» Textos: Por Nuno Branco e João Costa

» Fotos: Fotos Arquivo Autosport

 

Recordar o Rali Londres-México de 1970: Mikkola levou a taça


Cumprem-se hoje 50 anos do dia em que o Rali Londres-México passou por Portugal. De Arganil à Pampilhosa da Serra, na madrugada de 25 de abril de 1970, a caravana da prova passou pelo nosso país, numa noite em que Arganil não pregou olho, recebendo, com pompa e circunstância a caravana dos destemidos que desafiaram essa inesquecível maratona. Quem levou a taça na Cidade do México foi um velho conhecido: Hannu Mikkola de seu nome.

Desde o início da tarde de 24 de abril que a Vila de Arganil vinha acolhendo centenas de forasteiros. Habitantes das povoações vizinhas, jornalistas nacionais e estrangeiros, repórteres de imagem, elementos da organização, dezenas de mecânicos e até alguns turistas estrangeiros emprestavam às ruas uma anormal agitação. Em cada esquina, ouvia-se música portuguesa e, junto ao quartel dos bombeiros, um enorme cartaz com as palavras “Bem-Vindos”, “Welcome” e “Bienvenues”, prestava-se a receber com cordialidade os pilotos e as máquinas que, desde há uma semana, vinham lutando contra as adversidades daquele que era já apelidado de “o rali mais difícil do mundo”.

Portugal era um dos 25 países a integrar o itinerário da prova e Arganil, fazendo jus à fama que conquistara, dentro e fora de portas, através dos Ralis TAP e Rainha Santa, serviria de palco ao único sector selectivo disputado no nosso país.

O World Cup Rally, ou Londres-México, como veio também a ser conhecido, nasceu de uma ideia do publicitário Wylton Dickson e da estrela dos ralis Paddy Hopkirk. A maratona Londres-Sidney, disputada em 1968, estava ainda bem presente na memória de ambos. Enquanto Hopkirk valorizava a atractividade da componente desportiva, Dickson encontrava naquela filosofia de provas os ingredientes perfeitos para por de pé uma máquina de promoção para construtores e patrocinadores. Contudo, da mente de ambos, sairia um conceito ainda mais inovador, juntando dois pesos pesados do desporto espetáculo que, historicamente, seguiam caminhos: o que pouco ou nada se cruzavam automobilismo e o futebol. Com o alto patrocínio do jornal Daily Mirror e do Royal Automobile Club, o World Cup Rally seria assim mais do que uma prova de automóveis. Serviria para ligar a cidade que acolhera a final do Mundial de Futebol de 66, à Cidade do México, onde teria lugar a cerimónia de abertura do Mundial de 1970 e o vencedor do rali, além de um prémio de cerca de 3500 €, teria a honra de entrar no Estádio Azteca, transportando simbolicamente a Taça Jules Rimet, durante a cerimónia de abertura o evento futebolístico.

Para ligar os estádios do Wembley e Azteca, os participantes tinham pela frente uma aventura com cerca de 26 mil quilómetros, atravessando 25 países: Inglaterra, França, Alemanha, Áustria, Hungria, Bulgária, Jugoslávia (actual Sérvia), Itália, França, Espanha, Portugal, Brasil, Uruguai, Argentina, Chile, Bolívia, Peru, Equador, Colômbia, Panamá, Costa Rica, Nicarágua, Honduras, El Salvador, Guatemala e México.

Multidão em Wembley

Domingo, 19 de Abril de 1970. Pouco passava das dez horas da manhã quando Sir Alf Ramsey, o timoneiro que levara a seleção inglesa à conquista do campeonato do Mundo de Futebol, em 1966, deu a partida ao primeiro aventureiro, um Triumph 2500 tripulado por Robert Buchanan, Roy Fiddler e Jim Bullough. Nas bancadas do Estádio do Wembley, cerca de 35 mil pessoas assistiam à cerimónia de partida, que contou com honras militares. Das 106 equipas que haviam pago o equivalente a 350 € pela inscrição, apenas 95 viram a bandeirada de partida.

