HISTÓRIA DO CIRCUITO DE VILA REAL


A cidade de Vila Real está intimamente ligada à história do desporto automóvel nacional. Foi aqui que alguns dos primeiros grandes campeões conheceram o seu sucesso, com a pista a ser muito importante para colocar Portugal no panorama das grandes corridas internacionais

Por Guilherme Ribeiro

FOTOGRAFIA Arquivo ACP

e Coleção de Achilles Ferreira de Almeida – Arquivo Municipal de Vila Real

O Portugal dos anos 20 estava mergulhado num verdadeiro caos político, social e económico, por isso não é difícil perceber por que motivos as manifestações automobilísticas nacionais até ao início dos anos 30 eram esporádicas e de pequena dimensão. No entanto, foi neste difícil contexto que alguns entusiastas transmontanos organizaram, em setembro de 1920, o Circuito de Trás-os-Montes, centrado em Vila Real. Muitos destes homens estiveram ligados, tanto como organizadores ou participantes, ao Rali Nacional de Automóveis e ao I Circuito de Trás-os-Montes, organizado cinco anos depois com base em Chaves, e que

formalmente inaugurou o conceito de rali em solo português.

Um destes homens, Aureliano Barrigas, com formação em engenharia e praticante de diversos desportos, havia fundado em 1922 o Sport Clube de Vila Real, e a partir de 1928 começou a estudar a possibilidade de criar uma prova automóvel em Vila Real, já que este desporto não tardara a tornar-se o seu favorito. Juntamente com o seu pai, Manuel Lopes Barrigas, Luís Taboada e o então presidente da Câmara Municipal de Vila Real, Emídio Roque da Silveira, Aureliano Barrigas começou a estudar uma forma de criar um circuito nas estradas em redor da cidade.

No entanto, a situação económica da época não o permitiu, e só em 1930 a cidade decidiu formalmente avançar com a organização do circuito para o ano seguinte, no contexto das festas da cidade, lançando para tal um imposto de 40$00 por cada quilograma de carne para o seu financiamento. É de salientar que 1931 marca o nascimento das competições em circuito portuguesas, destacando-se as provas em Lisboa, no Campo Grande, e a primeira versão do Circuito da Boavista. A organização estava ao encargo da comissão de festas da cidade, embora com algum apoio do ACP, e o traçado partia da Avenida Almeida Lucena, junto ao Jardim da Carreira, no centro da cidade, dirigindo-se pela atual N2 até ao Quartel de Infantaria n.º 13. Desviava então para a N15 para atravessar o rio Corgo na ponte da Timpeira, encaminhando-se depois para uma rapidíssima descida que levava até Mateus, regressando então em direção à cidade pelas ruas que davam para a estação de comboios.

Atravessavam de seguida a ponte metálica sobre o Corgo para entrarem na cidade e virarem à direita para a meta, num perímetro total de 7,150 km. Rápido e extremamente técnico, o Circuito de Vila Real tinha como grande particularidade usar na sua maioria estradas não asfaltadas, pavimentadas pelo omnipresente macadame de então, e por cruzar duas passagens de nível sobre a linha do Corgo, que à data levava os passageiros do Peso da Régua até Chaves.

PRIMEIRAS EDIÇÕES

A vitória na primeira edição coube ao conceituado volante nortenho Gaspar Sameiro, e de imediato Vila Real revestiu-se de enorme sucesso, tanto desportivo como económico, animando os organizadores a prosseguir com a sua obra e a tentar asfaltar a maior extensão possível do circuito, já que as estradas macadamizadas criavam muitos problemas aos concorrentes devido ao desgaste dos pneus e ao imenso pó que levantavam. O sucesso da primeira edição contribuiu muito para uma lista de inscritos de maior qualidade em 1932, levando de vencida a prova o mais novo dos irmãos Sameiro, Vasco, que não tardaria a impor-se como o melhor piloto do pelotão nacional nos anos seguintes e como o mais internacional dos volantes portugueses no período entre as duas guerras mundiais.

A edição de 1933 trouxe a primeira alteração ao traçado, já que a entrada na reta da meta deixou de ser feita através da Rua Alexandre Herculano. Ao invés disso, os pilotos seguiam em frente pela calçada de São Pedro para virarem à direita na Travessa Cândido dos Reis, naquela que viria a ser chamada Curva do Tanque, devido aos despistes ocorridos no ano anterior, o que aumentava o traçado para cerca de 7,2 km. Também é de assinalar a crescente extensão do tapete de asfalto nas estradas fora da cidade, tornando o circuito mais rápido e menos perigoso. Ironicamente, 1933 foi marcado por uma drástica redução do número de concorrentes, e mais uma vez Vasco Sameiro impôs-se facilmente. Contudo, as coisas melhoraram na temporada seguinte, que assistiu também à estreia das motas na pista transmontana.

