» Textos: Nuno Branco

» Fotos: Nuno Branco e Arquivo Manuel Coentro

 

Morreu Manuel Coentro: a sua última entrevista ao AutoSport



Não satisfeito com a informação que era disponibilizada sobre o itinerário das provas, Manuel Coentro começou, ainda nos anos 60, a reunir vários apontamentos quando reconhecia o percurso dos ralis. A pouco e pouco, foi criando o seu próprio esquema e, quando César Torres lhe encomendou um Road Book para o Rali de Portugal, o trabalho de casa estava feito. Nascia assim, pela pena de um português, o modelo de Road Book que vigora ainda nos dias que correm, em provas da FIA. Sentado no seu cadeirão, e na companhia do indissociável charuto, Manuel Coentro recorda-nos hoje histórias que o tempo não apaga.
Breves silêncios, aqui e ali, revelam curtas viagens ao passado. Um passado dedicado aos automóveis, feito de amizades e envolto num espírito único, certamente irrepetível…


Como é que os automóveis entram na sua vida?

Posso dizer que sempre estive ligado aos automóveis. Nomes como o de Mané Nogueira Pinto faziam parte dos meus amigos de infância e os automóveis eram uma presença constante. Fomos crescendo e convivendo na Paulistana, um café que ficava ao cimo da Avenida Fontes Pereira de Melo e fazia um belíssimo café de saco. Era aí o ponto de encontro da ‘malta’, onde paravam o José Lampreia, o Jorge Nascimento, o Jocames, entre muitos outros. Começámos por participar em algumas provas na brincadeira, chegando a ir quatro dentro do carro e, antes de chegar ao controlo, saíam dois, controlávamos e íamos apanhar os restantes mais à frente. Nessa altura, o automobilismo era diferente, as provas decidiam-se nos controlos horários e não pensávamos em classificações. Muita gente participava por causa dos copos e da brincadeira…

Até que, em 1967, decide participar a sério num rali, e logo no TAP…

É verdade. Dei comigo a pensar que podia fazer qualquer coisa com o carrito que tinha na altura, um Volkswagen 1500. Nesse ano surgiu a primeira edição internacional do TAP e achei que talvez fosse engraçado participar. Fui à VW pedir apoio e os tipos aceitaram. Durante mais de um ano, assistiram-me o carro. Com a assistência paga, incluindo os pneus, estava mais à vontade para encarar as provas como queria.

Na altura, a minha profissão de engenheiro de sistemas na IBM, ocupava-me muito tempo, pelo que aproveitava os fins de semana para reconhecer os locais por onde passaria o Rali TAP. Para essa prova, convenci o Manuel Moreira, que era o ‘apoderado’ do José Lampreia, a ser o meu navegador. Nessa altura, a única forma de reconhecer o percurso era através do regulamento, que trazia o itinerário. Não havia ainda Road Book e quem não conhecesse os locais, perdia-se com facilidade. Os troços cronometrados estavam a nascer e os ralis eram decididos nos controlos horários, onde tínhamos que andar em ritmo de troço cronometrado já que se roubavam’ quilómetros em cada setor.

Esse método de ‘roubar’ quilómetros, obrigava a alterar radicalmente o andamento?

‘Roubar’ quilómetros significava que, num setor, cujo caderno referia ter 20 km, tinha na verdade 30, o que nos obrigava a andar sempre a fundo para penalizar o menos possível. O objetivo era dificultar a prova e trazer interesse do ponto de vista desportivo. Mesmo em Sintra, onde era mais difícil ‘roubar’ quilómetros, colocavam-se controlos de 3 em 3 km, para cumprir em 3 minutos, o que daria uma média de 60 km/h. Mas, na verdade, as distâncias acabavam por ser de 3,8 ou 3,9 km, obrigando os pilotos a andar no máximo para não penalizar. Com o nascimento das Provas de Classificação, esta prática acabou por cair, passando a ser as PEC a definir a classificação.

Saber desenhar Um requisito para criar um bom RBA sua participação no TAP de 1967 teve, depois, continuidade?

Ainda fiz mais três ou quatro ralis até o carro gripar, mas a minha vida profissional não deixava muito tempo para os automóveis e parei de fazer ralis, continuando, no entanto, a frequentar a Paulistana e a conviver com a gente do meio.

Como surge a oportunidade de experimentar o papel de navegador?

