Quatro rodas e um volante

Por a 13 Dezembro 2022 17:01

Há talentos natos do automobilismo para quem dominar um protótipo de Le Mans ou um turismo do WTCC não é muito diferente de pilotar uma máquina do WRC ou um supercarro de Ralicross. A História está cheia de exemplos de campeões versáteis, de John Surtees a Sébastien Loeb, de Jim Clark a Jacky Ickx ou a Mattias Ekström. Recorde connosco os campeões mais polivalentes da história do desporto automóvel

No Dicionário de Português Online, o termo ‘versátil’ designa alguém que tem “facilidade em se acomodar ou ajustar perante novas circunstâncias; com tendência a mudar; eclético, polivalente”.

No fundo, o conceito não é totalmente estranho ao automobilismo, mas é um facto que ser campeão em qualquer categoria deste desporto exige uma certa quantidade de especialização. Significa fazer muitos quilómetros ao

volante de um tipo específico de carro, de modo a aprender todos os truques da pilotagem e a ganhar nem que seja uma ínfima vantagem sobre a oposição.

Este grau de especialização muitas vezes impede os pilotos de diversificarem a sua experiência, mas durante a história do automobilismo alguns têm conseguido experimentar vários géneros de modalidades e conquistar títulos de campeão em disciplinas diferentes.

São uma espécie de ‘eleitos’ da pilotagem, verdadeiros talentos natos com uma sensibilidade especial para levarem qualquer máquina de corrida aos limites das Leis da Física.

MONSIEUR LOEB

Se existir um dicionário de automobilismo, a entrada da palavra versátil terá certamente uma foto de Sébastien Loeb. O alsaciano poderia perfeitamente ter sido um ginasta de sucesso… ou um eletricista… mas quiseram os deuses que Loeb desistisse destas atividades e colocasse o seu talento ao serviço do desporto automóvel.

Loeb fez o seu primeiro rali quando já tinha 21 anos, mas a partir daí a sua ascensão assumiu contornos históricos, produzindo um recorde de nove títulos mundiais (consecutivos) com a Citroën, entre 2004 e 2012, naquela que foi a maior hegemonia da história do WRC. Só que Loeb também acumulou sucessos em modalidades bastante diferentes dos ralis, subindo ao pódio das 24 Horas de Le Mans na sua segunda participação na mítica prova de Resistência (foi 2º em 2005 com a Pescarolo); ganhando na estreia nos X-Games (Ralicross) nos Estados Unidos (2012); vencendo quatro corridas na estreia no FIA GT no McLaren partilhado com Álvaro Parente (2013); ganhando logo a segunda corrida que fez no WTCC (em 2014); pulverizando o recorde de Pikes Peak por um minuto e meio na primeira vez que correu na famosa rampa americana, e ganhando quatro etapas na estreia no Dakar (2016), ficando depois no 2º lugar da geral (só atrás da ‘raposa velha’, Stéphane Peterhansel) na edição deste ano. A diversidade de máquinas em que Loeb foi competitivo (e vitorioso), desde os protótipos de Le Mans aos buggies do Dakar, passando por carros de GT, ralicross e, claro, de ralis, tornam o francês numa lenda viva do desporto automóvel e um dos campeões mais versáteis da História.

Talvez o paralelo histórico mais aproximado que se possa fazer com o francês seja com o piloto Jacky Ickx. O belga começou por ganhar títulos nacionais de motocross e montanha antes de passar para os circuitos e para os monolugares. Aos 22 anos sagrou-se campeão FIA de Fórmula 2, lançando a sua carreira na F1. Ganhou oito Grandes Prémios, chegou a vice-campeão do Mundo em 1969 (atrás de Jackie Stewart) e 1970 (atrás do malogrado Jochen Rindt), mas entretanto estabeleceu uma carreira paralela nas provas de resistência, em GT e sport-protótipos, construindo um recorde de seis vitórias nas 24 Horas de Le Mans que vigorou durante 23 anos.

Pelo caminho, conseguiu sagrar-se campeão da Can-Am, nas pistas americanas, onde os pilotos locais tinham experiência adicional e davam grande luta. Finalmente, foi um dos primeiros a aderir à aventura do Dakar, vencendo a dura maratona em 1983 com um Mercedes 280 G.