Outro dado importante era a crescente vontade da organização em internacionalizar o circuito, não só devido ao seu percurso extremamente desafiante e elogiado por todos os ases do volante, mas também pelo enorme apoio das gentes da cidade e coordenação com os poderes políticos e económicos locais. Porém, o desastre ocorrido no Circuito de Espinho desse ano, que provocou cinco mortos e um elevado número de feridos, levou a Secção Norte do ACP a interromper o seu apoio às provas de circuito, provocando um interregno em Vila Real. Este viria a ser muito benéfico para a organização, que pode dedicar o ano de 1935 ao alcatroamento total do traçado, assim como avançar de vez para o sonho da internacionalização e alargar o programa desportivo, o que implicou uma quantia bem mais avultada.

Se bem que muito incipiente, esta internacionalização foi conseguida com uma equipa oficial da Adler na categoria Sport e alguns volantes ingleses na categoria Corrida, mas o domínio voltou a caber aos pilotos nacionais. 1937 destacou-se sobretudo pela brilhante vitória de Casimiro de Oliveira em Jaguar SS-100, o primeiro triunfo daquela marca fora das ilhas britânicas, o que valeu ampla publicidade ao carro e um enorme reconhecimento ao piloto. A prova ainda se realizou em 1938, isto apesar de a conjuntura internacional ser cada vez mais desfavorável – o intensificar da Guerra Civil Espanhola e os avanços da Alemanha para a Áustria e Checoslováquia deixavam antever uma crise muito séria – e internamente o desaparecimento de Emídio Roque da Silveira foi um rude golpe na articulação entre as diversas entidades que contribuíam para o circuito. Com apenas uma corrida no programa, Vasco Sameiro conseguiu a sua quinta vitória, mas em 1939 a conjuntura tornou inviável a continuação do circuito de Vila Real.

FECHAR PARA MELHORAR

Dissipados os ventos negros que varreram a mundo entre 1939 e 1945, a sociedade voltou gradualmente ao normal, e o automobilismo não deixou de ser exceção. Logo em 1948, os entusiastas vila-realenses quiseram organizar a sua prova, mas tal não foi ainda viável, mas um ano depois as condições já estavam reunidas e, embora já sem Aureliano Barrigas (falecido em 1948), o programa foi em frente, num contexto exclusivamente nacional, que produziu excelentes corridas. No entanto, a necessidade de obras na ponte metálica sobre o Corgo e o prolongamento destas além do esperado tornavam impossível a sua utilização em 1950. Para não perder as corridas, a organização decidiu desviar o traçado para a antiga ponte granítica de Santa Margarida, ‘forçando’ os pilotos a regressar à meta através da íngreme e sinuosa secção do Bairro dos Ferreiros, naquele que foi o traçado de Vila Real com maior perímetro (7370 metros). Tal não impediu um retumbante sucesso e um regresso de alguns destacados nomes internacionais, dos quais sairia o vencedor, Piero Carini, em OSCA. Com as obras resolvidas e a pista alargada em alguns pontos (e também articulada com o Circuito da Boavista, disputado algumas semanas antes), Vila Real voltou ao seu traçado habitual e a uma boa participação internacional, assistindo-se à primeira vitória da Ferrari através de Giovanni Bracco, em 1951, e na época seguinte, novo triunfo de Casimiro de Oliveira, também ao volante de um carro da Scuderia.

Contudo, era evidente que o circuito precisava de muitos melhoramentos, já que as velocidades atingidas começavam a torná-lo demasiado perigoso, nomeadamente o seu alargamento e a melhoria do tapete de asfalto. Os elevadíssimos encargos associados a este empreendimento levariam a um hiato de seis anos. Quando os automóveis regressaram à cidade em 1958, encontraram um circuito ligeiramente diferente no traçado e em geral mais largo, mas cuja essência permanecia inalterada. Além da construção da nova ponte da Timpeira, a construção da nova estrada marginal sobre o Corgo permitia evitar as zonas sinuosas e em paralelo do centro da cidade, deslocando a linha da meta para a nova reta que se seguia à direita apertada após a ponte metálica, celebrizada como a Curva da Salsicharia, reduzindo ligeiramente o percurso para 6,925 km.

O programa foi alargado, destacando-se a corrida de Sport com uma clara vocação internacional, recebendo uma equipa semi-oficial da Maserati – com Stirling Moss, Jean Behra, Paco Godia e Maria Teresa de Filippis – e alguns Ferrari, nos quais se destacava Harry Schell, além de um excelente parque automóvel nacional. Os Maserati dominaram completamente a prova, com Moss a bater Behra e Godia; e ficou conhecido o comentário de Marcello Giambertone (secretário-geral da União de Pilotos Internacionais) a ’O Volante, fazendo uma comparação bastante… curiosa: “O Circuito de Vila Real, tal como agora está, é excelente. Faz-me lembrar a Sofia Loren! Que curvas…!”

