Mémorias de Hugh Bishop


ÓBITO: Foi um dos mais reputados fotógrafos do Mundial de Ralis e colaborador do AutoSport durante muitos anos. Morreu este mês, aos 72 anos. 

 

Martin Holmes com Guilherme Ribeiro

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Hugh Bishop seguiu a cena internacional dos ralis durante quase 40 anos, desde o final dos anos 60, retirando-se depois da atividade. Foi pioneiro no trabalho de freelance nos ralis, quando o trabalho dos media especializados estava ainda na infância, antes mesmo da fundação do Mundial de Ralis. Colaborou com dezenas de títulos pelo mundo inteiro, das quais se destacou o Autosport inglês, que lhe confiou a cobertura dos maiores eventos de estrada. Hugh Bishop era um especialista dos velhos tempos e celebrizou-se a fazer fotos a preto e branco e a cores ao mesmo tempo, usando um braço em que montava as duas máquina fotográficas. Numa delas abria o plano e conseguia fotos com magníficas paisagens, na outra, captava toda a essência e espetáculo dos ralis com ‘bonecos cheios’. Foi também pioneiro no reconhecimento antecipado dos melhores locais para fotografar. Nas próximas linhas, recordamos algumas histórias, contadas na primeira pessoa por um ‘irmão de armas’ que o acompanhou durante muitos anos, Martin Holmes.

Pioneiro

Toda a atividade tem os seus pioneiros. Nos dias tranquilos da fotografia de ralis “freelance” (anos 70 e 80), quando as revistas da especialidade cobriam a modalidade em detalhe, Hugh Bishop apontou o caminho a seguir, oferecendo serviços fáceis de entrega de histórias e imagens prontas a publicar para revistas de todo o mundo. Aqueles eram os dias dos rolos, prévios às máquinas digitais, quando as fotos a cores exigiam uma técnica bastante diferente e se trabalhava com preto e branco, para não mencionar o uso de uma segunda câmara acoplada. O fornecimento de imagens por telégrafo era muito pouco prático, consumia muito tempo e era muito caro. As imagens tinham que se processadas individualmente e, em seguida, entregues em mão por correio especial ou por via aérea para estarem prontas para ser publicadas um ou dois dias depois, não numa questão de minutos. Histórias e fotografias eram enviadas para revistas especializadas de França, Espanha, Portugal, Japão, Finlândia, Suécia e dúzias de outros destinos.

Ainda me lembro do tempo em que fiquei pela primeira vez atento ao Hugh. Quentin Spurring, o editor da revista Autosport em Inglaterra, pediu-me uma reportagem do Sutton & Cheam MC Tempest Rally, e explicou-me que tinha pedido ao Hugh que fornecesse as imagens. “Quem é esse?”, perguntei. “Tens a certeza que não conheces o Hugh? Ele é muito bom!” E era. Naquela altura, o Hugh estava a tentar estabelecer-se de forma permanente no desporto motorizado, e a fotografia dos ralis era uma porta aberta. E não foi só para as publicações inglesas Autosport e Motoring News (atualmente Motorsport News), à medida que Hugh cobria os diferentes eventos pelas Ilhas Britânicas e depois no estrangeiro, foi conhecendo jornalistas de países mais longínquos e começou a trabalhar para revistas em todos os continentes.

Câmaras duplas

Hugh reconheceu de imediato os desafios do trabalho nos ralis. Numa corrida, é possível esperar pela volta seguinte para conseguir uma imagem melhor, nos ralis, esta tem que ser conseguida ao primeiro disparo. Nas corridas, podia trocar-se de câmaras entre voltas, preto e branco nesta, cores na seguinte. Nos ralis, tinha que se esperar pela chegada a um novo local. Foi assim que o conceito de câmaras duplas surgiu, uma para preto e branco e outra para cores, disparando simultaneamente. Ao montar duas câmaras lado-a-lado numa barra e colocando lentes com a mesma distância focal, o erro de paralaxe era mínimo. E como tirar mais do que uma foto de cada carro que passava com cada câmara? Nos dias anteriores aos facilmente adquiridos sistemas elétricos, os disparos tinham que ser tirados assim que o carro se aproximava, depois o filme rolava e um novo disparo era tirado assim que o carro partia. A todo o tempo as aberturas tinham de ser ajustadas, assim que o sol passava por trás das nuvens. E havia ainda mais uma dificuldade, a maioria dos disparos em ação tinham que ser feitos de noite, com um flash totalmente carregado montado em cada câmara. O desafio último era a mudança de rolo. A mudança de rolo a alta velocidade era uma arte. Tudo isto era parte do trabalho de Hugh Bishop.

