» Textos: Guilherme Ribeiro

» Fotos: Mercedes e Oficiais

 

AVUS: Dos ‘Flechas de Prata’ ao DTM


O circuito de AVUS, localizado nos arredores de Berlim, ficará sempre imortalizado pelas imagens da luta entre Bernd Rosemeyer e Rudi Caracciola numa das mangas da edição de 1937 da prestigiada Avusrennen, ano esse em que foi inaugurada a fabulosa Nordkurve com um banking de 43º de inclinação!!!! No entanto, este circuito tem uma história bem mais longa e curiosa do que a sua “Muralha da Morte”.

No final da primeira década do século XX, o Automóvel Clube da Alemanha começou a pensar na construção de um circuito permanente que servisse para a competição e para testes de performance para a pujante indústria automóvel do Império Alemão. O projeto inicial era composto por duas retas paralelas em Charlottenburg, no sudoeste de Berlim, unidas por duas curvas de raio alargado. No entanto, vários problemas monetários e burocráticos atrasaram o início da construção, que só começou em 1913, cinco anos depois da adjudicação do projeto. Porém, a I Grande Guerra interveio e a construção do circuito deixou de ser prioritário, mas, devido à abundância de prisioneiros de guerra russos, a obra foi avançando até ao penúltimo ano da guerra. Com a Alemanha na bancarrota e alvo de convulsões sociais sem precedentes, AVUS poderia muito bem ter ficado inacabada se o industrial Hugo Stinnes não tivesse decidido financiar a obra em 1920. Em setembro de 1921, o circuito foi finalmente inaugurado, com uma extensão de 19,6 Km, sendo o primeiro traçado permanente construído na Alemanha.

Nos primeiros anos, o circuito foi pouco utilizado, devido à crise económica do pós-guerra, mas, com a recuperação em meados de anos 20, AVUS foi palco do primeiro Grande Prémio da Alemanha, disputado em 1926, tendo como vencedor um jovem Rudi Caracciola, que começava assim a construir o seu lendário palmarés. Porém, o fim-de-semana foi marcado por várias mortes e, já na altura, a pista foi considerada demasiado rápida para as velocidades atingidas pelos carros da época, e passou a ser usada apenas para fins industriais e o G.P. da Alemanha mudado para o recém-construído Nürburgring. AVUS só voltou aos palcos automobilísticos em 1931, em plena ressaca da Grande Depressão, mas, desta vez, a Avusrennen manteve-se no calendário principal, juntamente com os principais Grandes Prémios, até 1935. No entanto, a pista iria ser ligada ao nascente projeto de autoestradas alemãs, uma das grandes obras do III Reich, e a área da Curva Norte era necessária para construir acessos à aldeia olímpica que estava a ser construída para os Jogos Olímpicos de Berlim em 1936. Claro está que Adolf Hitler, ao receber o mais prestigiado evento desportivo mundial, se aproveitou para uma campanha massiva de propaganda e glorificação do povo alemão e da raça ariana. Aliás, a construção propositada de uma aldeia olímpica para os Jogos foi uma inovação da organização alemã. Tudo isto, aliado às velocidades crescentes verificadas nas provas, fez com que AVUS não recebesse, por um ano, nenhuma prova automobilística.

A entrada da Mercedes e da Auto Union nos Grandes Prémios em 1934 foi amplamente apoiada pelo estado alemão, que não tardou a encontrar na indústria automóvel e na supremacia desportiva um enorme veículo de propaganda ao regime nazi, instituído em 1933. De facto, graças aos apoios estatais e a uma indústria de elevada qualidade, os “Flechas de Prata” chegaram, viram e pouco demoraram a vencer, dominando por completo os Grandes Prémios entre a segunda metade de 1934 e 1939. Para os nazis, nada melhor do que ter o seu templo da velocidade e, como tal, decidiu-se construir uma nova Nordkurve, mas com uma inclinação de 43º e pavimento de tijolos vermelhos, o que fazia Indianápolis, Brooklands e até Monza parecerem “fáceis”. Pior que isso, não havia qualquer muro ou outra forma de vedação no topo da curva, daí ser chamada de “Muralha da Morte”. Inaugurada em 1937, na presença de altos quadros do partido nazi, aquela edição da Avusrennen não iria seguir a fórmula internacional do AIACR, permitindo assim a utilização de monolugares carenados, à semelhança dos utilizados para os recordes de velocidade. Assistiu-se a uma prova épica, marcada pela intensa batalha entre Rudi Caracciola e Bernd Rosemeyer numa das mangas de qualificação, embora a vitória na final coubesse a Hermann Lang, a uma média de 276 Km/h, tornando-se na prova mais rápida da história. Este record só iria cair nas 500 Milhas de Indianápolis de… 1986!

