» Textos: Por Nuno Branco

 

HISTÓRIA DO RALI DE PORTUGAL, CAPÍTULO I, 1967 – 1972, CÉSAR SONHA, A OBRA NASCE


Etapas com mil quilómetros, disputadas à noite e com um piso demolidor, depressa fizeram eco nos quatro cantos do mundo. Num ápice, O TAP atraía os ases do volante e Sintra, Arganil e Cabreira, faziam os primeiros estragos…

Ano da graça de 1966. Durante a entrega de prémios do Rallye da TAP, prova organizada pelo Grupo Cultural e Desportivo da companhia aérea portuguesa, inicialmente idealizada para os seus trabalhadores e, mais tarde, aberta a outros concorrentes, o Engº Vaz Pinto, membro do conselho de administração da empresa, anunciava os planos para o ano seguinte: transformar uma manifestação sócio-cultural num grande evento internacional, atraindo os melhores pilotos da Europa para uma competição desportiva que deveria promover o país, trazendo igualmente retorno económico para a transportadora. Estava dado o mote para a primeira edição do Rallye Internacional TAP. À frente dos seus destinos, estaria Alfredo César Torres, notável piloto que havia já colaborado na organização das últimas edições “amadoras” da prova.

Traçando como objectivo a integração, a curto prazo, no Campeonato da Europa de Ralis, a equipa liderada por César Torres delineou o rali à imagem do Monte Carlo de então, com partidas de várias cidades europeias, que convergiriam para um ponto de concentração, seguindo-se depois um itinerário comum com milhares de quilómetros percorridos em escassos dias. A escolha de um traçado bastante duro para mecânicas e pilotos, foi a forma encontrada pela organização para capitalizar prestígio e atrair os melhores pilotos nacionais e estrangeiros. Nascia assim em Outubro de 1967, o Rallye Internacional TAP, prova que iria marcar o panorama automobilístico do nosso país. Com ele, nascia também um fenómeno de popularidade, que rapidamente extravasou a vertente desportiva e se tornou num acontecimento nacional com um inestimável impacto na sociedade portuguesa.

SINTRA DECIDE PRIMEIRO VENCEDOR

Das cidades onde a Transportadora Aérea Portuguesa operava, foram dez, as escolhidas pelos concorrentes, para a partida da primeira edição: Londres, Copenhaga, Munique, Amesterdão, Frankfurt, Bruxelas, Paris, Madrid, Porto e Lisboa. Das 72 equipas inscritas, partiram 53 em direcção à cidade espanhola de San Sebastian, iniciando aí o percurso comum com 6 etapas que as levariam às arcadas do Casino do Estoril.

Já nessa altura, Sintra, Montejunto, Caramulo, Lousã e Arganil faziam parte do mapa, mas os troços cronometrados não tinham ainda grande importância. Os ralis decidiam-se nos sectores de ligação, em estradas abertas ao público, com controlos horários distribuídos ao longo do percurso, que obrigavam os pilotos a adoptar de forma constante um ritmo rápido para não penalizar por atraso. A noite assumia preponderância no horário da prova, pois havia menos trânsito e as médias de velocidade a cumprir podiam ser mais elevadas.

O jovem Jean Pierre Nicolas, em Renault 8 Gordini, foi cabeça de cartaz e cabia-lhe o papel de enfrentar uma forte concorrência nacional onde apenas faltou Manuel Gião. José Lampreia liderou no início, mas foi obrigado a abandonar, deixando o comando nas mãos de Nicolas, que apenas o perdeu já na última etapa, com problemas na caixa de velocidades. Quando tentava recuperar a liderança, o francês bateu em Sintra, entregando definitivamente a vitória à dupla Carpinteiro Albino/Silva Pereira, também em Renault 8 Gordini.

O MELHOR E O PIOR DE TONY FALL

O sucesso da estreia trouxera novos desafios. Era primordial assegurar a presença de uma maior contingente de pilotos estrangeiros para que a prova entrasse para o “clube” dos grandes ralis internacionais. A organização tomou então uma série de medidas para promover a prova, colocando anúncios na imprensa estrangeira a convidar pilotos a passar o Outono em Portugal, e criando uma série de incentivos à participação: viagens pagas para pilotos que se deslocassem ao nosso país para alinhar no rali, hotel pago para os que chegassem ao fim e 100 litros de combustível para todos os inscritos. Não é assim de estranhar que a segunda edição do TAP, tenha conseguido estabelecer um recorde de 190 inscritos, máximo que ainda hoje perdura.

O Duelo entre Tony Fall, em Lancia Fulvia, e Paddy Hopkirk, em BMC Cooper, animou a edição de 68. Fall levou a melhor no duelo britâncio, com os portugueses António Peixinho, Francisco Romãzinho e Carpinteiro Albino a completar o top 5.

