA tinha um problema, a Alemanha. Um país de grandes nomes dos ralis, que não tinha, e queria, uma prova no WRC. Sendo um país tão forte e poderoso, a questão não era se conseguiria lugar no calendário, mas sim quem sairia.

Neste contexto, como sempre sucede, ou há coragem para tomar decisões, ou segue-se pela via mais fácil. Esperar que alguém se coloque a jeito, e deixar cair a ‘marreta’. Foi o que sucedeu ao Rali de Portugal, em 2001, um evento que colocou dificuldades aos organizadores como poucas vezes se tinha visto na história da competição nascida em 1973, e num país em que tormentas daquele calibre acontecem uma a cada 20 anos, calhou mesmo naquela fatídica semana.

Recordo-me bem. Se no Shakedown ainda consegui o milagre de tirar duas ou três fotografias com o céu azul a ver-se, nos três dias seguintes caiu água ininterruptamente. Acho que nunca mais verei tanta lama junta…

Para os organizadores, equipas, pilotos, navegadores e também para o público, o Rali de Portugal de 2001 foi um dos eventos mais difíceis de sempre.

Nevoeiro, chuva, muita água, lama, mesmo muita lama. Ainda há dias falava com Bruno Magalhães que se lembra bem de ter ficado, ele e vários outros pilotos, atascado na lama. Nesse evento, apenas 25% dos concorrentes chegaram ao fim, e nem um carro de duas rodas motrizes. Entre eles, Armindo Araújo!

Curiosamente, a prova correu bem em termos desportivos, foi muito emotiva, registando-se um final empolgante durante o qual Tommi Mäkinen, em Mitsubishi Lancer, recuperou a liderança no último troço, em Ponte de Lima Sul, deixando Carlos Sainz, em Ford Focus, a apenas 8.6 segundos.

No final de cada um dos três dias de prova, a margem entre Mäkinen e Sainz nunca foi maior que 17.4s, registo do final do primeiro dia.

No segundo, a diferença caiu para 13.0s e à entrada do último troço, fruto de uma escolha mais acertada de pneus em Ponte de Lima Oeste, Sainz tinha 0.3s de avanço.

Depois duma fabulosa luta na estrada, Tommi Mäkinen bateu Carlos Sainz no último troço da prova. A este nível foi um super rali. Absolutamente inesquecível. A fantástica foto de Tommi Mäkinen, hoje Chefe de Equipa da Toyota Gazoo Racing no WRC, na altura piloto da Mitsubishi no WRC, a olhar pelo retrovisor do seu carro, já depois do controlo horário após o final de Ponte de Lima Sul, à espera do que conseguiria fazer Carlos Sainz, espelha bem o que foi aquele rali a esse nível.

O pior foi o resto, já que com todos os problemas que se sucederam, Portugal ‘perdeu’ o seu rali…

Os relatórios dos observadores da FIA deram nota negativa à organização, alegando que esta não deveria ter permitido a realização de alguns dos troços e o organismo internacional penalizou mesmo a forma como a direção da prova tomou decisões que punham em risco a segurança dos pilotos, sem se aconselhar junto da FIA.

A organização ainda refutou as acusações, mas a decisão estava tomada e o ‘TAP’ foi excluído do Mundial, dando lugar ao Rali da Alemanha.

A economia germânica e a dimensão do seu mercado automóvel eram fortes argumentos, aos quais a FIA não foi insensível, e a sua inclusão no campeonato tornou-se quase inevitável, até porque a posição do nosso país na Praça da Concórdia estava francamente debilitada após a morte de César Torres.

Os palcos de Fafe, Viseu, Ponte de Lima, Arganil e muitos outros baixaram o ‘pano’, despedindo-se dos melhores artistas do mundo, na esperança de que um dia o espetáculo voltasse àquelas paragens.

Seis anos depois o ACP devolveu o Rali de Portugal ao WRC, e, marcados pelo temporal de 2001, rumaram ao solarengo Algarve para o regresso em 2007.

Ironicamente, a prova candidata de 2006, no Algarve, foi marcada por um… imenso temporal.

No Algarve o ACP montou grandes ralis, fantásticos do ponto de vista dos pilotos, e da pilotagem, mas quem viveu muito o Rali de Portugal, dentro e fora dos troços, sentia que faltava algo. E esse ‘algo’ era o Norte.