INTERNACIONALIZAÇÃO DE PRIMEIRO NÍVEL

Curiosamente, o sucesso retumbante desta edição levou a novo hiato, já que os encargos financeiros foram demasiado elevados e o ACP viria mesmo a abandonar a organização de provas internacionais depois do III Grande Prémio de Portugal em F1, disputado na Boavista em 1960. Foram feitas várias tentativas de regresso, mas só em 1966, beneficiando de um novo ‘boom’ das competições internacionais em Portugal, impulsionado por Cascais, é que Vila Real voltou a ter o seu circuito, agora já sob a égide de uma Comissão de Organização Permanente. As principais provas eram as de GT e Turismo, que iriam atrair alguns convidados internacionais, nomeadamente John Miles, que viria a vencer ambas as provas, mas também a Fórmula 3, que já tinha ganho enorme popularidade em Cascais (ver caixa). Entrávamos na era de ouro das corridas em Vila Real, já que a internacionalização crescente vinha complementar o fantástico parque automóvel existente em Portugal e o virtuosismo dos seus condutores, também com uma geração de ouro incluindo Nicha Cabral, António Peixinho, Carlos Santos, Ernesto Neves, os irmãos Bernardo e Domingos Sá Nogueira, Carlos Gaspar, Manuel Lopes Gião, José Lampreia, Manuel Nogueira Pinto e o veterano Joaquim Filipe Nogueira, entre outros.

Em 1967, chegaram os sport-protótipos, que imediatamente deram nas vistas com o domínio de Mike De Udy na prova consagrada aos Sport e GT, ao volante de um Lola T70 Mk. III, e o sucesso desta prova fez com que no programa de 1968 se tornassem no ‘prato forte’ do circuito de Vila Real. Como estes automóveis eram bem mais onerosos do que os GT e turismos, a Comissão Organizadora investiu bastante em trazer o máximo de concorrentes estrangeiros para abrilhantar a prova, assistindo-se a nova vitória do Lola de De Udy. Ambicionando projetar cada vez mais Vila Real no cenário internacional, a organização convidou o presidente da comissão de circuitos da FIA no sentido de saber a sua opinião. Este mostrou-se contra a utilização da pista para monolugares de escalão superior à F3, mas foi favorável a uma possível integração nos campeonatos de sport-protótipos, o que motivou a equipa organizativa a abandonar definitivamente os fórmulas em 1969. Assim, para a 18.ª edição da prova, além das provas nacionais de Fórmula V e Turismos, o grande empenho dirigiu-se para uma prova de seis horas aberta aos carros dos grupos 3 a 6, destinada a candidatar-se a integrar o Mundial de Marcas, o que obrigou a um enormíssimo investimento em infraestruturas e prémios. Esta foi, durante muitos anos, a prova mais longa alguma vez realizada em Portugal, e traduziu-se por um sucesso junto dos pilotos e público, culminando com uma grande luta até à última hora entre De Udy/Gardner (Lola T70 Mk. III) e Piper/Craft (Porsche 908), favorável a estes últimos. Contudo, a candidatura não foi em frente, e os encargos continuavam a disparar, daí que a organização optou por uma solução mais razoável para 1970 – o grande investimento continuou dirigido a uma prova internacional de resistência, mas de apenas 500 km, metade da distância da época anterior. Mesmo com um parque automóvel interessante e bons pilotos, a prova não foi tão emocionante devido ao desgaste provocado pelo enorme calor, sendo vencida pelo Lola T70 Mk. IIIB de Teddy Pilette e Taf Gosselin – ajudados, segundo consta, por uma mistura de vinho tinto e açúcar colocada no radiador à falta de fluído de refrigeração adequado.