Em 1969, o Jorge Nascimento desafiou-me a ir com ele à Volta à Madeira. Disse-lhe que nunca tinha lido notas, ao que ele respondeu que não fazia mal, que nos iríamos entender. A prova acabou por ser curta para nós, já que o motor do BMW 2002 gripou e fizemos apenas 7,5 km, porque o mecânico se havia esquecido de apertar a tampa do reservatório do óleo. A partir daí, comecei a fazer ralis ao lado do Nascimento, com quem me entendia bem, e construí uma sólida amizade. Fizemos o campeonato de Grupo 1 em 1970 e acabámos por vencer. Na altura, as provas eram interessantes porque nos batíamos com os Grupos 2 e 3 e acabámos por ganhar ainda uma prova à geral, nos Açores.


a minha vida profissional não deixava muito tempo para os automóveis e parei de fazer ralis, continuando, no entanto, a frequentar a Paulistana e a conviver com a gente do meio


ESTREIA AUSPICIOSA


O dia 5 de Outubro de 1967 assinalou o início da primeira edição do Rallye Internacional TAP. Curiosamente, Manuel Coentro, que haveria de ficar ligado, para sempre, à história da prova, fez aí sua verdadeira estreia em competição. Coentro recorda

ainda o dia em que desafiou Manuel Moreira a ir consigo: “Ele nunca tinha feito um rali na vida mas isso não tinha importância. Disse-lhe para não se preocupar, entreguei-lhe o itinerário e disse-lhe ‘o caminho é esse, vamos embora!’

Consegui fazer o reconhecimento a quase todo o percurso e o Manuel Moreira pediu as notas de andamento ao Lampreia, que lhas emprestou sem hesitar. As notas eram usadas apenas nos poucos troços cronometrados que o primeiro TAP já incluía. O

primeiro troço era disputado na rampa de Valhelhas. Quando arrancámos, o Manuel Moreira começou cantar as notas, mas estas não correspondiam ao percurso onde seguíamos. Eu dizia-lhe: ‘Manel, ou estás atrasado ou adiantado. O que dizes não corresponde a esta estrada’. Ele dizia que não conseguia encontrar as notas do sítio onde íamos e eu, depois de mais algumas curvas, disse-lhe: ‘Fecha mas é essa mer… que nós vamos à vista’! Apesar disso, fizemos com aquele carrito sem força, o 19º tempo da rampa, o que era muito bom. Depois desse troço, tínhamos a descida para o outro lado da serra, em direção a Seia, ainda em terra e, nessa descida, fizemos o terceiro tempo, logo a seguir ao Lampreia e ao Nicolas. Lembro-me do meu amigo Lampreia vir ter comigo e perguntar-me como é que eu conseguira fazer aquele tempo. Respondi-lhe: ‘Não faço ideia. Só sei que quando deixava de ver a estrada, puxava o travão de mão!’ O meu nome começou a ser considerado a partir daí…”


E como era esse tempo em que os ralis se decidiam nos Controlos Horários, com quilómetros roubados a exigir andamento rápido, em estradas abertas ao trânsito?

Era uma aventura onde se apanhavam grandes sustos. Recordo-me da primeira vez que fiz as Camélias com o Jorge Nascimento. Íamos a andar bem, já que, em Sintra, era sempre prego a fundo. À entrada da Rampa da Pena, à noite, cruzámo-nos com um carro que vinha em sentido contrário e o tipo, quando nos vê, assusta-se, trava e apaga as luzes… Num Rali do Sporting, quando entrámos no Livramento, cruzámo-nos com um autocarro que fez a curva fora de mão e ainda hoje estou para saber como é que o Nascimento conseguiu fazer a curva, passando entre a camioneta e o barranco! Naquele tempo, era assim…

Como surgiu a necessidade de criar o seu próprio método de registo dos detalhes do percurso?

Os itinerários que nos forneciam para as provas eram pouco detalhados e, sobretudo nas florestais, era fácil perdermo-nos. Comecei então a tomar notas mais detalhadas do percurso quando fazia os reconhecimentos e, como utilizava profissionalmente computadores, comecei a carregar a informação no computador e a desenvolver o meu próprio esquema.

Ainda se recorda do dia em que César Torres o desafiou a criar o Road Book para o Rali TAP?