Inferno vindo do Céu…

Voltando a 2001, essa semana de 5 de março foi um enorme pesadelo para os organizadores do Rali de Portugal. Corria a segunda semana do mês, normalmente uma altura agradável do ano em que o inverno começava a mascarar-se de Primavera. Mas desta vez as mudanças sazonais estavam atrasadas.

Curiosamente, a última vez que tinha chovido a sério no Rali de Portugal tinha sido 10 anos antes, em 1991.

Pelo meio, a chuva tinha feito alguns estragos – por exemplo em 1995 – mas só aqui e ali, nada como 1991, e muito menos como 2001.

Esse ano ficou também marcado por uma nova sede, no Europarque, em Santa Maria da Feira, a sul do Porto, mas o percurso era muito semelhante aos últimos anos.

Mas desta vez, o nevoeiro, a chuva, a água, a lama e as pedras mudaram completamente a face do evento, pois foram a consequência inevitável de um inverno muito complicado. Recorda-se da queda da Ponte de Entre-os-Rios? Foi consequência desse inverno! Dias antes do Rali de Portugal, a 4 de março de 2001.

Esta seria a última vez, durante 13 anos, que o principal evento automobilístico do país se realizaria no norte ou centro do país. Passaram seis anos até que a FPAK e o ACP fossem autorizados a realizar novamente um rali do Campeonato do Mundo.

O mau tempo desse inverno significou um percurso que não proporcionou a habitual mistura de estradas suaves com outras mais duras.

Sem que tivesse parado de chover um minuto que fosse, passe o exagero e fique a ideia, nas semanas anteriores à prova isso significou que as estradas foram ficando mais e mais danificadas, e por isso o rali tornou-se uma corrida contra os elementos, primeiro, para os organizadores, pois tinham que manter as estradas abertas para os reconhecimentos, e depois para as tornar transitáveis para o próprio evento.

No fim de semana anterior à prova o tempo parecia querer mudar para melhor. Muito momentaneamente, o sol voltou a ser visto no norte de Portugal, mas depois chegou mais e mais chuva…

Os reconhecimentos foram um pesadelo.

Os pilotos privados ficaram muito frequentemente presos nas estradas e precisavam de ajuda para voltar a colocar os seus carros a andar.

A Hyundai era a única equipa que usava carros de tração a duas rodas nos reconhecimentos e Kenneth Eriksson recordou o calvário: “Em quase todos os troços ficámos presos. Tentar conduzir na lama tornou-se impossível, era muito complicado concentrarmo-nos em fazer notas de ritmo adequadas.” A Citroën tinha Philippe Bugalski e Jesus Puras com Saxos, mas o espanhol teve dois acidentes nos reconhecimentos e voluntariou-se para que o seu carro fosse conduzido no evento por Thomas Rådström.

Dias antes da prova houve uma enorme tragédia quando uma ponte de 100 anos, sobre o rio Douro, desmoronou, perdendo-se 59 vidas.

A maioria das pessoas viajava num autocarro, que caiu ao rio com o desmoronamento da ponte.

No rali, o drama começou logo no shakedown quando Hamed Al Wahaibi bateu de frente numa árvore com o seu Subaru, danificando-o fortemente.

Os regulamentos do campeonato exigiam que os pilotos da Teams’ Cup, uma espécie de taça para equipas privadas, disputassem todos os eventos nesse ano,e o carro ficara inutilizado.

Mas havia um carro com especificação de asfalto nas instalações da Prodrive em Banbury, e este saiu do aeroporto de Coventry às 5h15 na manhã da largada do rali, num Antonov 12 fretado. À chegada a Portugal, o carro foi especialmente examinado e autorizado a iniciar a prova.

Primeiras dificuldades

As táticas entre as equipas eram bizarras. A Peugeot escolheu pneus de lama como um dos seus dois padrões de piso permitidos, mas o piloto da Mitsubishi, Tommi Mäkinen, usou pneus de terra normais com um enorme corte à volta do pneu, adequando-o um pouco melhor à esperada lama.

Tradicionalmente, o desafio do rali consistia em moderar a velocidade, evitando danos causados aos carros pelas duras condições do terreno, mas desta vez tratava-se apenas de sobrevivência.

Muito poucos testes prévios úteis tinham sido realizados em Portugal nesse ano, quase todos foram realizados em Espanha, mas isso revelou-se um erro monumental, pois com aquele inverno as equipas teriam aprendido bem mais o que fazer naquelas condições. Basicamente, ninguém nunca imaginou uma tempestade daquelas.