Em 1970, a televisão tinha, pela primeira vez, transmitido em direto o principal evento do programa, mas a falta de emoção na segunda metade da prova convenceu os organizadores a reduzirem a distância novamente para metade no ano seguinte, rondando agora a de um Grande Prémio. Aberto na mesma a carros entre os Grupos 3 e 6, traduzir-se-ia por um dos eventos mais emocionantes disputados em solo nacional até então, com a luta pela vitória entre René Herzog, Nicha Cabral e Jorge de Bagration a durar quase até ao fim, com a vantagem a ir para este último, herdeiro da casa real da Geórgia e nascido no exílio em Espanha, onde conseguiu uma longa, versátil e bem-sucedida carreira. Mantendo o mesmo formato, mas agora já sem os Grupo 5, banidos do Mundial de Marcas (os Grupo 6 passaram a usar o nome), a prova rainha de Vila Real traduziu-se por um enorme lote de favoritos e uma grande imprevisibilidade, disputada até ao fim, e que seria vencida – com alguma sorte, diga-se na verdade – pelo quase desconhecido Claude Swietlick num Lola T290. 1973 foi o verdadeiro apogeu dos sport-protótipos em Vila Real, já que mesmo não contando para qualquer campeonato, reuniu quase todo o plantel do ultra- -competitivo Campeonato Europeu de 2 Litros. Entre as estrelas internacionais destacavam-se Dave Walker, Peter Gethin, Vic Elford, Jean-Louis Lafosse, Jorge de Bagration, José Juncadella, assim como os portugueses Nicha Cabral, Ernesto Neves e os dois Lola T292 da Team BIP, para Carlos Santos e Carlos Gaspar. Finalmente o vencedor foi um português – Carlos Gaspar – depois de uma prova extremamente inteligente em que nunca deixou fugir Walker e Gethin, e aplicou a pressão no momento certo, pulverizando no processo o recorde da volta à pista, que ainda hoje permanece.

Ironicamente, este sucesso foi também o ‘canto do cisne’ da Vila Real internacional até ao Século XXI. Os encargos com a organização e manutenção da pista, assim como com os prémios para atrair plantéis de tal nível, tornavam-se gradualmente incomportáveis, e a crise petrolífera de 1973 levou à suspensão de todo o desporto motorizado em território nacional. Pouco depois, a revolução do 25 de Abril abriu um período de enorme instabilidade política e económica, e com as nacionalizações de importantes patrocinadores, não havia condições para possibilitar um regresso do desporto automóvel à cidade transmontana.

No entanto, a revolução teve também o papel de renovar parte das estruturas dirigentes, tanto a nível nacional como local, e com a gradual estabilização após as eleições de 1976, os entusiastas vila-realenses começaram a discutir a criação de um clube organizador permanente, independente do poder autárquico e da Comissão de Festas da Cidade. Assim, em 1978, nasceria o Clube Automóvel de Vila Real (CAVR), que ainda de forma incipiente, fez as motos regressarem ao traçado em 1978, e de imediato lançou ‘mãos à obra’ para trazer de novo os carros no ano seguinte.

A pista foi alvo de importantes melhoramentos, nomeadamente relacionados com as crescentes exigências a nível de segurança e com um novo tapete de asfalto, e introduziu-se pela primeira vez uma chicane, à entrada da ponte metálica.

Rumo ao futuro

Os anos 70 viram as corridas internacionais desaparecer, mas o circuito de Vila Real ganhou nova vida com o estabelecimento de um clube local, o CAVR, que continuou a organizar corridas com sucesso, mas apenas a nível nacional

A criação do Clube Automóvel de Vila Real representou uma nova vida para o circuito da cidade transmontana. Esta ‘terceira fase’ da pista de Vila Real, que decorreu entre 1979 e 1991, foi marcada por alguns dos mais espetaculares duelos entre os melhores pilotos nacionais da altura, maioritariamente em provas de turismo e dos crescentes troféus monomarca. Para sempre serão recordados os duelos com intervenientes de luxo, como Robert Giannone, António Barros, o local Manuel Fernandes, Rufino Fontes, Jorge Petiz, Joaquim Moutinho, Mário Silva, António Rodrigues, Pêquêpê e tantos outros, que partilhavam as pistas nas diferentes categorias e troféus. A prova mais memorável para os espectadores talvez tenha sido a de Grupo B, em 1982, como explicamos em separado.

Porém, a falta de segurança do circuito, tanto para os pilotos como os espectadores, começava a tornar-se preocupante, e em 1984 assistir-se-ia ao primeiro incidente mortal nesta pista, quando Jorge Petiz perdeu o controlo do carro na prova de Grupo B e bateu contra um muro, colhendo espectadores mal colocados e causando um morto. Outra questão que começava a causar tensões era a crescente necessidade de dinheiro para assegurar a manutenção do elevado nível das corridas de motos, e o CAVR viria mesmo a decidir por eliminá-las do programa em 1987, causando uma cisão no clube (como explicamos na próxima página, na peça dedicada às motos).