As câmaras duplas mantiveram-se a uso até que a qualidade da impressão a cores igualou a do preto e branco. No início dos anos 90, não era mais necessário usar duas câmaras em simultâneo, já que tanto as imagens a preto e branco e a cores podiam facilmente ser reproduzidas com qualidade a partir do mesmo negativo. Naqueles dias, as lentes de tamanho standard eram básicas. As lentes de maior comprimento eram difíceis de manusear e geralmente não davam as imagens que eram pretendidas A preferência do Hugh era tirar disparos frontais a três quartos, imagens que mostravam todos os detalhes do carro enquanto apresentavam o cenário local no seu máximo efeito. Mas, além dos conhecimentos técnicos de fotografia, o trabalho de seguir os ralis era em si um desafio. Planear a forma de maximizar o número de locais para fotografar exigia um conhecimento detalhado do tempo de passagem dos vários carros, uma capacidade de leitura avançada de mapas, e nos dias em que os ralis usavam apenas uma passagem por especial, um trabalho extensivo de reconhecimento dos possíveis pontos de fotografia.

Felizmente, por aqueles tempos, o trabalho dos fotógrafos era considerado uma parte maioritária na promoção de um evento. Quando o trabalho do Hugh se tornou conhecido, ele era convidado pelos organizadores para estar presente nos seus eventos e, gradualmente, foi capaz de ir a mais e mais ralis. Por várias vezes, as imagens aéreas, tal como quartos de hotel e carros, eram providenciadas. Que dias! Eu e o Hugh trabalhamos juntos em inúmeras ocasiões, eu a escrever as histórias e o Hugh fornecendo as imagens. Quando íamos ao mesmo evento, o nosso trabalho era feito em parceria, enquanto o Hugh fazia ambos os trabalhos quando eu não estava disponível. Ele e eu fomos os criadores originais dos anuários World Rallying entre 1978 e 1982. No entanto, o Hugh não gostava de viagens de longo curso. Só muitos anos depois de a Nova Zelândia se tornar parte integrante do WRC é que ele se aventurou até ao outro lado do mundo. Mas ele adorava os magníficos espaços abertos do Quénia, que costumavam ser adorados pelos fotógrafos de ralis.

Memórias

Existem inúmeras memórias dos seus tempos no WRC. A minha favorita é relativa ao invernal Hanki Rally, na Finlândia, disputado maioritariamente à noite, quando eu estava devidamente ocupado como copiloto. Num controlo, os participantes receberam um comunicado urgente. Se tivéssemos alguns problemas, não nos devíamos afastar muito do carro porque os lobos eram ferozes naquela região. Mas eles não avisaram o Hugh, que estava também ele devidamente ocupado a tirar fotografias noturnas. Teria constituído uma saborosa refeição. Naqueles dias, podiam fazer-se coisas que agora seriam impossíveis. Coisas como ficar junto às portas de embarque do aeroporto de Heathrow a perguntar a passageiros se poderiam levar em mão uma embalagem para ser recolhida à chegada por colegas da revista. Ou carregar pilhas de flashes de célula húmida em aviões. Ele adorava o seu trabalho e quando este estava feito pelo dia, o grande prazer de Hugh era visitar locais interessantes para comer.

Aprendi muito com o Hugh. Como trabalhar com o sistema de emissão de bilhetes e usar o sistema de descontos dos velhos bilhetes de voo (incluindo as viagens) para meu proveito. Como as companhias de transporte aéreo trabalhavam, como se arranjar num país estrangeiro, como me proteger de companhias de aluguer de carros pouco honestas e como ultrapassar regras de câmbios no estrangeiro. Este estilo de vida idílico não poderia durar para sempre.

A revolução da internet mudou por completo a forma como as revistas tratavam o desporto. A cobertura dos ralis deixou se ser uma das principais prioridades das revistas. Depois, veio a tomada de posição das relações públicas em relação ao desporto e a sua implícita importância no trabalho publicitário. A era do digital tornou possível não pagar por imagens publicadas. Assim foram saindo os experientes e talentosos profissionais. Hugh sempre viveu com os seus pais nos arredores de Salisbury, no Wiltshire, perto do circuito de Thruxton onde ele fez as suas primeiras fotografias e o Beaulieu Motor Museum, para onde foi trabalhar. Adorava a sua condução. Quando os seus dias no desporto automóvel acabaram, trabalhou como condutor numa companhia de táxis. Agora partiu. Durante quarenta e tal anos de trabalho nos ralis, ele inspirou inúmeros jovens fãs por todo o mundo, que ganharam um interesse para a vida no seu trabalho e colocou um padrão que todos os outros se esforçaram por igualar, o seu trabalho e amabilidade agradáveis para todos.


“Foi também pioneiro no reconhecimento antecipado dos melhores locais para fotografar.


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