Outro nome incontornável do Dakar é Jean-Louis Schlesser, que curiosamente também só passou para as provas de todo o terreno depois de uma carreira na velocidade. Antes de vencer o Dakar na geral por duas vezes – e na classe 2RM por muitas outras – Schlesser ficou mais famoso pela única corrida que disputou na Fórmula 1, o GP de Itália de 1988, onde colocou Ayrton Senna fora de prova quando o brasileiro o estava a dobrar. Schlesser já tinha nessa altura 40 anos mas quem acompanhava outras categorias do desporto automóvel conhecia-o, até porque em 1978 foi campeão francês de Fórmula 3, ex-aequo com Alain Prost. Uma ligação a Tom Walkinshaw levou-o a correr nos Jaguar XJS feitos pela TWR, com os quais venceu o título francês de turismos, mas falhou o europeu.

Também correu pela Mercedes, com quem venceu o Mundial de Sport-Protótipos por duas vezes, mas nunca conseguiu ganhar em Le Mans.

SUECO DE FIBRA

Em 2017, Mattias Ekström fez história ao alinhar numa prova do DTM e noutra do Mundial de Ralicross… no mesmo fim-de-semana! Nessa famosa dupla participação nas rondas de Hockenheim do DTM e World RX, Ekström conseguiu vencer a Final do ralicross, demonstrando um talento que o levou a acumular vitórias e títulos em campeonatos tão diferentes. O sueco tornou-se uma referência no exigente campeonato alemão de turismos, em que se estreou no já longínquo ano de 2001 e em que foi campeão em 2004 e 2007. Só que Ekström tinha um passado familiar no ralicross (uma modalidade de que, curiosamente, não gostava quando era criança) e decidiu participar na ronda sueca do Europeu em 2013, subindo imediatamente ao pódio (2º lugar).

No ano seguinte, Ekström montou a sua própria equipa (a EKS RX, que atualmente é a representante oficial da Audi no World RX) e não demorou muito a vencer corridas no ralicross, tornando-se campeão do Mundo em

2016, com os ‘seus’ Audi S1. Até os ralis não são propriamente uma novidade para o ex-campeão sueco de turismos, que já participou em oito provas do WRC e que também já experimentou os V8 Supercars australianos e até a NASCAR! Não menos mediáticas foram as três vitórias na famosa Corrida dos Campeões, onde os maiores talentos do automobilismo medem forças todos os anos.

Outro nome bem conhecido das corridas de circuitos mas com uma carreira bem diversificada é Yvan Muller. O francês tornou-se uma lenda nas corridas de gelo do Troféu Andros, onde foi campeão por 10 vezes (um recorde) e acumulou um total de 46 vitórias (também recorde). Os anos de formação nos monolugares (campeão da F2 britânica em 1992) ajudaram-no depois na transição para os turismos, onde Muller foi campeão dos Superturismos franceses (1995) e do BTCC (2003), antes de se tornar tetracampeão do WTCC, com carros da SEAT e Chevrolet. Em 2005, Yvan ‘O Terrível’ também venceu uma corrida como wildcard nos V8 Supercars

e depois participou nas versões africana e sul-americana do Dakar, embora sem grande sucesso.

O seu antigo companheiro de equipa, ‘Pechito’ López, nunca saiu muito das pistas mas o seu talento levou-o a três títulos mundiais com a Citroën no WTCC depois de já ter sido campeão na Fórmula Renault italiana (na

frente de Robert Kubica), na Fórmula Renault V6 Eurocup e nos populares campeonatos argentinos de turismos.

O argentino compete atualmente na Fórmula E e foi contratado pela Toyota para o seu programa nos LMP1. López persegue a vitória na geral nas 24 Horas de Le Mans, um objetivo comum a outra estrela sul-americana:

Juan Pablo Montoya. O fogoso colombiano é outro talento que já venceu corridas em diferentes campeonatos internacionais de velocidade, com destaque óbvio para as sete vitórias com a Williams e com a McLaren na Fórmula 1. Depois de passar pela disciplina máxima do automobilismo, em que chegou com a aura de futuro rival de Michael Schumacher após exibições fabulosas na Fórmula 3000 e no campeonato CART, Montoya regressou aos Estados Unidos para correr na NASCAR, IMSA e Indycar, ganhando as 24 Horas de Daytona por três vezes com a Ganassi, além de ter sido vice-campeão da Indycar com quase 40 anos (com o mesmo número de pontos de Scott Dixon) e de ter ganhado a Corrida dos Campeões este ano em Miami. Montoya, tal como Fernando Alonso, é um dos poucos pilotos em atividade que pode almejar à famosa Coroa Tripla (conhecida por Triple Crown) do automobilismo, tentando juntar as vitórias nas 500 Milhas de Indianápolis (que ganhou por duas vezes, com um espaço de 15 anos) e Grande Prémio do Mónaco ao triunfo na geral em Le Mans. Foi por isso que o teste de Montoya com o LMP1 da Porsche causou furor em 2015, mas o colombiano para já ainda não concretizou o objetivo de correr em La Sarthe.

LENDAS INTEMPORAIS

Em quase um século de História de automobilismo ‘organizado’, o único piloto a conseguir a famosa Coroa Tripla foi Graham Hill. O britânico já tinha sido um desportista de elite no remo, mas ganhou verdadeiramente o estatuto de lenda ao cumprir quatro predicados (quando bastam três) da Coroa Tripla: campeão do Mundo de F1 (1962 e 1968) e vencedor do GP do Mónaco (cinco vezes), das 500 milhas de Indianápolis (1966) e das 24 Horas de Le Mans (1972). Um registo notável se atendermos ao facto de pilotos do gabarito de Alonso, Montoya, Jim Clark, Emerson Fittipaldi ou Mario Andretti só terem conseguido, no máximo, dois terços da ambicionada Coroa Tripla.

Contemporâneo de Hill, Jim Clark foi outro talento e um exemplo de versatilidade notável, que ultrapassou em muito as fronteiras da Fórmula 1. Sendo capaz de correr em duas coisas completamente diferentes em dois fins de semana consecutivos, Clark não era um caso único nas pistas britânicas, mas distinguiu-se por conseguir ganhar títulos em quase todas as categorias onde participou. O escocês tanto conseguiu ser campeão do Mundo na Fórmula 1 (1963 e 1965), como também ganhava com um F2 de 1000 cm3, ou com o Ford Cortina Lotus. O ano de 1965 foi particularmente produtivo pois para além da F1 e F2, Clark também venceu o seu primeiro título na Tasman Series (cujos monolugares eram mais potentes que os de F1) nas pistas dos Antípodas, onde os seus adversários australianos e neozelandeses tinham maior experiência, e venceu também a Indy 500 com o inovador Lotus 38, frente aos ‘dinoussáuricos’ roadsters americanos.

Mas de entre as lendas britânicas que atingiram feitos com a sua polivalência nenhuma se equipara a John Surtees, o único campeão do Mundo nas categorias-rainhas do automobilismo (Fórmula 1) e motociclismo (500cc).

Quando Surtees foi campeão mundial de 500cc e 350cc pela última vez (sempre com a MV Agusta), já participava regularmente em corridas de Fórmula 1 e de Fórmula 2, chegando a piloto oficial da Ferrari, com quem não só foi campeão da Fórmula 1 em 1964 como também correu em provas de resistência. O seu único título nesta categoria foi depois de deixar a marca italiana, tornando-se o primeiro campeão da Can-Am, onde não teve grandes dificuldades para bater os melhores pilotos americanos.

Seguindo as pisadas de Surtees, Mike Hailwood foi outro campeão do motociclismo que tentou uma carreira nos automóveis. Apesar das capacidades inatas de pilotagem – filho de um rico comerciante de motos, Mike ‘The Bike’ tinha apenas 21 anos quando ganhou o Isle of Man TT em três categorias diferentes no mesmo ano – Hailwood não conseguiu o mesmo sucesso de Surtees nas quatro rodas, disputando 50 Grandes Prémios na Fórmula 1 e obtendo dois pódios, além de um título europeu de Fórmula 2. Outros motociclistas de eleição, como Eddie Lawson (campeonato CART) ou Valentino Rossi (ralis), também fizeram aparições esporádicas nas quatro rodas, mas a dobradinha de Surtees continua a ser um dos maiores feitos do desporto motorizado mundial.

