Entrevista Bernard Occelli: “NA LANCIA, QUANDO UM PILOTO DESISTIA, OS MECÂNICOS CHORAVAM…”

Por a 27 Outubro 2022 15:11

Durante anos foi a outra face do sucesso de Didier Auriol. Juntos, dominaram o campeonato francês, conquistaram 16 vitórias no WRC e o título mundial em 1994. Longe da competição, continua hoje a ser uma figura presente no Campeonato do Mundo, passeando convidados VIP, contagiando-os com o encanto dos ralis. Aproveitámos uma visita a Portugal para uma breve conversa onde recordou os anos em que ocupava o banco do lado direito, o que o atraía no Rali de Portugal e o privilégio de ter corrido numa era em que os ralis se disputavam para lá das cinco da tarde…

Começaste a participar assiduamente em ralis em meados da década de 80, numa época que empolgou multidões. Para alguém que viveu esses anos a bordo de máquinas como o Renault 5 Turbo ou o MG Metro, como se explica o encanto destes anos loucos da competição?

Os carros eram simplesmente fantásticos! O barulho, a potência eram coisas absolutamente espetaculares, mas a performance não explica tudo. As provas, em si, eram tremendamente marcantes. Uma aventura. Desde os testes, passando pelos reconhecimentos, ao próprio evento. Pilotos e navegadores estavam juntos cerca de 3 semanas por rali e, inevitavelmente, acabávamos por nos relacionar como uma família. Sei que sou suspeito porque foi essa a época que vivi mas prefiro, de longe, o conceito de ralis dessa época. As provas eram duras e representavam muitas horas de trabalho. Logo nos testes começávamos às 7 da manhã a rodar e fazíamos 800 ou 1000 quilómetros por dia. E cada rali era diferente, tinha as suas particularidades. Hoje as provas são muito mais curtas e tendem a obedecer a um padrão, havendo poucas diferenças entre elas. As coisas acontecem hoje em dia tão rapidamente que os pilotos, navegadores e a gente que anda nos ralis não têm muito contacto com os sítios onde competem. Concentram a sua atenção nas classificativas e não conhecem as pessoas, os costumes ou os restaurantes desses locais que visitam. Nesta perspetiva, fui um privilegiado. O ambiente, a atmosfera era muito diferente…

Como começou a duradoura ligação a Didier Auriol?

Muitas vezes, as coisas acontecem de uma forma ocasional. Nós competíamos em carros diferentes. Eu fazia ralis com um piloto corso chamado Dominique De Meyer e corríamos num Renault 5 turbo. Uma noite, em 1982, durante um rali que nós ganhámos, num jantar organizado pela Renault, confraternizava à mesa com outros pilotos, entre os quais estava o Didier, que me perguntou se tinha planos para o fim-de-semana seguinte, uma vez que precisava de um co-piloto para fazer um rali a bordo de um Renault 5 Alpine. Respondi-lhe que estava disponível e assim começámos a nossa aventura. Ainda cheguei a fazer ralis com outros pilotos, como o Yves Loubet, antes de começar a participar assiduamente com o Didier Auriol. Depois de nos sagrarmos tri-campeões de ralis em França, iniciámos em 1988 a nossa aventura no WRC com o Ford Sierra RS Cosworth.

A vitória na Volta à Córsega em 1988 foi determinante para a vossa carreira mas, o terceiro lugar no rali dos 1000 lagos desse ano, com um carro de duas rodas motrizes e numa altura em que a prova era um feudo dos nórdicos, não terá sido ainda mais importante para a vossa afirmação?

Sem dúvida! Esse terceiro lugar nos 1000 lagos foi determinante. No jantar da entrega de prémios, o Césare Fiorio veio ter comigo e disse-me: “Não quero incomodar o Didier agora mas gostaria de vos pedir para apanharem um avião para Itália. Caso estejam dispostos a isso, eu tratarei de tudo e esperarei por vós em Turim amanhã à tarde!” E assim fomos a Turim. Conhecemos as instalações da Abarth, reunimos com o Fiorio, sentámo-nos num dos Lancia Delta Integrale e, no final do dia, tínhamos assinado um contrato de dois anos com a Lancia.