No entanto, a utilização do tempo alemão da velocidade iria sofrer um longo hiato. No Inverno de 1938, durante uma sessão de records de velocidade numa autoestrada nos arredores de Frankfurt, Bernd Rosemeyer – o ídolo perfeito do desporto motorizado para os nazis, e um dos melhores pilotos da história) – perdia a vida quando o seu Auto Union carenado, rodando a uma velocidade superior a 400 Km/h, se desequilibrou devido a ventos laterais e se desfez na sequência do acidente. Durante uns tempos, os records de velocidade foram suspensos e o circuito de AVUS foi considerado demasiado perigoso para os carros da época. Além disso, a parte sul do circuito iria ser também ligada a uma nova autoestrada. Ainda assim, nunca se pensou abandonar AVUS por completo, projetando-se mesmo a construção de uma nova curva sul com inclinação, mas, de permeio, o dealbar da II Guerra acabou com o automobilismo e as grandes obras por uns anos. Iria AVUS sobreviver?

Até ao DTM

Quando a II Guerra finalmente terminou, a Alemanha estava em ruínas e ocupada pelos aliados – França, Inglaterra, EUA e URSS, dividida em quatro zonas. O mesmo se passava com a capital, Berlim. Durante muitos anos, foi escrito que o circuito de AVUS ficou definitivamente cortado porque a Curva Sul estava no sector soviético, mas trata-se de uma lenda. Na verdade, a pista estava dividida entre a área americana e britânica, enquanto o sector soviético começava alguns quilómetros abaixo da curva sul. Aliás, os bancos de terra e a área florestal que fora derrubada para construir a nova Curva Sul passaram a ser usadas pelos americanos como terreno de treino de tiro. Depois de receber Goebbels e companhia em 1937, AVUS receberia em 1945 o presidente norte-americano Harry Truman, que passou revista às tropas desde as bancadas da meta, depois da Conferência de Potsdam.

Parecia impossível que o circuito alemão voltasse a ser usado, mas AVUS parecia ter sete vidas e, em 1951, ano e meio depois de o desporto automóvel regressar à Alemanha, o circuito estava de novo em condições de receber competições, sendo usado tanto nas duas como nas quatro rodas. No entanto, o traçado tinha agora cerca de 8,3 Km, mais ou menos metade da extensão original. Com a divisão da Alemanha em 1949, o Checkpoint Bravo, uma das principais vias terrestres que ligava Berlim à Alemanha Ocidental, foi estabelecido perto da antiga Curva Sul, o que forçou o seu recuo. Ao mesmo tempo, a redução do circuito para metade permitia aos espectadores verem os carros passar mais vezes, tornando a pista mais atrativa.

Depois de receber eventos locais e provas de F2, AVUS voltou à ribalta com uma prova de F1, embora numa prova extra campeonato, em 1954. Decerto que o regresso triunfal da Mercedes à competição automóvel não foi alheia a esta decisão, mas as velocidades elevadas e os riscos da Curva Norte não cativaram a maioria das equipas, assistindo-se a um domínio absoluto da Mercedes, tal como já acontecia na F1. Fangio, Kling e Herrmann cedo se destacaram e trocaram continuamente de posições, para gáudio dos espectadores e, no final, Fangio deixou Kling vencer. O piloto alemão, homem da “casa” Mercedes desde o pré-guerra, foi fundamental no regresso da marca da estrela de três pontas ao automobilismo, tanto nos Sport-Protótipos como na F1, sendo amplamente responsável pelos testes da equipa, recebendo assim uma merecida recompensa. No entanto, o G.P. da Alemanha estava devidamente estabelecido no mítico Nürburgring e AVUS recebeu maioritariamente provas nacionais até que, em 1959, os responsáveis alemães decidiram realizar o G.P. da Alemanha em AVUS. Desde cedo, fizeram-se ouvir muitas críticas por parte dos pilotos. Em primeiro lugar, a pista continuava a ser considerada como muito perigosa devido às velocidades atingidas, mas era também considerada como desinteressante pelos pilotos, já que não oferecia grande desafio técnico. E, infelizmente, ficaria marcada pela tragédia.