No ano seguinte, Fall voltou a dominar os acontecimentos. A chuva diluviana e o nevoeiro que marcaram toda a prova, aniquilaram grande parte da concorrência. A organização teve mesmo que anular alguns controlos horários, para assegurar sobreviventes. Chegaram apenas quatro ao final, mas já no Estoril, Tony Fall foi desclassificado, já que se apresentou no último controlo com dois “penduras”dentro do Fulvia. O terceiro elemento, era a sua namorada! Ainda hoje se defende que esta foi a forma de poupar o piloto a uma humilhante desclassificação pelo facto de a sua equipa ter submetido o Lancia a umas suspeitas reparações na Serra da Lousã. A vitória sorriu assim a Francisco Romãozinho e “Jocames”, guiando um Citroen DS 21. Apesar de polémico, o rigor de César Torres conquistou o respeito do mundo dos ralis e a organização viu o seu esforço premiado com a entrada no Campeonato da Europa.

O “TAP” EUROPEU

A inclusão naquele campeonato trouxe consigo uma evolução na estrutura competitiva do rali. Apesar de os sectores de ligação continuarem a ter um papel fundamental, os troços cronometrados, ainda hoje denominados Provas Especiais de Classificação (PEC), começavam a ganhar relevância, pois eram disputados em estradas fechadas ao trânsito, garantindo maior segurança para pilotos e população local.

Apesar da data coincidente com outra grande prova internacional, o Rali Munique-Viena-Budapeste, as principais equipas de fábrica marcaram presença. A Lancia dominou o rali de fio a pavio, e os seus pilotos, Simo Lampinen e Sandro Munari, alternaram na liderança. Tony Fall em Ford Escort ainda deu réplica na fase inicial, mas Arganil iria decidir a prova: Fall desiste, Ove Andersson, em Alpine Renault, tem sorte idêntica e Lampinen descolou de Munari. A completar o pódio, aparecia um jovem chamado Bjorn Waldegard, que havia levado o Porsche 911 à vitória nas duas últimas edições do Monte Carlo. José Lampreia, em Datsun 2000 colocou-se logo a seguir, levando a melhor sobre Romãozinho, em Citroen DS 21 oficial e António Peixinho, em Alfa Romeo 1750.

Os dois primeiros classificados mantinham o favoritismo na edição seguinte. Munari liderou nos quilómetros iniciais, mas o motor do Fulvia não resistiu e Jean Pierre Nicolas colocou o Alpine Renault no comando, gerindo então a prova a seu bel-prazer. Evidenciando a galopante internacionalização do rali, pela primeira vez, nenhum piloto nacional terminou entre os cinco primeiros. Gomes Pereira, em Opel 1904 SR foi o melhor concorrente luso, não indo além do oitavo lugar.

WARMBOLD ESPEROU E ALCANÇOU

No início de 1972, surgiam indícios de que a Federação Internacional iria criar um Campeonato do Mundo de Ralis e o TAP era um potencial candidato. O rali manteve as partidas de várias localidades europeias, mas o número de PEC’s incluídas no percurso comum, subia para 31, representando cerca de 13% da distância total. A dureza continuava a ser um factor preponderante e já nesta fase, muito dificilmente, a vitória escaparia aos pilotos profissionais das equipas de fábrica.

Bernard Darniche reforçou a armada da Alpine Renault, enquanto a rival Lancia ficou em casa a preparar o Rali Sanremo. Esta edição ficou manchada pelo despiste de Colaço Marques, logo no primeiro troço em Ruivães, vitimando o seu navegador José Arnaud. Embalado pela vitória do ano anterior, Nicolas tinha o triunfo à vista, mas a caixa de velocidades do Alpine não resistiu ao exigente troço da Serra da Cabreira e impediu o francês de continuar. Achim Warmbold, que vinha fazendo uma excelente prova com o menos ágil BMW 2002, passou para o comando e abriu o champanhe no Estoril.

António Borges, Romãozinho e Gomes Pereira chegaram a intrometer-se na luta pelas posições cimeiras, mas as péssimas condições atmosféricas traíram as suas aspirações. Giovanni Salvi e Américo Nunes, ambos em Porsche 911, conseguiram ainda assim, honrosos 6º e 7º lugares.

A confirmação da integração da prova portuguesa no Mundial de Ralis, que veria a luz do dia em 1973, era o prémio merecido para um evento cujo êxito alcançado em cinco anos, superou largamente a dimensão desportiva. Numa época em que o desenvolvimento era um privilégio das grandes cidades, as vilas e aldeias do interior do país estavam votadas ao esquecimento. O “TAP” visitava as terras desse Portugal profundo, onde nada acontecia, e o som dos motores quebrava o silêncio das povoações e a rotina da sua gente. O Rali de Portugal foi rapidamente acarinhado pelo povo, que aguardava “religiosamente” a sua chegada, durante os restantes dias do ano. Nascia a festa do rali…

Amanhã, o segundo capítulo, Rali de Portugal 1973 – 1979: O melhor do mundo…