O percurso europeu da grande maratona contava com mais de sete mil quilómetros, dividido por etapas e dominado por apertados controlos horários que tornavam difícil o seu cumprimento sem qualquer penalização. À partida para a última etapa disputada no “velho continente”, ligando Monza a Lisboa, Rene Trauttmann, navegado por Jean-Pierrie Hanrioud, aos comandos de um Citroën DS 21, liderava a corrida. Na fronteira de Vilar Formoso, eram esperados os primeiros concorrentes ao cair da noite de 24 de Abril, mas resultado do avanço que se verificara no decorrer dos acontecimentos, tal viria a verificar-se ainda durante a tarde, perto das 18 horas. À sua espera, nos primeiros metros em solo nacional, um café retemperador aquecia a alma dos heróis desta aventura. A Organização Internacional do Café, outro dos patrocinadores do evento, colocara “postos de abastecimento” com café quente ao longo de todo o percurso e, em Portugal, representada pela Comissão Interministerial do Café, viria a fazê-lo em Vilar Formoso, Arganil e Lisboa.

A festa portuguesa

Depois da entrada em território português, seguiam-se as passagens por Guarda, Celorico da Beira e Venda de Galizes, até à chegada a Arganil, vila que se engalanara para receber a caravana. Há muito que os órgãos de informação da região, como os jornais “A Comarca de Arganil” ou o “Jornal de Arganil” vinham despertando o entusiasmo na gente da Serra do Açor. A expectativa era grande e ultimavam-se os preparativos para estar à altura do acontecimento. No centro da Vila e nas florestais que cortam o verde daquelas encostas, eram aguardados milhares de pessoas. Elementos da organização, que em Portugal estava a cargo do ACP sob a batuta de César Torres, encontravam-se no local há mais de uma semana. O primeiro concorrente a chegar a Arganil foi o polaco Sobieslaw Zasada.

Passavam 50 minutos das 20 horas de Sexta-feira, dia 24. À chegada, numa iniciativa da câmara municipal, juntamente com a comissão de turismo, cada concorrente recebia um saco com fruta, doces regionais, cerveja e uma fotografia do santuário do Mont’alto, abençoando a longa viagem que os iria conduzir a terras da América Latina.

O controlo de partida para o troço seletivo de 65 quilómetros que ligaria Arganil a Pampilhosa da Serra abria às 3h05m da madrugada e, até ao meio dia de sábado, cada concorrente era livre de escolher a hora a que o iria enfrentar. Até lá, a presença em Arganil era aproveitada para recuperar as mecânicas. Um a um, os sobreviventes iam chegando, refletindo-se no pó, na lama e nas cicatrizes das carroçarias, as agruras de uma travessia cujo pior estaria ainda para vir. Enquanto algumas equipas utilizavam o espaço das oficinas existentes na vila, mobilizadas para o efeito, a Ford montou o quartel general de assistência aos seus carros ali mesmo, junto ao quartel dos bombeiros.

Um camião oficina, 22 mecânicos, motores, portas, suspensões, rodas, faróis, transmissões, entre outras peças, distribuíam-se criteriosamente ao longo do espaço. Apesar da lista de inscritos não contar com nomes portugueses, não faltaram o entusiasmo, a curiosidade e o apoio dos espectadores presentes e até mesmo alguns ases dos ralis da altura, como Luís Netto, Jorge Nascimento ou Heitor de Morais, aproveitaram a oportunidade para se deslocar ao local e ver a forma coma as estrelas internacionais e as suas montadas se preparavam para uma aventura com a dimensão do “World Cup Rally”.

A noite em que Arganil não dormiu, vivia-se ao som dos martelos e de outras ferramentas que devolviam a forma aos 76 carros ainda em prova. Há muito que comida e bebidas se haviam esgotado. Renascença e Rádio Clube Português afinavam os últimos pormenores técnicos para fazer chegar ao resto do país o eco dos acontecimentos daquela madrugada.

À hora prevista (3h05m), no Paço Grande, junto à escola dos rapazes, o Professor José Dias Coimbra, presidente da Câmara Municipal de Arganil, dava a partida ao primeiro destemido a aventurar-se nas estradas florestais que ligariam à Pampilhosa da Serra, passando por Lomba, Camelo, Selada das Eiras,Torrozelas, Folques, Alqueve, Posto de Vigia do Cabeço do Monte Redondo, Casal Novo, Cavaleiros, Fajão, Vidual, Barragem de Santa Luzia, Cabril, e Portela de Sobral Valado.