A popularidade da pista era tal que, em 1988, se organizaram dois fins de semana dedicados aos carros, tendo-se destacado a vitória de Ni Amorim – então um dos mais jovens valores do plantel nacional – na prova de Turismos (Grupo A), realizada em julho, com um tempo recorde. Para diminuir o contínuo problema das velocidades atingidas, o CAVR colocou mais uma chicane em 1989, na zona do quartel o que fazia os pilotos chegarem à ponte da Timpeira a velocidades sensivelmente mais baixas, só que a estagnação do parque automóvel nacional (cada vez mais centrado nos Troféus) e a falta de renovação de gerações, aliada à renovada insistência na organização de provas de motos, continuou a desgastar as finanças do CAVR, à medida que os problemas de segurança aumentavam.

Verdade seja dita que os acidentes eram recorrentes e uma tragédia podia acontecer a qualquer momento, e tal viria a suceder em 1991, quando Paulo Carvalho se despistou na descida de Mateus e galgou os rails mal colocados, vindo a colher vários espectadores que estavam em zona proibida – como era comum – matando quatro pessoas.

Este foi o ‘canto do cisne’ do velhinho circuito de Vila Real, pois era notório que só com grandes obras e investimento na segurança seria possível manter as corridas na cidade, mas tal não era possível no imediato e Vila Real fecharia, como muitos pensaram na altura, para sempre.

Depois de uma tentativa de fazer renascer o circuito com as motos em 1993, usando uma variante na parte nova da cidade, que ligava diretamente a descida de Mateus à estrada N322, usando os novos arruamentos construídos do lado direito do Corgo, esta tentativa não teve seguimento, e a velocidade só voltou à cidade com o Vila Real Revival, uma demonstração de carros antigos, realizada em 2004, revelando-se um enorme sucesso. Sem dúvida, a enormíssima adesão popular a este evento levou a que o CAVR se empenhasse de novo na reabilitação do circuito de Vila Real e, com grande colaboração da edilidade local, em 2007 os campeonatos nacionais voltaram à cidade, usando uma versão quase igual à de 1993, com a meta instalada na Avenida da Europa, mas com três chicanes distribuídas pelo circuito (estas têm sido um dos principais motivos de discórdia, pois na maior parte das vezes, em vez de criarem pontos de ultrapassagem, só as dificultam, num traçado já de si estreito) e medidas de segurança ao nível dos circuitos citadinos modernos, como a renascida Boavista, perfazendo um percurso de cerca de 4600 metros. Depois de quatro edições consecutivas, a fortíssima crise que se abateu sobre o país a partir de 2009 e que levaria ao resgate financeiro travou este ímpeto, e Vila Real ficou sem corridas de novo em 2011. Felizmente, tudo se conjugou para o regresso em 2014, e em 2015 a cidade recebeu pela primeira vez desde 1973 um evento internacional de automóveis, nada mais, nada menos que o WTCC, repetindo-se em 2016, desta vez com uma grande vitória de Tiago Monteiro na segunda prova.

O Circuito Internacional de Vila Real começou a ganhar relevo. A vitória de Monteiro em 2016 deu-nos imagens soberbas de um mar de gente a cantar “A Portuguesa” a plenos pulmões, mesmo quando o intrumental se calou. O protocolo foi quebrado e ouviu-se o hino nacional até ao fim celebrando o feito do piloto português. Foi um dos pontos altos de toda a história do Circuito, pela relevância e pela envolvência criada.

Em 2017, Tiago Monteiro ia bem lançado para a conquista do título mundial e conquistou dois pódios o que fazia dele um dos principais favoritosn à conquista do desejado cetro. Em Vila Real, onde sempre foi muito forte,  jogou uma cartada que podia ser decisiva. Infelizmente, um acidente num teste em Barcelona, quase roubava a vida ao piloto luso e as esperança das conquista do título esfumaram-se. Mas as imagens da festa transmontana continuavam a ecoar e e Vila Real tornou-se paragem obrigatória para os turismos. 2017 marcou o fim do WTCC, com os fantásticos TC1 a chegarem ao fim da sua vida e com isso vimos a chegada do WTCR, com o uso dos TCR. 2018 e 2019 foram das melhores colheitas com grelhas repletas de carros e uma autêntica parada de estrelas a percorrer as ruas da capital transmontana. E foi em 2019 que Tiago Monteiro voltou a vencer, num regresso heróico à competição, que a certo ponto parecia destinado a não acontecer. Depois de um arranque de temporada complicado, o piloto português venceu a terceria e última corrida desse fim de semana e o mar de gente de 2016 voltou a acontecer, agora com ainda mais publico a acorrer ao pódio para celebrar o feito de Monteiro. O hino voltou a ser cantadado até ao fim e Vila Real provou que o sucesso da festa não era um acaso.