Integrar uma equipa oficial, ainda por cima a Lancia, que dispunha dos melhores meios e de uma mística muito própria, acredito que os tivesse deixado nas nuvens…

Para nós foi a concretização de um sonho. Para mim, pessoalmente, que comecei a acompanhar ralis no início da década de 70 e me habituei a ver os feitos de pilotos como o Markku Alén, quando me vejo ao seu lado a tirar as fotos oficiais para a temporada de 1989, nem queria acreditar. Até aí, eu competia por pura paixão, com o esforço e os desafios que isso representa e, de repente, começo a ser pago para fazer aquilo de que mais gosto. Parecia efetivamente um belo sonho e, melhor do que isso, era real.

Oito anos a competir ao mais alto nível no WRC, 16 vitórias em ralis e o tão desejado título de campeões do mundo em 1994. Se tivesses que escolher apenas uma prova para contar mais tarde aos teus netos, em qual incidia a sua escolha?

Não seria fácil escolher. Desde o rali dos 1000 Lagos de 1988, às várias vitórias que obtive na Córsega e em Monte Carlo, todas elas tiverem um significado especial para mim. Mas, se tivesse que optar por uma, a minha escolha ia para o Monte Carlo de 1993, especialmente aquela última etapa em que recuperámos um atraso quase impossível de anular face ao François Delecour e acabámos por vencer.

Essa foi uma das mais marcantes recuperações da história do WRC. Poucos acreditavam que fosse possível passarem o Ford de Delecour e Grataloup. O que se passou naquela noite?

Explica-se pela crença. A crença de um, neste caso, o Didier e o receio do outro face à possibilidade de perder o rali. O Delecour acusava toda a pressão que tinha nos ombros e não se conseguia abstrair do facto de a vitória lhe poder fugir. Se olharmos para os tempos daquela noite, o Delecour não perdia apenas para o Auriol mas também para o Kankkunen e, mais relevante ainda, para o Biasion que tinha um carro semelhante ao seu. A confiança ia dando lugar à pressão e isso refletiu-se no cronómetro. O Didier, pelo contrário, acreditava cada vez mais que era possível alcançá-lo e isso acabou por acontecer. Foi Inacreditável! Em condições normais a vantagem que ele tinha dava para gerir mas a pressão de ganhar o Monte Carlo jogou contra ele…

Curiosamente, nenhuma das vitórias que obtiveste, juntamente com Auriol no WRC aconteceu em Portugal. Que sentimento guardas relativamente à prova portuguesa?

Tenho muitas e boas memórias do Rali de Portugal, uma prova que eu gostava imenso porque era extremamente difícil e eu gosto das provas difíceis. Aquelas especiais de Arganil, com nevoeiro e chuva eram um enorme desafio. E depois, o público, claro, sempre presente e por vezes a cometer algumas loucuras. Logo em 1988, na nossa primeira participação em Portugal, tivemos o primeiro contacto com essa realidade. Lembro-me que, algures na zona de Fafe, o público era tanto que eu estava a ditar as notas e fazia referência a uma curva, ao que o Didier me gritava: “mas qual curva, não vejo nenhuma curva?” Ali, atrás das pessoas, respondia-lhe eu. A paixão que os portugueses têm pelos ralis, a gastronomia e as características da prova contribuíram definitivamente para que eu gostasse bastante do Rali de Portugal.

Ao longo de uma carreira, há carros que marcam mais do que outros e há equipas e pessoas que se destacam pela forma como nos contagiam. Acredito que, no teu caso, as coisas não sejam diferentes…

Sim, é verdade. Relativamente aos carros, o MG Metro foi aquele que mais me marcou, pelas sensações que proporcionava. No asfalto era um autentico Kart. O Som do motor, a potência são coisas que não esquecerei. Embora completamente diferentes, as várias versões dos Delta eram igualmente excelentes máquinas mas, nesses anos, o que mais me surpreendia era o ambiente que se vivia na equipa Lancia e o espírito daqueles que lá trabalhavam. Uma coisa sem paralelo! Em todas as equipas por onde passei havia gente muito experiente mas, na Lancia, à enorme experiência juntava-se uma grande paixão, partilhada por toda a gente, em especial pelos mecânicos, e isso fazia uma grande diferença quando comparada com as outras formações. Dou-te um exemplo: quando desistíamos num rali, os mecânicos, nas outras equipas, simplesmente arrumavam o material com a sensação de dever cumprido e regressavam a casa. Na Lancia, tudo era diferente. Quando algum dos seus pilotos abandonava, os mecânicos ficavam inconsoláveis, muitas vezes de lagrimas nos olhos. Tudo era vivido com intensidade e paixão…

Os 17 anos que passaste ao lado de Didier Auriol permitiram-te conhecê-lo como poucos. Como o descreves enquanto piloto?