Pela primeira e única vez na história da Fórmula 1, um Grande Prémio foi dividido em duas mangas, sendo o resultado final atribuído pela soma de tempos de ambas. Tal decisão por parte dos organizadores deveu-se ao facto de se antever uma degradação elevadíssima dos pneus devido às elevadas velocidades atingidas e à tensão causada pelo banking. Na véspera do G.P., disputou-se uma prova de Sport-Protótipos, debaixo de chuva, e o popular Jean Behra perdeu o controlo do seu Porsche na curva norte e galgou o parapeito desprotegido da “Muralha da Morte”, batendo num poste e causando morte instantânea ao piloto. Vários amigos tinham pedido ao francês que não alinhasse, já que a chuva tornava o pavimento de tijolo muito escorregadio, mas o destino levou um dos melhores pilotos da época. Felizmente, no dia da corrida, a pista estava seca e assistiu-se ao domínio da Ferrari. Tony Brooks venceu e continuou na luta pelo título, mas foi por muito pouco que não houve nova tragédia, desta vez no lado oposto do traçado. Depois da redução do circuito, a Curva Sul assemelhava-se a uma rotunda de raio reduzido, delimitada por fardos de palha. Hans Herrmann, que alinhou no G.P. pela BRM, falhou a travagem e bateu nos fardos de palha. Por milagre, Hans foi ejetado e não sofreu lesões graves, já que o carro levantou voo e deu uma série arrepiante de voltas no ar antes de cair violentamente na pista.

Aquele fim-de-semana de agosto de 1959 tornou o circuito de AVUS ainda mais impopular e obsoleto e as competições só regressaram em 1961, maioritariamente nas duas rodas e usando um traçado mais curto. Eventualmente, algumas provas internacionais regressaram episodicamente, mas o golpe de misericórdia não tardou. Em 1967, as autoridades decidiram alargar o nó que ligava a autoestrada do circuito nas imediações da Curva Norte, o que obrigou à demolição do banking. No entanto, o circuito não foi encerrado, já que era a única pista existente nos arredores de Berlim, cercada pelo Muro. Assim, decidiu-se reconstruir a curva norte sem inclinação e com um raio ligeiramente menor devido às obras. Ironicamente, foi uma decisão acertada, já que a nova curva obrigava a uma abordagem muito mais técnica. Com o florescimento das provas de turismo e GT na Alemanha, nomeadamente o campeonato DRM, assim como das provas de Grupo 7 do campeonato Interserie, AVUS recuperou bastante popularidade, não tardando a receber também provas internacionais de F3 e F2, mas, na viragem para os anos 80, o uso voltou a ser exclusivamente nacional.

Entretanto, o Grupo 7 praticamente deixou de existir e o velho DRM tinha dado lugar aos Grupo C, que não tardaram a abandonar o circuito berlinense, e as queixas dos espectadores cresciam, já que o perímetro do circuito continuava a ser demasiado longo e viam os carros passar poucas vezes pela meta. Deste modo, em 1989, os promotores do circuito renderam-se à evidência e reduziram o circuito para metade (cerca de 4,9 Km), tal como tinha sido usado por vários anos nas provas de duas rodas, e a Curva Sul tornava-se num gancho. Três anos depois, novas alterações. Para responder à crescente popularidade do DTM e às velocidades crescentes, o circuito de AVUS perdeu, pela primeira vez, a sua essência de circuito de alta velocidade – em primeiro lugar, procedeu-se a nova redução, ao mesmo tempo que foi colocada uma chicane de média velocidade a meio da reta que levava à Curva Norte, passando o circuito a contar com 2,6 Km de perímetro. Porém, era evidente que a pista estava “fora de prazo”. Era já estreita para os padrões da época e não raras vezes a Curva Sul e a chicane eram palco de acidentes espetaculares que bloqueavam o circuito.

O golpe fatal chegou em 1995, quando o popular piloto inglês Keith Ódor perdeu o controlo do seu Nissan numa prova do campeonato STW, perto da Curva Norte, e ficou atravessado na pista, sendo atingido do lado do condutor por Frank Biela. O piloto da Nissan teve morte instantânea, e o circuito não foi mais usado pelos monolugares e pelo DTM. Ainda se construiu nova chicane, desta vez lenta, a chegar à Curva Norte, mas AVUS estava condenado ao fim. Além de ser um circuito obsoleto, tornava-se cada vez mais complicado fechar uma das principais autoestradas do país para a disputa de provas, além das pressões dos ambientalistas. E o público de Berlim já não estava encerrado desde finais de 1989… Quando foi aprovada a construção do novo Lausitzring em 1998, a pouco mais de 100 km a sul der Berlim, as Federação Alemã de Automobilismo decidiu encerrar AVUS nesse mesmo ano. Do velho traçado restam apenas as bancadas, que estão agora a ser preservadas, e a antiga torre de controlo sobranceira à Curva Norte que foi, entretanto, convertida num motel e restaurante, mas manteve a estrela da Mercedes e o painel da Bosch que a tornara, intemporal. Como curiosidade final, é interessante ver que, do alto da torre, percebemos que as retas de AVUS não eram tão perfeitas como as projeções aéreas e os desenhos do traçado em livros e revistas nos fazem fazer querer.

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