Infelizmente o impeto quebrou-se com a chegada da Pandemia em 2020. A COVID-19 parou o mundo durante quase dois anos e, por conseguinte o Circuito de Vila Real também parou. Regressou em 2022, novamente com o WTCR, mas a competição já definhava e os organizadores da festa vilarealense começara a apontar para outros campeonatos. A Fórmula E esteve perto de visitar Trás-os-Montes mas a pandemia que parecia acalmar no nosso país, regressou em força em 2021 e impediu o que seria um momento memorável. Mas outros interessados surgiram e o DTM parecia o próximo nome na lista, mas problemas com o promotor da prova e a dissolução da empresa responsável pelo campeonato alemão, que passou para as mãos da ADAC, ditaram o fim do sonho de ver o DTM em Vila Real. O que se segue, ainda não é conhecido, mas Vila Real está agora numa posição muito melhor do que estava e é um traçado que interessa a muitas competições internacionais. Mais momentos de ouro serão vividos, mas a época de 2015 a 2019 foi sem dúvida uma das melhores da história do Circuito.

CHEGADA DA FÓRMULA 3

Depois do sucesso que constituiu a introdução de provas de Fórmula 3 em Portugal com o Circuito de Cascais, a Comissão Organizadora de Vila Real não quis deixar passar a oportunidade de incluir esta popular fórmula no seu programa no ano de regresso. Deste modo, logo em 1966 conseguiu reunir um plantel de elevada qualidade, tendo como cabeças de série John Fenning, Jonathan Williams e Reine Wisell, além do plantel de ‘profissionais’ da dita fórmula, que incluía homens como Manfred Mohr e um certo Frank Williams. Neste imenso plantel também se incluíam dois portugueses, Joaquim Filipe Nogueira e Luís Fernandes, mas estes nada puderam fazer para contrariar o domínio estrangeiro, com Fenning a vencer, seguido de Jonathan Williams e John Peterson, sendo Filipe Nogueira o melhor português, em quinto.

Os pilotos adoraram a pista e os prémios eram suficientemente interessantes para atrair um plantel reforçado em 1967, com Reine Wisell e os ‘habituées’ a serem acompanhados por jovens estrelas em ascensão, nomeadamente Chris Williams, Dave Walker, Ulf Svensson e Ronnie

Peterson, enquanto a representação portuguesa ficava a cargo de Joaquim Filipe Nogueira e Carlos Gaspar. Chris Williams dominou os treinos e a prova, vencendo na frente de Wisell e Lars Lindberg, enquanto Carlos Gaspar chegou a rodar em quarto até perder tempo com problemas

mecânicos e cair para um magro décimo posto, enquanto Filipe Nogueira abandonava.

A edição de 1968 trouxe ainda maior qualidade, mais uma vez encabeçada por Wisell, Peterson e Chris Williams, mas também com Mohr, John Miles, Alan Rollinson, Svensson e Trevor Blokdyk, enquanto Filipe Nogueira era o único português. O experiente Mohr dominou os treinos e manteve a liderança após a largada, mas viria a ser passado por Wisell à décima volta, já depois do abandono de Peterson. Wisell e Mohr lutaram arduamente até ao fim, culminando numa espetacular vitória do sueco, com apenas 37 centésimas de segundo sobre Mohr, com Miles já longe em terceiro, enquanto Filipe Nogueira voltava a desistir.

A INESQUECÍVEL BATALHA DE 1982

Em 1982, a entidade federativa baniu os carros de Grupo 5 das provas de Grupo B acima dos 1300 cm3 no CNV, deixando um plantel composto maioritariamente por carros de Grupo 4, extremamente equilibrado e repleto de bons pilotos, destacando-se Robert Giannone (Porsche 911 SC),

Jorge Petiz (Porsche 934), Mário Silva e António Rodrigues (ambos em Ford Escort RS1800), Tino Pereira (De Tomaso Pantera) e Rui Lages (Vauxhall Chevette). Na prova desse ano, os treinos foram dominados pelos Escort de Silva e Rodrigues, com o primeiro a bater claramente o segundo, enquanto os Porsche, reconvertidos para as especificações de Gr. 4, ficavam abaixo do esperado. No entanto, Mário Silva fez um péssimo arranque e António Rodrigues assumiu o comando, perseguido pelos Porsche de Petiz e Giannone, e por Silva que já era quarto no final da primeira volta. A partir daqui, começou uma das maiores batalhas na história dos campeonatos nacionais de velocidade, com Petiz a assumir o comando na terceira volta, enquanto Silva batia Giannone duas voltas depois. O piloto do Escort chegou ao comando após uma ousada ultrapassagem a Petiz na passagem de nível de Abambres, para ser seguido por Rodrigues na volta seguinte na Timpeira. Definitivamente, a potência dos Porsche não parecia ser suficientemente vantajosa, e a partir da nona volta o duelo centrava-se precisamente entre Rodrigues e Silva, enquanto Petiz acabava por desistir com problemas de estabilidade no carro. As trocas de liderança foram contínuas até ao fim, mas Mário Silva conseguiu vencer com uma vantagem de apenas 77 centésimos de segundo sobre António Rodrigues, com Giannone a cortar a meta a mais

de minuto e meio. Foi uma luta aguerrida, mas sempre leal, que marcou o coração dos adeptos do automobilismo que estiveram presentes naquele dia, e que faz sonhar os jovens, expectantes de ver algo assim repetir-se no magnífico cenário de Vila Real.