Estávamos em 1972. Lembro-me que viajava de automóvel com o César Torres, com quem iniciara já uma relação de amizade que durou quase 30 anos, e este disse-me: “Manel, os tipos da Federação Internacional pediram-me para fazer um esquema do que deveria ser um Road Book. Como é que damos a volta a isto?” Eu peguei numa folha de papel e expliquei-lhe como era o meu método de registar o percurso, com os caminhos, os cruzamentos, as distâncias, etc. O César achou piada, levou o esquema à FIA e este foi aceite. Estava assim aprovado o primeiro Road Book da FIA, com base no desenho que eu fizera para o César.

Depois apareceu o Jean Todt com o seu Road Book, que acrescentava uns floreados face ao que eu fizera, mas o esquema base, o primeiro aprovado pela FIA, foi o meu. E assim passámos, a partir daí, a fazer o Road Book para o Rali de Portugal. Depois do levantamento, onde eram registados todos os detalhes do percurso e desenhados os pontos críticos do mesmo, passava tudo para computador, num processo que podia levar até dois meses. Cheguei a fazer Road Books para outras provas, como a Volta a Portugal, a Volta a Madeira e até de provas em Espanha…

Como se desenrolava, todos os anos, o processo de definição do itinerário do Rali de Portugal?

Um mês depois de acabar o rali, começávamos a delinear o percurso do ano seguinte. O César era inteligente e sabia o que devia fazer para aperfeiçoar o rali de ano para ano. Se não se sentisse confortável com a inclusão de alguma zona, deixava de ser considerada no ano seguinte. Foi o que aconteceu por exemplo com o Buçaco, que todos os anos gerava confusão, porque a EN 234 era passagem de camiões e, com os espetadores a estacionarem os carros onde calhava, criavam-se grandes engarrafamentos.

O César começava por fazer um esquema geral do percurso, colocando as possíveis novidades a incluir na próxima edição. Às vezes, para descobrir um troço novo, víamos dez possíveis alternativas. Nós íamos trocando impressões e ele gostava sempre de ouvir a minha opinião, aceitando algumas das minhas sugestões e recusando outras. Lembro-me de lhe sugerir um troço que teria lugar após a ronda de Sintra, começando no Pobral e acabando na Ericeira. Aquele troço tinha umas curvas magníficas, mas o César achou que já havia troços em demasia na subida para a Póvoa e nunca quis experimentar esta hipótese…

A dureza era um critério importante para a seleção do percurso do Rali de Portugal?

Acho que isso era mais uma consequência do que um critério, já que estradas do país eram muito más. Na altura, os troços tinham maioritariamente buracos e pedregulhos e não havia alternativa, tínhamos mesmo que colocar ali os carros. Hoje em dia, os troços duros desapareceram mas, antigamente, os troços eram de uma dureza medonha. A Senhora da Graça era um exemplo. Começávamos por subir a rampa da Senhora da Graça e virávamos num cruzamento onde nos esperava uma sequência com pedregulhos enormes no meio da estrada. E os pilotos passavam ali a fundo. Até que as Câmaras Municipais começam a ganhar peso na definição do percurso…A certa altura, o processo tornou-se mais complexo porque começaram a surgir as influências das Câmaras para que o rali passasse à sua porta. Lembro-me de uma vez, em Felgueiras, em que chegámos a ir reconhecer o percurso atrás de um trator que ia abrindo a estrada ao mesmo tempo para nós passarmos. O troço foi aberto à nossa frente, enquanto eu e o César seguíamos no carro a fazer o levantamento.


SAÍDA DO ANONIMATO


Quase sempre votados ao esquecimento, os navegadores conheceram, no início da década de 70, um momento de afirmação da importância do seu papel nos ralis, graças à iniciativa de Manuel Coentro, com o apoio dos seus pares, como o próprio recorda: “ Em 1970, quando ganhei o troféu de navegadores, deram-me apenas um diploma, uma coisa sem expressão. Na altura, discutiam-se propostas sobre as bonificações que os carros de grupo 1 e 2 deveriam ter, face aos do grupo 3, e é fundada uma associação de pilotos. Então eu, com o apoio do rigoroso Jocames, lembrei-me de lançar a discussão na Paulistana: ‘já repararam que nós, os penduras, nunca constamos em lado algum, nas classificações, nas entregas de prémios, parece que os

pilotos andam sozinhos a guiar e nós não andamos lá?’. Criámos assim a ANDAR (Associação de Navegadores De Automóveis de Ralis). Pouco depois, começaram a aparecer lá no café um sem número de navegadores, para perceber o que era a ANDAR.