Para percorrerem as seis dezenas e meia de quilómetros, os participantes tinham 1 hora e 5 minutos. A maioria preferiu completar o percurso de noite, de forma a chegar a Lisboa o mais rapidamente possível, tendo assim mais tempo para a última assistência antes dos carros embarcarem para o Brasil. Seguindo o conselho de Francisco Romãozinho, que ficara incumbido de coordenar, em solo português, a assistência da Citroën, os tripulantes da equipa francesa preferiram abordar o troço de Arganil ao início da manhã, com maior visibilidade.

Apesar disso, foi a Ford a grande dominadora da etapa portuguesa. Roger Clark e Timo Mäkinen foram os mais rápidos, registando 1h03m, menos 1 minuto do que Hannu Mikkola e Rauno Aaltonen e menos 2 do que Jimmy Greaves, todos em Ford Escort 1850 GT. Rene Trautamann foi o último piloto a não penalizar por excesso de tempo, o que lhe permitiu manter a liderança da contenda, seguido de perto por Hannu Mikkola. Seguia-se uma ligação até Lisboa, onde os primeiros deveriam chegar ao início da manhã do dia 25 de Abril. Para a capital já não partiram Edgar Herrmann e Gaston Perkins, que se despistou num dos precipícios da florestal de Arganil.

A chegada a Lisboa

Lisboa acordou cedo, na ânsia de testemunhar um acontecimento único. Ao início da manhã, várias centenas de espectadores, jornalistas, familiares e membros das equipas, acorreram à rotunda da Encarnação, às portas da cidade, onde um controlo horário obrigava os concorrentes a uma paragem, antes do percurso final que os conduziria ao Cais de Alcântara, local onde os 74 carros entrariam em Parque Fechado, entes de uma grua os colocar a bordo do Derwent, o navio que teria a honra de cumprir a longa ligação marítima até ao Rio de Janeiro.

Enquanto isso, a maioria das equipas optou por estender a estadia em Portugal, proporcionando aos seus pilotos momentos que se dividiam entre o repouso à beira mar, na Costa do Estoril e a presença em diversos eventos sociais, levados a cabo por marcas e patrocinadores. A Comissão Interministerial do Café organizou um espetáculo no Casino do Estoril, onde deu a conhecer os encantos da voz de Amália Rodrigues e entregou prémios aos melhores classificados até ao momento.

Enquanto a Ford Lusitana preparava uma receção no Hotel Tivoli, aos pilotos da marca da oval, a J.J. Gonçalves, importadora nacional da British Leyland, oferecia um jantar aos pilotos que conduziam carros da marca. Ao todo, sete equipas oficiais e quinze privadas, às quais se juntariam os jornalistas europeus presentes.

No dia 8 de Maio, tinha início o duro capítulo sul-americano desta história. As aguardadas dificuldades não se fizeram sentir, premiando a resistência da armada Ford que colocou cinco carros nas oito primeiras posições. O sonho de Rene Trautmann não foi além do Panamá e quem herdou o comando foi Hannu Mikkola que encabeçou uma lista de 23 sobreviventes. No dia 27 de Maio, Mikkola, acompanhado por Gunnar Palm, era aclamado por gente de todo o mundo entre milhares de mexicanos no Estádio Azteca. O champanhe derramado na cabeça de ambos anunciava o fim de uma aventura que perdurará para sempre na memória dos que a viveram e em Arganil, 44 anos volvidos, perduram, ainda hoje, recordações daquela empolgante noite em que a vila não foi à cama…

Aventureiros para todos os gostos

Não incluindo qualquer participante português, a caravana que partiu de Londres no dia 19 de abril era um misto de pilotos oficiais, integrados em marcas com meios quase ilimitados e uma maioria de volantes privados, patrocinados pelo espírito aventureiro, e com vontade ilimitada de chegar ao México, vencendo as armadilhas de um percurso que se adivinhava demolidor e, sobretudo, suplantando os seus próprios limites.