AS MOTOS EM VILA REAL

A organização de corridas de motociclismo em Vila Real é quase tão antiga como o próprio circuito, dando origem a uma série de eventos onde as provas de duas e de quatro rodas conviviam na mesma pista

Logo em 1934 realizou-se o primeiro evento para duas rodas no Circuito de Vila Real, tendo como vencedor o versátil desportista Alexandre Black. A partir daqui, as motas acompanharam sempre os automóveis (organizadas em diversas categorias de cilindrada), à exceção de 1938, e em 1939 assumiram mesmo o destaque, já que devido aos problemas já mencionados, só foi possível à Comissão Organizadora preparar um evento nas duas rodas, que coincidiu com o Campeonato Nacional da especialidade. Quando se tornou finalmente possível voltar a organizar provas em Vila Real, as motos fizeram parte do programa inaugural e de imediato reuniram os melhores pilotos nacionais, e tal como se passava nas quatro rodas, a ambição de internacionalizar o evento era patente, o que foi finalmente conseguido em 1952, acompanhando igual desenvolvimento na Boavista.

Além dos melhores pilotos nacionais (Américo Lino, Gomes Pereira, António Pinto, José Romão, etc.), vieram alguns estrangeiros de valor, como Werner Gerber, Roland Gauch e John Grace. Este último, britânico natural de Gibraltar, venceria as duas provas (500 e 350 cc) ao volante das omnipresentes Norton. Como foi dito anteriormente, as obras decididas no final de 1952 levaram à não-organização das provas automobilísticas, mas o Sport Clube de Vila Real quis trazer as motos às festas da cidade, já que pouco havia ainda sido feito a nível de obras, e apesar da falta de apoio do ACP, lá conseguiram arranjar uma boa lista de inscritos, mas maioritariamente nacional, o que permitiu a John Grace repetir a dose e vencer ambas as provas. Quando o interregno terminou em 1958, a organização decidiu juntar todas as cilindradas numa só corrida (embora cada uma cumprisse números de voltas diferentes), e perante uma concorrência maioritariamente nacional, o conceituado Grace venceu pela quinta vez, recorde que só viria a ser igualado muito mais tarde.

A ERA DO GRUPO DOS 50

Após novo interregno, todas as energias da Comissão Organizadora foram canalizadas para os automóveis, daí que nos ‘anos de ouro’ as duas rodas não fizeram parte do programa. Só em 1978 viriam a regressar, muito por força do ‘Grupo dos 50’, um conjunto de entusiastas que sonhava constituir um clube organizador, e que viriam depois a ser parte integrante do CAVR. Com uma organização incipiente, as motos voltaram a fazer-se ouvir em Vila Real, com três provas para as diferentes cilindradas, embora sem o favorito António Costa Paulo. Vilarealense de gema. Este homem foi um dos melhores pilotos de motos nacionais dos anos 70/80 e viria a ser o sócio nº 1 do CAVR, só não alinhando em 1978 por se encontrar lesionado, e contribuiu para o sucesso do projeto como diretor de prova. A partir daqui, as motos vieram a estar sempre em pé de igualdade com os carros, se não em superioridade… Logo em 1979 deu-se um regresso à internacionalização, com nomes conceituados como o pluricampeão mundial Ángel Nieto, Peter Looyesteyn e Jean Lecureux, destacando-se a vitória na prova de 50 cc Racing de Sande e Silva, que se viria a tornar num dos maiores vultos do motociclismo nacional nos anos seguintes. Também marcantes nestes anos foram as lutas entre João Farinha, Hermano Sobral e Contente Fernandes, entre outros.

Em 1981, Vila Real passou a integrar o Campeonato Europeu de 50 cc e de 125 cc, mas também organizou uma prova internacional de 500 cc. Devido à disparidade de preparação entre as motos nacionais e as do Europeu, estas provas foram pouco concorridas, embora com lutas muito emotivas, e na de 500 cc saiu vencedor o inglês Gary Lingham.