Fizemos uma circular, que eu escrevi nos cartões da IBM e que foi, depois, enviada para todos os jornais, organizações e clubes. Esse documento continha uma série de reivindicações, como por exemplo, ser chamado nas entregas de prémios, constar das classificações, entre outras coisas que, no nosso entender, eram da mais elementar justiça. O Avelãs Coelho criou na

altura um artigo no jornal Motor sobre a criação e objetivos da associação e o movimento começou a ganhar força ao ponto de surgirem problemas na distribuição de prémios das provas. Quando o piloto era chamado, surgiam logo bocas do género: ‘olha o gajo ganhou aquilo sozinho!’ Gerava-se confusão em todas as distribuições de prémios, o que acabou por sensibilizar as organizações, jornalistas, etc. Lembro-me que, antes do Rali das Camélias de 1972, eu disse ao Américo, diretor de prova, que os navegadores não iriam ao rali se não tivessem também direito a prémio. E ele foi rapidamente arranjar prémios para nós! Os navegadores ganhavam assim relevância, saindo do anonimato…”


Como evoluiu o esquema de um Road Book, dos anos 70 até aos dias de hoje?

Embora se mantivessem na sua essência, os Road Book foram evoluindo ao longo do tempo em pequenos detalhes, principalmente por influência dos estrangeiros. O essencial para fazer um trabalho bem feito é ser o mais fiel possível na forma de descrever os detalhes do percurso, nomeadamente, os cruzamentos. Havia quem utilizasse régua e esquadro, mas, na verdade, cada cruzamento tem a sua própria configuração. Por este motivo, sempre defendi que se desenhasse cada cruzamento, o mais fiel possível à realidade, com as curvas e contracurvas existentes no local, o que exige alguma técnica de desenho. O Zé Pedro Borges, que ficou a fazer o Road Book do Rali de Portugal, quando eu me deixei disso, em 1999, utiliza exatamente o mesmo método que eu e o resultado final é muito semelhante.

O que mais o fascinava nos reconhecimentos?

Acima de tudo, descobrir novos sítios, conhecer outras paisagens. Descobrimos locais fantásticos. Eu e o César desfrutávamos muito dessa parte. Ele fazia questão de ir a todos esses sítios para ver e conhecer.

Como era trabalhar com César Torres?

O César era uma joia de pessoa. Fruto da minha personalidade, sempre disse o que pensava a toda a gente e o César não foi exceção. Ele era um líder e se, à partida, isso poderia complicar o seu relacionamento com os outros, eu tive sempre uma relação fácil com ele. Nos levantamentos, chegávamos a levar um farnel com o pequeno-almoço para a serra. Lembro-me de estarmos no meio do troço da Senhora da Graça, pararmos o carro junto a uma fonte de água fresca e comermos ali um farnel…

Dos caminhos que percorreu, quais eram os que mais apreciava?

Arganil, sem dúvida! Era uma aventura. Fazer Pampilhosa da Serra – Arganil era extraordinário. Hoje, essas estradas já estão quase todas alcatroadas mas, naquela altura, era um desafio ímpar. Toda aquela sequência que ia do Paul até à Barragem, seguindo depois para Arganil, era uma tremenda aventura.

Como era o ambiente e o espírito que se vivia nos anos 70?

Era formidável. Competíamos, mas, quando o relógio parava, éramos amigos, convivíamos e brincávamos muito uns com os outros. Uma vez, numa Volta ao Minho, estávamos todos a jantar no hotel em Guimarães. Servem-nos a sopa e o Heitor de Morais, que era danado, agarra na colher e diz de seguida: “Que chatice, a sopa está fria!” O Nascimento, que estava sentado ao meu lado, pega no prato do Heitor, dizendo: “Ainda bem, que eu não gosto da sopa quente, dá cá isso!” E, à confiança, leva a primeira colherada à boca, apercebendo-se tardiamente que a sopa estava a ferver…Queimou-se de tal maneira que ficou de boca aberta e calado um grande espaço de tempo. Brincadeiras como esta ilustram o espírito que se vivia na altura. O ambiente era fantástico e todos se davam bem.