O Didier era extraordinariamente rápido mas muito sensível às afinações. Quando tudo estava ao seu gosto era imbatível mas, quando o carro não estava 100% afinado, isso refletia-se na sua confiança e, consequentemente na forma de abordar os troços. No lado oposto estava o Juha Kankkunen, com quem fizemos equipa na Lancia e na Toyota. Para o Kankkunen, a afinação do carro não influenciava a sua confiança e, mesmo que não estivesse ao seu jeito, arrancava para qualquer troço com a moral em alta, disposto a dar o máximo…

Quando terminaste a tua carreira no WRC, e sendo quase obrigatório nos pilotos e navegadores franceses, experimentaste as sensações do Dakar mas não ficaste “cliente”…

É verdade. Em 1997, estreei-me no Dakar integrado no projeto SsangYong, ao lado do meu amigo Patrick Tambay e voltei no ano seguinte, de forma amadora, fazendo equipa com um outro amigo, jornalista. Mas o Dakar não me fascinou e fiquei sem vontade de repetir a experiência. Cativa-me muito mais a precisão que é necessária numa prova de ralis, disputada ao segundo, onde temos que descrever cada metro da prova. Nas maratonas de todo terreno, as coisas não se passam assim e por isso não me entusiasmou verdadeiramente.

Apesar de teres arrumado o fato de competição, nunca deixaste de estar ligado aos ralis, continuando, ainda hoje, a acompanhar o “circo” do WRC nos quatro cantos do planeta. O projeto “European Sport Communication” permite-te manter viva essa paixão pela modalidade?

Decidi criar a “ESC” logo após a minha despedida da competição, em 1999. Percebi que, cada vez mais as marcas, valorizavam deste tipo de serviço e isso permite-me continuar ligado aos ralis, de que tanto gosto. Na ESC organizamos viagens para os convidados das marcas envolvidas na competição, desde jornalistas e patrocinadores a convidados VIP. Criamos autênticos fatos à medida para cada evento, desde as viagens, alojamento à deslocação até aos troços, passando por deslocações de helicóptero, tudo o que for necessário. Trabalhamos com marcas como a Michelin, Hyundai, Citroën e, mais recentemente, alargámos o âmbito do serviço a outras provas como as 24 horas de Le Mans ou o Dakar…

Desde o início do milénio, os pilotos franceses, inicialmente Loeb e agora Ogier, têm vindo a dominar o Mundial de Ralis dando corpo a uma geração de ouro para as cores gaulesas. Antevês algum outro piloto francês a poder dar continuidade a este domínio tão expressivo?

Durante anos, os finlandeses deram cartas. Começavam a conduzir muito cedo, com 14 anos ou menos e, quando chegavam às provas, já tinham uma grande experiencia, sobretudo em terra mas, pilotos como Auriol ou Sainz, vieram, de alguma forma, mudar o rumo da história. A federação francesa tem estado a fazer um trabalho importante na criação de condições, quer para o aparecimento de jovens talentos, quer para a seleção desses valores e isso tem estado a gerar frutos, como o comprovam Loeb e Ogier. Mas, hoje em dia, com as regras atuais dos ralis, não é fácil essas jovens promessas vingarem porque o essencial para se ser bem-sucedido é ganhar experiência e o facto de se passar apenas duas vezes nos troços não lhes permite adquirir prática e evoluir. Faço aqui um paralelismo: quando eu e o Didier chegámos à Finlândia em 1988, passámos 11 ou 12 vezes em cada troço e isso foi determinante para conseguirmos andar ao nível dos pilotos mais experientes…

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