1982 marcou a estreia no circuito de Vila Real de Costa Paulo Júnior, que ao vencer a prova de 50 cc se tornou no primeiro vila-realense a vencer em casa, mas o destaque foi para as provas internacionais, que passaram a pontuar para os Mundiais de F1 e F2 (estes campeonatos usavam circuitos de estrada, como o desafiante Isle of Man TT, já há muito considerados anacrónicos, ao invés dos circuitos convencionais que se tinham imposto na viragem para a década de 80 nos campeonatos principais). Desta forma, Portugal recebeu algumas das maiores lendas do desporto motorizado e jovens promessas, nomeadamente na F1, com a prometida luta entre a Suzuki (com Mick Grant e Roger Marshall) e a Honda (com o lendário Joey Dunlop e o futuro campeão mundial Wayne Gardner) e Tony Rutter (também ele vencedor na Ilha de Man). Rutter venceu na F2 e Gardner bateu o seu experiente colega na F1. Os conflitos relativos ao apoio às provas de duas rodas dentro do CAVR levaram ao seu cancelamento em 1983, mas regressaram em 1984, com um plantel muito mais rico, principalmente a nível internacional. Rutter venceu de novo na F2, e na F1 a Honda dominou a prova, mas Dunlop voltou a ser batido pelo colega de equipa, desta vez o compatriota Roger Marshall. Dentro das provas nacionais, surgiam novos nomes como Alexandre Laranjeira, José Pereira e Manuel João, a par com os já citados Costa Paulo Júnior e Henrique Sande e Silva. Em 1985, Rutter foi finalmente destronado na F2 pela Yamaha de Brian Reid, e na F1 Honda, Suzuki e Ducati traziam as suas equipas de elite, para Joey Dunlop finalmente triunfar em Vila Real, ganhando também o título de F1.

Curioso o final da prova, que devido a uma atitude algo intempestiva de um membro da equipa Honda, acabou numa cena de pancadaria digna da NASCAR…

EVENTO EM QUEDA

Em 1986 o desgaste organizativo causado pelo aumento dos custos afetou muito as motos, que só receberam a prova internacional de F1, novamente vencida por Joey Dunlop, numa das corridas de motociclismo mais disputadas de sempre em Vila Real. Porém, em 1987 o CAVR decidiu-se finalmente por cancelar as provas internacionais de motos, originando uma cisão – liderados por Costa Paulo, alguns elementos fundaram o Real Moto Clube, que pôs de pé imediatamente um programa em setembro desse ano, para se candidatar à internacionalização no ano seguinte. Embora reunindo os melhores pilotos nacionais, o facto de não estar integrado no programa dos automóveis e o fim da F1 e F2 levou a uma assistência muito inferior ao habitual. Mesmo assim, o Real Moto Clube perseverou e em 1988 não só organizou as provas nacionais – nas quais brilharia, Costa Paulo Júnior, Manuel João e Alexandre Laranjeira – mas conseguiu o regresso da F1. Estes dois últimos pilotos nacionais alinharam nesta competição, batendo-se com os irmãos Dunlop, Carl Fogarty e outras estrelas internacionais, e a vitória caberia a Steve Williams, na frente de um brilhante Manuel João, numa prova extremamente conturbada devido à chuva.

No entanto, este esforço foi em vão, pois as finanças do Real Moto Clube ficaram arruinadas pela vinda da F1, acabando com as suas atividades no final do ano; mas a popularidade das mesmas levou o CAVR a insistir novamente na F1 em 1989, mas o próprio campeonato estava já em decadência e o número de estrelas internacionais presentes em Vila Real era baixo. Mesmo assim, o vencedor foi um piloto consagrado na Ilha de Man, Steve Hislop. O cenário motociclístico nacional estava também ele a atravessar um período de decadência, por isso as provas já não tinham o mesmo brilho, e o Troféu que sucedeu ao Mundial de F1 já não atraía as marcas como dantes, apesar da presença de Carl Fogarty e dos irmãos Dunlop, e o menor número de inscritos permitiu aos pilotos nacionais das grandes cilindradas brilharem. Fogarty venceu à frente de Joey Dunlop, e pela última vez (até Miguel Oliveira brilhar no Moto 3, e agora no Moto 2), os pilotos nacionais puderam lutar por boas posições contra alguns dos maiores especialistas, neste caso em provas em estrada aberta. Em 1991, as provas de motos foram já exclusivamente nacionais e pouco competitivas e o CAVR acabou com o circuito nesse ano, mas a nova Federação Nacional de Motociclismo acreditou ser possível reabilitar Vila Real através das motos e, usando uma versão encurtada, organizou uma ronda do campeonato nacional em 1993. No entanto, ficou claro que as condições de segurança não se adequavam, e a experiência não teve seguimento. Com os padrões cada vez mais apertados, será difícil voltar a ver motos num circuito citadino, mas quem sabe…

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