Esse espírito era também vivido dentro do carro?

Quando fazíamos o nosso trabalho, fazíamo-lo de forma séria, mas tal não invalidava que surgissem, por vezes, situações hilariantes. Lembro-me de um episódio numa Volta à Madeira, que fiz com o António Borges, com quem me divertia muito. Estávamos a treinar e, a certa altura, ele diz-me: “Manel, se não te importas eu vou descansar um bocadinho!” Eu, admirado, pergunto-lhe: “Vais descansar um bocadinho? Agora?”, ao que ele me responde: “Sim, Manel, vou fechar os olhos durante um quarto de hora. Não preciso de mais.” Ele parou então o carro na berma da estrada e fechou de imediato os olhos. Passados os 15 minutos, acorda e diz-me: “Vamos embora!”. E lá fomos nós (risos). O António Borges faz parte das boas recordações que tenho dos automóveis.


Ao longo da sua vida ligada aos automóveis, como evoluiu esse ambiente que se vivia nos ralis?

É natural que tenha mudado, mas eu defendo que o facto de as coisas se terem profissionalizado não pode justificar tudo. Já nos anos 90, lembro-me de ter conversas com alguns pilotos lembrando-lhes que, quando nos sentamos num carro de ralis e arriscamos a vida, não corremos contra ninguém. O nosso adversário é o relógio e, portanto, as rivalidades não fazem qualquer sentido. No entanto, o espírito perdeu-se. Uma vez, num rali no norte, já na década de 90, lembro-me de chegar ao restaurante onde iríamos jantar e onde estavam também alguns pilotos. Quando entrei, deparei-me com um ambiente frio, muito diferente daquele que se vivia quando corríamos. E disse então: “É já aqui, no meio destes senhores que me sento.” Com o feitio que me é conhecido, começo a brincar com a malta e a mandar umas bocas e, ao fim de um bocado, aquela mesa transformara-se numa brincadeira pegada e tivemos um ambiente bestial ao jantar.

Qual o verdadeiro papel de um navegador?

Muito mais do que cantar notas. Dar confiança, incentivar. Entre piloto e navegador tem que existir confiança mútua. Um piloto anda depressa quando está habituado e tem a seu lado um tipo que lhe dá confiança. Recordo-me que o António Carlos Oliveira, nos tempos do Datsun 240Z, quando o carro ficava pronto, vinha ter comigo para o irmos testar a Sintra. O Datsun era uma máquina a sério e ele gostava que eu fosse ao seu lado para ele experimentar os limites do carro. Dizia-me: “Manel, amanhã, vens comigo a Sintra, vamos fazer a volta do costume.” Pegávamos no Datsun, subíamos até ao palácio, depois Penedo,

Peninha, terminando na Lagoa Azul. Invariavelmente, quando parávamos o carro na Lagoa Azul, depois de virmos a dar-lhe bem, abríamos ambos a porta do carro e respirávamos fundo para descomprimir…

Enquanto navegador, recusou-se alguma vez a acompanhar um piloto?

Sim. Isso aconteceu algumas vezes. Quando recebia um convite, dizia ao piloto: “Vamos dar uma volta para ver como funcionas”. E fazia os possíveis para ser o primeiro a entrar no carro, para ver como o piloto se sentava no carro. Pela maneira como o piloto se sentava no carro, eu conseguia perceber se ele tinha à vontade com o carro e se sentisse que ele tinha confiança, aceitava; caso contrário, recusava.

O que o levou a voltar para o lado do volante?

As circunstâncias da vida assim o permitiram. Passei a ter dinheiro para fazer essas coisas e, em 1974, comprei o BMW que pertencia ao Baptista Russo para fazer meia dúzia de ralis.

O que lhe dava mais prazer, pilotar ou navegar?

É difícil responder. Ambas as coisas são tão complementares que, quando são bem executadas e feitas com seriedade, se confundem e se fundem numa só tarefa…

Como surge o famoso colete que se tornaria na sua imagem de marca?

Naquele tempo não usávamos fatos de competição. Como é normal, suávamos muito e, em muitas zonas, quando saíamos do carro, estava um frio terrível. Para me proteger do frio, usava aquele colete de pelo de urso. Continuei a usá-lo e, com o passar dos anos, tornou-se famoso. Chegavam a vir ter comigo para fazer festas ao colete (risos)…

Mantém hoje em dia contacto com o mundo dos automóveis?