A Ford, com 7 Escort 1850 GT era das grandes favoritas, contando com alguns dos maiores nomes de então, como Timo Mäkinen, Sobieslaw Zasada, Hannu Mikkola, Roger Clark, Rauno Alltonen, e ainda a estrela do futebol britânico Jimmy Greaves, que se fazia acompanhar por outro às dos ralis, Tony Fall. A equipa chefiada por Stuart Turner colocou 5 carros nos 8 primeiros classificados da prova. Do lado da British Leyland, um dos Triumph 2.5 PI era conduzido por aquele que encabeçava a bolsa de apostas inglesas e que era também um dos pais do rali: Paddy Hopkirk.

Contado também com Andrew Cowan, a BL prestava ainda apoio a uma série de pilotos privados que utilizavam Austin Maxi, Morris 1800, ou Mini Cooper. No capítulo oficial, havia ainda a destacar a participação dos Moskvitch 412, oriundos da ex. URSS e que eram conduzidos por pilotos da “casa”. Enquanto a Hillman optava por não participar a título oficial, a Citroën apostava numa filosofia mista, já que a inscrição dos seus pilotos era privada mas os concessionários da marca garantiam a assistência ao longo do percurso. Dos nomes que conduziam os DS21 da comitiva francesa, destacavam-se os de René Trautmann, que liderou boa parte da contenda, a sua esposa, Claude Trautmann, Robert Neyret e Paul Coltelloni que se despediu da competição, precisamente neste rali, depois de um acidente no Panamá ter roubado a vida ao seu navegador Ido Marang.

Seria contudo o leque de pilotos e bólides privados a emprestar o maior colorido e a conferir à grande maratona contornos de exclusividade. A liberdade do regulamento assim o permitia, não sendo, por isso de estranhar que, visualmente, estivéssemos na presença de muitos carros semelhantes aos de série, carregados até ao tejadilho para uma longa viagem de férias! A participação de um vulgar Buggy Volkswagen de praia, contrastava com a excentricidade de dois Rolls Royce, um Silver Shadow e um Silver Cloud, este último de um milionário que participou com o filho, gastando, na altura, cerca de 3000€ na compra do carro e 2000€ na sua preparação. Ao longo da prova, tornar-se-ia mediática a prestação do jovem mexicano Perez Vega que se inscreveu com um VW carocha de série, com o objectivo de esquecer o facto de a esposa o ter traído recentemente, o que lhe valeu a alcunha de “el abandonado” …

Reviver emoções, 25 anos depois…

Era inevitável! Depois da reedição do Londres-Sidney, em 1993, quando passavam 25 anos sobre a sua realização no final da década de 60, colocar na estrada uma edição comemorativa dos 25 anos volvidos sobre o Londres-México tornava-se quase obrigatório. E assim aconteceu. Entre 22 de Abril e 21 de Maio de 1995, 59 participantes em veículos clássicos, viveram ou reviveram as emoções de um rali que procurou percorrer grande parte dos caminhos que haviam feito história em 1970, mas o trajeto tinha agora cerca quinze mil quilómetros distribuídos por 18 países e com chegada a Acapulco, no país dos sombreros!

Apesar de menos extenso, o itinerário não acarretava menos riscos, já que, na altura, uma guerra entre o Perú e o Equador obrigou a negociações entre a organização e a embaixada britânica de ambos os países, de modo a garantir um cessar-fogo de 6 horas, tempo necessário para a caravana do rali passar em segurança. Como em 1970, a prova passou por Portugal e revisitou Arganil para a disputa de 2 provas de especiais de classificação: Arganil-Alqueve e Folques-Lomba.

Hannu Mikkola, que havia sido convencido pela Ford a participar nesta aventura, precisamente ao lado de Gunnar Palm, e ao volante de um Escort semelhante ao que havia levado ao triunfo 25 anos antes, foi o mais rápido nas florestais da Serra do Açor, vindo a repetir a vitória final à chegada ao México, seguido pelo australiano Ross Dunkerton, num Datsun 240Z e por outros 43 sobreviventes.

Lisboa voltou a ser o ponto de embarque para a América do Sul, mas desta vez, as máquinas atravessaram o Atlântico a bordo de aviões Antonov com destino a São Paulo…

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