Mas Armin Schwarz tinha nas mãos um autêntico ‘tanque’, um Skoda Octavia WRC, e era dos pilotos mais felizes: “Estradas difíceis podem ser boas para a Skoda! Acho que nunca vi condições tão más em Portugal nos últimos 10 anos”. Na verdade, o alemão estava enganado, os dois Skoda abandonaram logo no segundo troço.

O rali arrancou na quinta-feira à noite, com a super-especial de Baltar, numa noite inacreditável de chuva.

Havia muitos rumores de que o troço teria de ser cancelado, mas com tantos e tão resilientes espetadores em Baltar, esta era uma grande ocasião para as pessoas da região. Tinham sido feitos grandes esforços para preparar a pista antes do evento e anular teria sido uma pena.

As condições eram mesmo terríveis, com muita chuva, nevoeiro e lama. Mäkinen fez o tempo mais rápido, na frente dos Peugeot de Marcus Grönholm e Harri Rovanperä. Após cerca de 40 dos 94 concorrentes terem passado, foi mesmo necessário parar o troço. Mäkinen explica porquê: “A visibilidade era tão má que mal se via para onde ir. Não se via mais do que 20 metros, e andar nestes carros assim era muito complicado.”

Saltar sem ver…

Quando o rali recomeçou na manhã de sexta-feira, a meteorologia teve um impacto ainda maior na prova. Os três primeiros troços do dia, Vizo, Fafe/Lameirinha e Vieira/Cabeceiras, deveriam ser todos repetidos, mas apenas o Vizo teve segunda passagem, já que os restantes dois troços eram impossíveis de se realizar segunda vez.

A PE6 foi cancelada porque os carros de abertura dos troços, que eram de duas rodas motrizes, não conseguiam passar. Os pilotos privados em carros de tração às duas rodas já tinham tido muitos problemas: um dos pilotos afirmou ter passado uma hora a tentar concluir um troço.

A PE7, Vieira/Cabeceira, a complicada Serra da Cabreira foi cancelada por razões de segurança. Os organizadores revelaram que as nuvens baixas impediram que o helicóptero de segurança voasse, outros disseram que tudo se deveu a uma ambulância presa na lama!

Para que se perceba um pouco melhor como estava aquele rali, Gilles Panizzi estava totalmente confuso com o nevoeiro: “Só soube que tinha passado o salto em Fafe quando o carro aterrou!” Também Carlos Sainz se viua braços com problema: “Foi horrível, nunca na minha carreira tive outra prova com tanto nevoeiro, lama e chuva. Nunca esquecerei essa prova por causa disso.”

No final, quatro troços foram anulados, muitos outros interrompidas antes que todos os concorrentes os terminassem.

No sábado as condições melhoraram um pouco, passaram a ser mais secas e menos exigentes, mas referir aqui a palavra secas é uma escrita mesmo muito otimista. Foi neste dia que o Rali de Portugal visitou pela última vez em competição os troços de Arganil, com duas passagens pelo Piódão (Oliveira do Hospital), Arganil e Góis.

Tendo em conta o tipo de piso, se na montanha que ladeava o Piódão as coisas até se desenrolaram de forma aceitável, com muita lama mas nada que prendesse os carros, já o troço de Arganil esteve impossível, com a lama e os seus ganchos (leia-se ‘cotovelos’) a tornarem a vida quase impossível às equipas. Nem o Delegado de Segurança escapou…

“O Safari com chuva é um verdadeiro passeio comparado com este Rali de Portugal”, disse Nicky Grist, co-piloto de Colin McRae.

Há outra nota curiosa. Uma das críticas à prova teve a ver com o facto das ambulâncias não terem condições para rodar nos troços em caso de acidente, mas a verdade é que o Delegado de Segurança da FIA, Jackec Bartos, andou de jipe e mesmo assim ficou atascado em Arganil: “Não há muito mais a dizer quando um carro da organização fica atolado. Isso significa que não havia mesmo condições de segurança”, disse Richard Burns.

No troço da Aguieira, que foi anulado, as notas de um batedor da equipa oficial da Hyundai só tinham uma coisa escrita relativamente ao troço: “100% lama!”

0.3s antes do último troço…

Mäkinen, que cumpria a sua centésima prova no WRC, conseguiu uma vitória in ex-tremis, ao terminar 8.6 segundos à frente do Ford de Carlos Sainz, isto depois de ter entrado para o último troço 0.3s atrás do espanhol, que perdeu o rali duma forma nada usual. Foram muitos os que estranharam a diferença de 8.9s num troço de 11.15 Km, mas a verdade é que o espanhol teve um problema no carro… devido à lama, que tapou uma pequena válvula, o bastante para tirar algum rendimento ao carro.