Hoje estou um pouco afastado mas, na televisão, continuo a ver corridas de Fórmula 1, motos e ralis.

De todos aqueles anos que dedicou aos ralis, de que sente mais saudades?

Não posso dizer que sinta saudades. Tive uma vida muito preenchida nos automóveis. Gozei o que tinha a gozar, diverti-me o que tinha que divertir. Tive pena quando deixei de fazer Road Books mas a saudade é uma coisa diferente. Saudades, tenho apenas dos que já partiram…

Dentro de um carro de ralis…


Ao longo da sua carreira de navegador, Manuel Coentro fez equipa com inúmeros pilotos com diferentes personalidades. A dupla com Jorge Nascimento será porventura a mais emblemática, pela simbiose criada e pelos frutos que daí resultaram, como recorda: “Com o Nascimento, tinha um entendimento perfeito. Havia confiança mútua e ele era impecável na execução das notas. Gostei também muito de andar com o Zé Lampreia. O Zé era impressionante na forma de conduzir, aliando rapidez à suavidade na condução. A forma como aquele bracinho trabalhava a colocar as mudanças era único. Com o António Borges, divertia-me imenso. Uma vez, na Madeira, alinhámos com um VW Golf de Grupo 1 eu dizia-lhe: ‘não pões proteção de cárter?’ , ao que ele respondia que não era preciso. Na lomba do Salão, à terceira, o carro bateu no piso de paralelepípedo e ficou sem óleo… Andei também com o irmão, o Zé Pedro Borges, no carro zero e lembro-me de, uma vez, chegarmos a uma zona com muito público mal colocado que teimava em não se posicionar em segurança. Saí do carro e dei um berro dizendo: ‘ou vocês saem daqui e se colocam num sítio seguro ou eu juro que vou mijar na vossa campa do cemitério!’ Num ápice, desapareceram todos (risos)…

O Conde de Botelho era o mais teimoso. Vivi episódios só possíveis de acontecer com ele. Numa Volta a São Miguel, na primeira passagem dos reconhecimentos a um determinado troço, ele ia rápido demais e, por pouco, não saímos de estrada numa curva. Perguntei-lhe porque ia tão depressa e, ao mesmo tempo, coloquei nas notas um alerta para termos atenção naquela curva. À tarde, voltámos ao troço para confirmar as notas e, quando nos aproximamos do mesmo local, chamo a atenção para aquela direita que devia ser feita mais devagar. O Conde de Botelho, cheio de confiança, dizia: ‘eu conheço muito bem este sítio. Esta é a estrada da minha quinta’. Passou tão depressa na famosa direita que, só por acaso, conseguiu negociar a esquerda seguinte. Não ficámos ali por sorte! Durante a prova, o troço era percorrido por duas vezes e, na primeira passagem, quando nos aproximávamos da célebre curva, começo aos berros: ‘Nuno, olha que viras isto pá!’ Uma vez mais safámo-nos por pouco mas a estrada ficou toda varrida. Lembro-me de o avisar: ‘Olha que, na próxima vez, de certeza que marramos fora’. Na segunda passagem, tal como previra, saímos de estrada e ficámos com o carro empenado. Disse-lhe apenas: “Quem tinha razão era o Manel…” E, sem abrir mais a boca, arrumei as minhas coisas e pus-me a caminho, a pé, quando ele perguntou: ‘Onde vais Manel?’ Respondi-lhe: ‘Vou-me embora. Tu é que sabes, tu é que conheces a estrada, ficas aí sozinho!’

Numa outra ocasião, num Rali Rainha Santa, andávamos a tirar notas e, numa curva à esquerda, eu digo-lhe: ‘Cuidado com esta esquerda. Olha que sais, vais à valeta e dás cabo de uma roda!’ Ele dizia: ‘Não há problema!’ Na prova, quando lá passámos, teimoso como era, passou rápido, o carro foi à valeta e a roda da frente do lado direito ficou toda torcida. A partir daí, em todas as curvas para a direita, o carro saía de traseira e em todas as curvas para a esquerda, o carro saía de frente…

O Botelho era assim (risos) mas quando passamos tantas horas dentro de um carro, temos que nos habituar a lidar com o feitio de cada um…

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