BRINCAR NA AREIA

Cada vez mais habitual é a transição de estrelas dos ralis para as areias do Dakar. Ari Vatanen (vencedor do Dakar em 1987, 1989, 1990 e 1991) e Juha Kankkunen (1988) foram os primeiros campeões do Mundo de ralis

a conquistarem a mais famosa prova de todo o terreno do planeta, algo que Carlos Sainz e Nasser Al-Attiyah também conseguiriam duas décadas mais tarde. A versatilidade do piloto e príncipe do Qatar é mesmo um caso curioso, pois além de ostentar um palmarés com títulos no PWRC, WRC2 (duas vezes), Taça do Mundo de TT (três vezes) e Dakar (duas vezes), Al-Attiyah também foi medalha de bronze na competição de tiro ao prato dos Jogos Olímpicos de Londres em 2012. Nos últimos anos, Loeb e Mikko Hirvonen foram outros ex-pilotos do WRC que se renderam ao apelo do Dakar. Porém, a passagem dos ralis para o TT nunca será tão contrastante como aquilo que Stéphane Sarrazin enfrentou ao disputar provas na Fórmula 1, WRC, 24 Horas de Le Mans e Fórmula E. Por último temos Romain Dumas: duplo vencedor das 24 Horas de Le Mans e da Rampa de Pikes Peak e das corridas de resistência em Nürburging e Spa, com incursões mais recentes nos ralis (com o Porsche 997) e no Dakar (como piloto oficial da Peugeot).

TALENTO NACIONAL

Portugal também tem alguns casos de pilotos que provaram o seu talento em diferentes máquinas e contextos de corrida. José Pedro Fontes, por exemplo, é o atual bicampeão nacional de ralis mas começou por dar nas vistas na Fórmula Ford (campeão em 1995 e 1997) e no Campeonato Nacional de Velocidade (campeão em 1999), vindo depois a acumular títulos nas duas principais vertentes do desporto automóvel nacional: campeão nacional de ralis S1600 e Turismo em 2005, campeão nacional de Circuitos em 2009, 2011 e 2014, e vencedor do Iberian Supercars Trophy em 2011. Mas um dos primeiros portugueses a apostar numa carreira além-fronteiras, durante a década de, 80 foi Pedro Matos Chaves. O piloto, ex-campeão nacional de

Fórmula Ford foi também um dos primeiros a conquistar títulos lá fora, ganhando a Fórmula 3000 britânica, em que bateu consagrados como Alain Menu e Rickard Rydell. Após terminar a aventura nos monolugares, passou pelos turismos (onde esteve muito perto de ser campeão) e depois pelos ralis, onde se adaptou rapidamente a uma forma completamente diferente de pilotar, vencendo dois títulos nacionais consecutivos, para depois

regressar às pistas, em Espanha, onde dominou a categoria de GT, em parceria com Miguel Ramos.

Recuando algumas décadas, os campeonatos de velocidade e ralis em Portugal foram separados em 1966 mas para alguns pilotos isso não significou nada, pois em muitos casos era possível fazer as duas competições com o mesmo carro. Foi o que aconteceu com Américo Nunes, que não ‘perdeu tempo’ e deixou a sua marca nas duas competições, conquistando títulos nas duas categorias logo em 1967. E embora tenha conseguido ser campeão de ralis mais vezes do que de velocidade, o piloto dos Porsche ‘bomba branca’ e ‘bomba verde’ manteve sempre um pé em cada modalidade até se retirar da competição automóvel.

Também Santinho Mendes conseguiu a dobradinha, entre os ralis e o TT, vindo depois mais tarde a ser ainda campeão nacional… de golfe (classe Veteranos).

Mais recentemente, Miguel Barbosa fez o percurso inverso ao de Santinho Mendes, pois passou para os ralis depois de se tornar numa das maiores referências do TT nacional. Armindo Araújo, que começou no enduro antes de se tornar tetracampeão nacional de ralis e bicampeão do Mundo de Produção, ou Tiago Monteiro, que construiu uma carreira dividida entre Fórmula 1, WTCC, Le Mans, campeonato CART e que chegou inclusive a tentar participar no Dakar, são outros exemplos de pilotos nacionais que mostraram ter uma grande versatilidade.

Subscribe
Notify of
0 Comentários
Inline Feedbacks
View all comments
últimas AutoSport Histórico
últimas Autosport
autosport-historico
últimas Automais
autosport-historico
Ativar notificações? Sim Não, obrigado