Tendo em conta como Mäkinen andou naquele troço, provavelmente ganharia o rali à mesma, mas aquela diferença tinha que ter outra explicação. E teve, novamente a lama a prejudicar o rali…

Esta foi a penúltima vitória da Mitsubishi no WRC. Marcus Grönholm, em Peugeot, foi terceiro e Richard Burns quarto no seu Subaru. Os novos Hyundai Accent WRC de segunda geração terminaram no sexto e sétimo lugares, e entre as equipas do WRC apenas os ‘tanques’ da Skoda ficaram pelo caminho.

Nenhum carro apenas com tração a duas rodas foi capaz de chegar ao final.

No entanto, a história principal não foi tanto o autêntico horror que os pilotos e equipas viveram no rali, mas sim o tudo o que veio depois.

A FIA estava a atravessar a sua habitual crise com a formulação do calendário do Mundial de Ralis. A competição já incluía 14 provas em 2001 e a FIA estava sob forte pressão para integrar a Alemanha, um importante país fabricante de automóveis e uma nação que só recentemente se tinha estabelecido após a reunificação.

Foram aproveitadas as falhas no Rali de Portugal, nomeadamente as questões de segurança, que deveriam ter levado a que pelo menos a primeira parte do rali fosse cancelada.

No entanto, os organizadores encontravam-se numa situação difícil. Não era possível alterar significativamente o traçado da prova, pois a polícia estava contra e alegava que isso resultaria num congestionamento catastrófico do tráfego e num grande aumento do risco de segurança.

A verdade é que a organização do Rali de Portugal teve pela frente um enormíssimo conjunto de situações que eram quase impossíveis de lidar, como a questão ambulâncias de quatro rodas motrizes. Pormenores como os carros que farão de ‘000’ são decididos com vários meses de antecedência e ninguém imaginou um rali com aquele tempo, que seria impossível para um Hyundai Coupé de duas rodas motrizes.

É verdade que o relatório da prova foi muito desfavorável para os organizadores, mas o que o Delegado de Segurança da FIA, Jacek Bartos, se limitou a fazer foi avaliar os items da sua check list.

Era fácil lá meter a cruz no mau, sofrível, suficiente, bom, muito bom, excelente, mas não houve contexto, houve sim o pretexto certo que a FIA precisava.

Não quer isto dizer que tudo correu às mil maravilhas no Rali de Portugal de 2001, nada disso, houve erros a mais, mas com aquelas condições, era quase impossível fazer melhor.

Por isto tudo, a situação do Rali de Portugal era a saída perfeita para um dilema político da FIA. Por uma razão ou outra, Portugal foi retirado da WRC.

Mas o Automóvel Clube de Portugal não desistiu. De 2002 a 2006 realizou ralis a contar só para o Campeonato Nacional de Ralis, primeiro em Macedo de Cavaleiros, depois, a partir de 2005, no Algarve. As autoridades locais ofereceram bom apoio comercial, e era uma área em que o tráfego e a quantidade de espetadores era menos problemática. Em 2007 Portugal regressou ao WRC e tudo já estava calmo, mesmo se o sul não capturou o mesmo espírito dos velhos tempos.

Os promotores do campeonato e as equipas recordavam ainda o notável apoio dos adeptos do Norte do país.

Uma nova estrutura comercial das autoridades locais que permitiu que o rali regressasse ao seu ‘coração’, ao norte, em 2015. E agora em 2019, volta ao Centro, dando-se agora um novo passo para devolver o Rali de Portugal a mais uma das suas três Catedrais, Arganil, Fafe e Sintra. Só falta esta última e já faltou mais…

O mesmo mau tempo que arrasou por completo o Rali de Portugal de 2001, e o consequente afastamento da prova do WRC, foi talvez o momento que mais contribuiu para que o nível organizativo do Rali de Portugal seja o que é hoje. Uma máquina de fazer bem.

Até o público, que tantas vezes condicionou a prova, é hoje em dia um exemplo em todo o mundo, quer seja pela emoção que transmite à prova, quer pelo seu comportamento no acatar das medidas de segurança.

Há quem diga que o Rali de Portugal de 2001 é uma prova para esquecer. Não, bem pelo contrário, é bom lembrar para não se repetir e se a meteorologia nos voltar a pregar partidas, já é mais difícil estarmos distraídos…

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